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Pedaços do mundo e grãos de areia
Não entendo esta atracção pela vertigem que a classe política portuguesa exibe de forma tão irracional. O resgate durou três anos e acabou há duas semanas e já se multiplicam os sinais de que a elite nacional pensa em regressar de imediato à falta de juízo que nos levou à falência. O País entrou ontem numa crise política que termina simbolicamente o período de ajustamento, exactamente um ano depois de ter ocorrido outra crise, que acabou simbolicamente com todas as reformas.
Portugal tem desequilíbrios orçamentais crónicos e o motivo é sempre o mesmo: o dinheiro do Estado costuma ser apropriado por interesses especiais e por clientelas cujo controlo é difícil. Daí os ciclos de expansão e estoiro. Pela mesma razão, Portugal é um País relativamente imune a reformas e que resiste às mais esforçadas tentativas de sair do pântano. Durante os três anos de ajustamento, as clientelas políticas foram colocadas no congelador e foi possível equilibrar as contas públicas e realizar reformas estruturais que limitaram as fatias do bolo orçamental desviadas por grupos. É aliás um dos grandes problemas deste governo: os interesses especiais foram afectados e sofreram prejuízos, as corporações atingidas nunca deram tréguas e não perdoam.
A decisão do Tribunal Constitucional de chumbar os cortes nos salários dos funcionários públicos repõe alguma da ordem anterior e vai provavelmente ser compensada por um aumento de impostos que penalizará sobretudo os mais pobres (não podem fugir a uma proporção fixa de consumo, pelo que uma maior porção do seu rendimento irá para o IVA).
A decisão surge poucos dias depois das eleições europeias, que foram reveladoras do estado calamitoso em que se encontra a República. A irresponsabilidade da classe política foi aliás devidamente penalizada pelo eleitorado no domingo passado. A leitura dos votos é de que a população deseja um governo de unidade nacional e quer ficar dentro da zona euro, recusando o segundo resgate. Os portugueses precisam de estabilidade e de esperança nas suas vidas e defendem uma renovação dos dirigentes políticos, mas os partidos seguiram com a tralha do costume: ambições pessoais, leituras enviesadas e até desprezo pelo voto (a extrema-esquerda, uma das mais derrotadas das eleições, tratava abaixo de cão os eleitores que votaram no governo).
Apenas duas semanas depois do fim do resgate, os partidos revelam a maior surdez e Portugal tenta um exercício de loucura política que lhe pode custar caro. Em vez de iniciar negociações com o governo sobre um vasto acordo para o período pós-troika, o PS está em plena guerra civil. António José Seguro teve um resultado decepcionante e pode não conseguir vencer as legislativas, mas venceu esta eleição e a anterior.
Com Portugal a entrar em plena crise política, torna-se absurdo que o PS esteja agora a discutir a própria liderança, para mais com os dirigentes entretidos num exercício de retórica que engana os simpatizantes. Se o PS chegar ao poder nos próximos dois anos, quem estiver à frente do partido terá de cumprir o Tratado Orçamental, ou seja, prosseguirá a consolidação orçamental, cortando ainda mais na despesa pública, talvez 4 ou 5 mil milhões de euros; terá ainda de começar a pagar a dívida e (mesmo que haja reestruturação desta) isso implica um esforço financeiro adicional entre 2 e 3 pontos percentuais de PIB. As promessas de reindustrialização não passam de balelas que, de qualquer forma, levam uma década a concretizar. E uma frente de esquerda que inclua partidos que recusam o euro não é mais do que uma quimera.
António Costa pode ser o homem providencial indispensável à vitória esmagadora dos socialistas, mas a realidade não vai alterar-se um milímetro: o que pode ele fazer diferente de Seguro? Uma estratégia de frente de esquerda impede o bloco central que, pelo menos em teoria, dava certa estabilidade política ao país. E se Costa quer o poder para fazer uma aliança de bloco central igual à que Seguro tenciona concretizar, então qual é o ponto de mudar de líder no meio de uma crise e na sequência de duas vitórias?
Visto de Berlim, este deve parecer um país de loucos. Os juízes governam e tomam decisões orçamentais. O maior partido da oposição discute o nome do seu líder após duas vitórias eleitorais consecutivas e no meio de uma crise política. A troika saiu há duas semanas (na realidade ainda falta uma parte do dinheiro) e já não se cumpre nada do que foi prometido. Os partidos de poder deviam estar a discutir um consenso sobre a reforma do Estado e da segurança social, mas parecem mais afastados do que nunca.
Com isto tudo, a reacção dos mercados só pode ser uma enorme incógnita. Do ponto de vista dos credores, a decisão do Tribunal Constitucional mostra que Portugal não dá garantias de ter compreendido a necessidade de mudar. É natural que nos emprestem dinheiro com a maior relutância, o que significa que estamos mais próximos de um eventual segundo resgate ou até da catástrofe, a saída do euro.