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Encontro

por Luís Naves, em 09.10.13

Aconteceu isto numa manhã vazia
O estranho subiu a rua inclinada
e agarrou o meu pulso com a mão macia
Faltavam-lhe dentes, tinha a cara suada.

 

Não se lembra de mim, no banco, outro dia?
Encolhi os ombros. De nada me recordava.
Nem fazia qualquer sentido o que dizia
Bizarra história, a que ele contava.

 

Aquela figura ignorada, desconhecida
conhecia-me, a mim, que afasto a gente
Que faço da reclusão a autêntica vida
e me desligo sempre do mundo doente.

 

Confesso aqui que quase tive uma esperança
De que o homem me conhecesse de verdade
E a minha parte fosse falha de lembrança
Imprecisão da minha responsabilidade.

 

Deixei que continuasse a lengalenga dele:
o desconhecido sabia o que queria
Mostrou-me um enorme saco de pele
Onde estavam umas coisitas que vendia.

 

Recusei, demasiado irritado, talvez.
E lá voltou ele ao fundo da rua inclinada
E segui o caminho para cima e para o nada
De novo anónimo e sozinho outra vez.

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publicado às 19:41

Poeira

por Luís Naves, em 08.09.13

Aqui cheguei, não sou mais do que isto
tanto tempo efémero, aqui estou.

Escrevi romances medíocres
contei o que vi no presente
fiquei no imenso arquivo da poeira

 

Olho, inquieto, para o telefone calado
e a noite desliza em meu redor.

Há rumores lá fora
na insónia impaciente
e na engrenagem nervosa do esquecimento.

 

Vou ainda vivendo, numa dor que não passa
na mágoa dos pequenos túneis
que incansáveis insectos negros
vão escavando nas tábuas do quarto
e nas paredes da minha cela.

 

Daqui posso contemplar o nada
e se não fosse pelo infinito
essa obscura distância além do jamais
estaria porventura a pensar no fim
que, vendo bem, nem sequer existe.

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publicado às 16:27

Perdem sempre tudo

por Luís Naves, em 07.09.13

A mentira tomou o dia, afinal
alastra e ganha velocidade
e o riso falso sem densidade
conquista o tolo e o racional.

 

Assim, mentir é a quase normal
raiva morna que queima de verdade
enganar, penosa fatalidade
que calha a cada um, por mais banal.

 

Pequenos males vencem tanta gente
e dos justos que podemos dizer
quando se perdem na luz consciente?

 

Que praticando o bem sem ceder
conhecem a derrota inconsistente
e perdem sempre tudo, sem esquecer

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publicado às 19:59

Velhas fotografias (outra versão)

por Luís Naves, em 16.08.13

Memórias são velhas fotografias
sépia pálido e formas indecisas
Anos seguem-se a meses e a dias
Histórias desfazem-se, imprecisas.

 

Pouco sei destes rostos desconhecidos
Dos devaneios difusos e perdidos
Do que fizeram, de quem amaram
Das utopias que não restaram.

 

Nas imagens de brilho intenso
A verdade respira na penumbra
O tempo prolonga-se, imenso
E o que perturba também deslumbra.

 

Haleto de prata depositado
Na desordem do postal rasgado
E há o mistério da identidade:
Como eram eles de verdade?

 

Sei que riram e sofreram
Sentiram ódio e amizade
O seu mundo foi o que viveram
Tiveram nostalgia e saudade.

 

Presos em limiares decadentes
Baralham-se recordações de parentes
Resistem na margem do esquecimento
E morrem em papel amarelento.


De mim, quem vier dirá um dia
Que existi como eles também
Não mais do que uma fotografia
A sombra passageira de alguém.

 

O que fomos será um sonho breve
Ligeiro sopro, miragem leve
Parando o que antes fluía
Olhe para a câmara e sorria.

 

(Variação em verso do tema de outro post mais abaixo)

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publicado às 18:55

Morte ao décimo dia

por Luís Naves, em 18.07.13

Tibério mandou torturar os desgraçados
Os seus crimes nem sequer ficaram registados

 

Morte após dez dias de suplício, disse o imperador
Exigindo para cada um o requinte máximo da dor

 

E ao nono dia, por acaso, Tibério desapareceu
E alguém sugeriu, que os libertem, se o cruel morreu

 

Libertá-los é mais do que justo
Já que todos sobreviveram a custo

 

E os condenados já se viam ressarcidos
Dos terríveis medos e suplícios sofridos

 

Mas afinal foi de curta dura a esperança
Um soldado trespassou-os com a lança

 

É que, para além de Tibério, existia a tirania
E a ordem era clara: morte ao décimo dia

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publicado às 19:19



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