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Pedaços do mundo e grãos de areia
O primeiro romance não tinha uma única linha, pois isto aconteceu antes de existir escrita, mas a sua invenção pode ter sido quase tão importante como a descoberta e controlo do fogo. O nome do autor perdeu-se, mas sabemos que ele concebeu uma espécie de romance épico, transmitido com pequenas alterações durante pelo menos vinte milénios. Narradores das gerações seguintes, todos talentosos, introduziram modificações, mas não esqueciam os detalhes mais importantes da primeira ideia. Mesmo quando acrescentavam episódios da sua própria experiência, preservavam sempre o fio original.
A mesma história foi recontada na tribo durante incontáveis noites, passou para outras tribos e andou pelo mundo. Baseava-se numa longa caçada, que incluiu a perigosa viagem por terras desconhecidas e uma história de amor e de separação que, para nós, os sofisticados, talvez parecesse um pouco sentimental. O grupo de caça teria doze guerreiros, ou talvez sete, (são estes os números de personagens que costumam aparecer em todos os romances de heróis). Um dos guerreiros era o líder, outro parecia mais sábio, havia ainda um ambicioso e outro ressentido, o medroso, o sonhador e o trágico, o cómico, o fiel e o lunático, além de alguns sem grandes traços de caráter, mas que demonstravam sempre coragem quando o perigo não era sobrenatural, ou seja, quando não se enfrentava uma daquelas ameaças que criam terror no coração, pois ninguém de carne e osso as pode suportar.
Quantas pessoas se riram e choraram a escutar as peripécias deste grupo de caçadores, do seu espanto com os mistérios do mundo desconhecido, os desastres e as soluções inesperadas, o choque com as assombrosas possibilidades de morte, a escuridão da floresta, os prodigiosos abismos e precipícios, os animais ferozes, o combate com os canibais ou, pior, a emboscada dos mágicos com os seus feitiços perversos, antes do vislumbre da fúria do mar indomável onde no horizonte urravam gigantes com forma de nuvem.
Depois, a alegria de perceber que os caçadores, sob liderança tranquila do herói, encontraram um vale perfeito, fácil de defender e supremamente fértil, com toda a abundância de animais, clima ameno e estações suaves. Melhor ainda, nenhuma ocupação humana. Era território virgem que podia garantir à tribo a sobrevivência a longo prazo.
O líder e mais dois dos guerreiros voaram no caminho de volta, na direção da tribo e, neste ponto da narrativa, podíamos dizer que foi introduzido um pequeno defeito: demorara meses a viagem até à descoberta do paraíso, poucos dias no regresso, mas esta era afinal uma subtil invenção literária. Os regressos são sempre menos importantes do que as viagens de descoberta, muito mais curtos e condensados, pois já despidos de incerteza ou mistério. A literatura passa por cima do tédio e concentra-se apenas nas circunstâncias interessantes da existência exagerada.
Os heróis regressavam e o líder reencontrava-se com a mulher amada, que esperara por ele. Cenas de encher o coração. Convencida pela bondade da boa notícia, a tribo partia então para o vale abundante, numa peregrinação facilitada pelo conhecimento do melhor caminho. Evitando maus encontros, todos chegavam a salvo.
Estava inventado o final feliz, mas houve frequentes variações. Muitos narradores das gerações seguintes aproveitaram para sublinhar o mito da origem distante do seu povo e que o vale perfeito era a própria casa, estava ali à vista dos leitores.
No fundo, quem ouvisse esta história recontada pela milésima vez acreditava que ela era inteiramente verdadeira, mas não sabemos qual a parte que foi vivida ou a que foi imaginada. É este o maior mistério, sem dúvida. Havia mesmo canibais, feiticeiros e gigantes? O vale perfeito era autêntico? E os guerreiros, eram todos como foi contado ou simples descrições de pessoas verdadeiras que nunca abandonaram o local onde viveram?
Hoje, o nome do primeiro romancista não nos diria nada, mas não me importava de esclarecer o enigma de qual a parte de fantasia e a parte de verdade. Se me perguntarem, acredito que foi quase tudo inventado.
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Rodrigo Ramos ficou desempregado e tinha outros defeitos sociais, era caucasiano, heterossexual e, ainda por cima, do sexo masculino. A sua existência, apesar de tudo, teria sido relativamente ignorada, por assim dizer, passando entre os pingos da chuva, não se desse o caso de ter vencido as mais recentes eleições um partido que levava mesmo a sério os problemas da equidade e diversidade, sendo que este partido fez uma coligação com outras formações de um vasto arco-íris do pensamento mais avançado e progressista.
Após as eleições, houve uma mudança na realidade estrutural, com onda de despedimentos e de novas contratações segundo a linha justa, mas o setor privado foi mais atingido pelo rigor com que o novo executivo encarava o assunto. No Estado também houve enorme razia, pois o anterior governo não fizera o trabalho de casa. Os polícias e militares receberam cinquenta fardas diferentes e as repartições públicas passaram a atender todos os contribuintes em 150 filas heterogéneas, mantendo-se o sistema de senhas, válidas por cinco meses, com prioridade para minorias.
O desemprego de Ramos deveu-se exatamente a esta mudança: foi preciso equilibrar as quotas no local de trabalho e, apesar de ser um bom profissional, o nosso homem foi substituído por uma pessoa de igual competência, mas pertencendo a um dos numerosos sexos alternativos. O empregador conseguiu dessa forma melhorar um pouco os seus indicadores de inclusão, que eram péssimos, não se livrando de pesada multa, por não ter nos seus quadros suficientes membros das 984 minorias registadas nos vários segmentos da diversidade.
Na qualidade de desempregado, Ramos enfrentou duas rondas de formação para membros da maioria opressora, onde o Estado tentou que aprendesse a melhorar as suas competências em matéria de diversidade, reconhecendo o carácter racializado e pós-colonial da sua perspetiva. Teve nota zero no exame, com desvios inaceitáveis, vestígios de ideias ultrapassadas de antiga pessoa e ceticismo em relação à ortodoxia.
Aqui começaram os problemas. A autocrítica de Rodrigo Ramos, na qual este reconhecia o caráter neoimperialista e burguês da sua postura, foi considerada pouco sincera pelos serviços de igualdade de género, sendo detetada uma tendência misógina e patriarcal, que colocou o jovem desempregado sob estrita vigilância da polícia de costumes e linguagem. Os problemas agravaram-se quando foram detetadas certas mensagens privadas que revelavam conduta desviante e machista, adesão às velhas estruturas de poder, além de pensamentos perversos de carácter heterossexual que colidiam com o paradigma neomalthusiano.
Foi nesta altura que as autoridades decidiram colocar Rodrigo Ramos num campo de reeducação. A medida era preventiva, para evitar o cancelamento, mas o governo tinha concluído que havia escassa diversidade na população prisional. Assim, foram libertados alguns membros da minoria facínora, equilibrando-se o caso com a entrada de pessoas que, não tendo cometido crimes de faca e sangue, apresentavam total incompreensão das novas regras de inclusão. Era bem melhor fechá-las longe da vista e procurar reabilitar todas aquelas ideias trogloditas, que foi o que aconteceu a Rodrigo Ramos, que daqui a dois anos já deverá estar inteiramente livre dos seus discursos de ódio.
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Esta história inteiramente verídica passou-se na Transcarpátia, numa época em que esta região distante ainda era dominada por barões empobrecidos que gostavam de desafiar o poder real. Duas forças fracas deram origem a uma certa autonomia dos burgueses, que tratavam com liberalidade dos seus assuntos e nomeavam livremente os seus juízes. O estranho caso passou-se poucos anos depois da grande peste, que matara muita gente, por isso havia escassez de habitantes e as famílias sobreviventes tinham abundância de terras e dinheiro. Nesse tempo, os enforcamentos de facínoras eram talvez o único entretenimento disponível e as autoridades de Kerekdomb, lideradas por um sapateiro, andavam preocupadas com a falta de enforcados. O último condenado remontava ao período anterior à pandemia, o que era inaceitável.
Quis o destino que o sapateiro encontrasse numa estalagem da estrada de Monos o principal autarca de Farkaslak, um tal Ravasz. Conversaram, trocaram informações e, após uns valentes copos da melhor palinka, Ravasz confessou que tinha na sua cidade um condenado à morte.
"Compramos", disse o sapateiro. "Levamos o condenado para a nossa terra e fazemos lá o enforcamento".
Ravasz era um negociador duro, fez-se bem caro, conseguiu esmifrar o autarca vizinho e estabeleceu-se uma transação de 10 mil florins, que era uma boa soma na altura, equivalente a uma dúzia de luíses de ouro ou uns quarenta marcos de prata.
O problema é que em Farkaslak não havia condenados. Ravasz voltou à sua terra, colocou o problema ao juiz que tinha conseguido eleger e este sugeriu que se vendesse o tonto da cidade, János Piskóta, que era um pobre ingénuo que não fazia mal a ninguém, mas de quem toda a gente se ria devido ao aspeto monstruoso e estúpido. Metade do dinheiro dos burgueses de Kerekdomb seria gasto em melhorias na cidade, o resto dividido de forma justa entre Ravasz e o juiz, à razão de três partes para o primeiro e uma parte para o segundo.
O desgraçado Piskóta assinou um contrato de trabalho vitalício, sem saber bem o que fazia, depois foram discretamente fabricados os papéis da condenação à morte. Por precaução, foi organizada uma campanha de descrédito do pobre diabo e, quando veio a delegação de Kerekdomb buscar o prisioneiro, não houve resistência, pelo contrário, as pessoas aplaudiram aquela venda, riam-se do condenado e achavam justas as melhorias prometidas.
Kerekdomb organizou um magnífico enforcamento, com centenas de forasteiros, grandes consumos nas tabernas, feira agrícola e muita animação. Até o barão veio ver, com toda a sua importante família. O espetáculo foi apreciado por todos.
Neste ponto, o leitor esperava um golpe de asa do autor, mas infelizmente estou limitado pela verdade. Não houve qualquer súbita reviravolta do destino ou milagre, a população não se comoveu, o barão não indultou o inocente, nem se soube de uma inesperada invasão turca que mobilizasse o enforcado para o exército, pois para isso faltavam cem anos.
Piskóta foi enterrado numa campa sem marcas e Kerekdomb teve de esperar três décadas pelo enforcamento seguinte, que calhou a um ladrão de cavalos cujo nome a história não fixou.
Farkaslak gastou todo o dinheiro do enforcado, mas em vez de se tornar a maior cidade da Transcarpátia, como ambicionavam os seus burgueses, foi definhando sem rumo, até se transformar numa miserável aldeia, que um exército otomano invasor, ali de passagem, decidiu incendiar sem qualquer motivo, em 1534 ou 1535, se não me engano.
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O antiquário percebeu que eu não queria os relógios. Apesar de serem todos maravilhosos, não eram raros.
"Tenho aqui um objeto analógico que talvez ache interessante", disse ele.
Abriu uma gaveta num armário afastado e regressou ao balcão com o que parecia ser um documento protegido por capa transparente. Tinha alguns centímetros de espessura e formato retangular, texto e fotografias antiquíssimas. Percebia-se que era flexível.
"O que é isso?", perguntei.
"Chamava-se jornal", respondeu o antiquário, num tom algo misterioso.
Retirou a capa e vi as páginas, que deviam ser impressas. Fiz um comentário nesse sentido.
"Tem toda a razão, era impresso em grandes máquinas e faziam milhares de exemplares de cada vez", disse o vendedor, antes de se lançar numa fascinante dissertação. Aquele era um modelo que resumia os principais acontecimentos do dia anterior e o papel estava amarelado por ser antigo. As pessoas da época recebiam as suas notícias daquelas folhas, que estavam escritas por diversos autores (na altura, chamava-se a isto jornalismo e a profissão, agora extinta, era de jornalista).
"Repare aqui nesta assinatura", disse o antiquário e apontou para uma das páginas, que manuseava com extremo cuidado. "Cada texto assinado, como é o caso deste desconhecido, envolvia um trabalho de descrição da realidade e análise da época".
Eu nunca vira um objeto parecido e ele continuou naquela linha de explicação. Os jornais em papel tinham sido muito influentes durante mais de três séculos e o tempo destruíra cada um dos numerosos exemplares fabricados pela indústria. O papel de má qualidade não aguentava muito. As pessoas compravam aquilo na rua ou recebiam em casa, o preço era acessível, os conjuntos eram escritos em edifícios dedicados, onde se discutiam os eventos locais e do mundo, cada texto correspondendo a uma interpretação dos factos mais relevantes.
"Veja a data: 1 de janeiro de 2001. Só faziam um em cada dia, raramente dois, pelo que o título, no topo, corresponde a um diário".
Debrucei-me, era como ele dizia. Coisa única. Tinha quase duzentos anos, uma verdadeira antiguidade.
"O senhor está a dizer que as pessoas daquela época tinham toda a sua informação tirada daqui?"
"Não a totalidade, mas a parte mais importante".
Achei aquela ideia extraordinária.
"E não havia algoritmos? Não havia informação personalizada? Eles precisavam de ler em papel?"
O antiquário sorriu, satisfeito por me ter convencido. Era de facto um objeto espantoso. Paguei sem hesitar o preço que ele me pedia e, nessa noite, li o jornal de fio a pavio, sem entender metade dos assuntos que ali estavam, mas deliciado com a prosa. É uma bela relíquia de um mundo que já não existe, uma das melhores peças da minha coleção de antiguidades, com a curiosidade de atravessar a fronteira entre o século XX e XXI, escrito no último dia de um milénio e vendido no primeiro dia do milénio seguinte.
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Imprimiu as folhas com as últimas informações, agrafou, colocou o conjunto dentro de uma pasta de plástico azul. Contou as páginas, no total dez, iria ler com atenção o relatório, mas apenas quando arranjasse tempo. Colocou a pasta sobre uma pilha de papéis com uns vinte ou trinta centímetros de altura, ao lado de outras pilhas de documentos que cobriam a sua secretária. Passaram dias, não houve alterações na rotina nem notou nada de especial. A secretária continuava caótica, repleta de papéis acumulados que formavam arranha-céus um pouco mais altos, talvez, mas atribuiu a sensação a algum efeito ilusório da luz. Ideia absurda, a de que as pilhas de papel podiam ter crescido, ninguém entrava no escritório, ele era o único que tinha a chave, nem as senhoras da limpeza ali entravam; elas percorriam os outros escritórios do edifício, desapareciam logo pela manhã, mas não passavam aquela porta. A organização do seu mundo sofreu um pequeno abalo quando procurou a pasta de plástico azul onde guardara o relatório de dez páginas. Pareceu-lhe que descera estranhamente alguns centímetros e que mudara de arranha-céus, por assim dizer, o que era uma sensação ridícula. Abriu a pasta e surpreendeu-se. Lá dentro, não havia apenas dez páginas, mas o triplo. Isso significava que a memória lhe estava a pregar partidas. Também notou que havia uma outra capa plástica, esta amarela, e não se lembrava de ter alguma vez comprado pastas amarelas. Era cor que detestava. Ficou com a sensação de que alguém entrara no seu escritório, do qual só ele tinha a chave. Passou dias a tentar resolver o enigma. Escreveu num papel todo o conteúdo das pastas azuis (que entretanto, já eram duas) e das três amarelas. No dia seguinte, verificou que em todas as pastas havia novos documentos, os conteúdos estavam a aumentar pelo menos dez por cento ao dia, e no bolso do seu casaco não havia apenas uma lista, mas duas, com números diferentes, ambas escritas com a sua letra. Davam resultados sem nexo para os conteúdos das pastas. Mediu os arranha-céus e verificou que o mais alto tinha 45 centímetros, depois não mexeu mais, mas no dia seguinte já media 48 centímetros. Quando começou a tirar documentos velhos, havia sempre pilhas mais altas e encontrava relatórios que largara semanas antes no caixote de lixo do edifício. Ali estavam de novo. Houve um dia em que não conseguiu escapar do escritório. Foi encontrado morto, sufocado e esmagado, no meio de resmas com as folhas sem nada escrito nelas, todas em branco. Era como se o papel tivesse desabado sobre o seu corpo, cada página leve, mas muitas em conjunto extremamente pesadas.
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Fala-se nos sete samurais, todos heróis, mas houve o oitavo e ninguém ouviu falar dele. Takeyama foi um guerreiro errante em tempos conturbados. Combateu a favor de causas perdidas de gente que nunca lhe agradeceu o sacrifício. Nessa época de injustiças, os camponeses pagavam um preço elevado pela iniquidade dos senhores gananciosos. A vida era fácil para quem exercesse a opressão e a maldade e, pelo contrário, bem difícil para quem pertencesse à inúmera multidão daqueles que apenas pretendem prosseguir com as suas existências, por muito modestas que sejam. Sem trabalho no meio de tais perturbações, Takeyama vendia o braço e a espada (e que excelente espadachim ele foi) a quem pagasse melhor, mas cansou-se dos vencedores e das suas ambições vazias. Por isso, começou a vaguear pelo mundo, em busca de boas lutas, e aceitava por vezes a esmola dos que pouco tinham, que são aliás sempre os mais generosos. Habituou-se assim à solidão ou à companhia dos insignificantes. Percorria campos, vales e florestas, sem rumo e sem abrigo, confortável com os seus pensamentos. Por vezes, passava por uma aldeia devastada, que algum senhor da guerra tinha mandado destruir, e o seu coração sangrava com o sofrimento alheio. Até que um dia se cruzou com um bando que pretendia arrasar uma aldeia que não pagara um tributo. Estes bandidos estavam dispostos a contratar generosamente os seus serviços, mas dessa vez o samurai juntou-se aos camponeses indefesos e organizou a resistência. Foi um combate terrível e os que deviam perder, perderam. A epopeia acabou com a rendição da aldeia, que sob a ameaça dos invasores renegou o seu defensor solitário. Durante a luta desesperada, Takeyama trespassou muitos inimigos, mas acabou por ser abatido à distância por arqueiros. As pessoas de hoje lembram-se dos sete samurais e esqueceram-se deste, talvez por ter perdido. O oitavo samurai lutou pela justiça em circunstâncias impossíveis. Ele mereceu certamente as alegrias do paraíso e, sabendo que fazer o bem é a maior riqueza que podemos ter na vida terrena, preferiu exercer as virtudes da caridade e da honra sem esperar receber algo em troca, apenas por achar que estava ali o seu destino. Takeyama nunca se preocupou em obter a mesma fama que bafejou os outros sete samurais, cujos feitos, na minha opinião, tiveram dificuldade bem menor.
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A estranha epidemia tomou conta da cidade em menos de dois dias. As pessoas dançavam, riam sem motivo, tornavam-se subitamente bondosas e falavam de maneira estranha. A reação dependia de fatores que a ciência não explicou, mas pelo menos as autoridades perceberam que as multidões infetadas tinham o comportamento inverso da normalidade anterior à pandemia. Os que, antes da doença, não sabiam dançar punham-se aos pulos; os tristes desatavam numa hilaridade sem limites; as pessoas mais perversas tornavam-se de repente boazinhas. A maior parte das vítimas pertencia à terceira categoria. Como eu não tive sintomas, juntei-me às equipas de voluntários assintomáticos que tentavam repor o controlo da sociedade. A loucura coletiva exigiu auxílio externo e verificou-se que a causa estava na contaminação da água de distribuição pública, o que explicava a minha situação, pois antes das alucinações tinha bebido apenas água engarrafada. O leitor inteligente está agora a pensar que uma tal epidemia foi algo de positivo e que as autoridades podiam ter deixado andar. Afinal, tratava-se de rir, mostrar boa disposição, agitar o corpo e espalhar a bondade, mas o facto é que esta estranha condição causou importantes estragos: os dançarinos não sabiam dançar e cansavam-se, alguns tiveram até problemas musculares e pisavam por acidente quem se metesse na sua frente; os hilários riam sem critério, de forma parva, faziam péssima figura e começaram a ser afetados pela falta de ar, tendo a mudança de humor causado devastação mental em numerosas destes vítimas desabituadas do riso, para mais expostas à alegria constante e obrigatória. Enfim, reconheço que o caso dos bondosos é mais difícil de argumentar, mas eles começaram a impor a generosidade a toda a gente, exigiram leis que proibiam as faltas de cortesia e mandaram prender quem perdesse as estribeiras. Naquelas cinco semanas da crise, os fariseus foram os piores, andavam pelas ruas em procissões humanitárias, a proibir todas as conversas profanas. Chegaram a espancar dançarinos e joviais, acusando-os de incorreção compassiva. Foi com alívio que vimos estas pessoas recuperarem o seu mau-feitio, regressando às maldades que praticavam no respetivo estado de normalidade nervosa. Pode parecer uma conclusão bizarra, mas a crueldade tem o seu lugar entre nós.
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A família que se mudou para a casa ao lado está a deixar-me com os cabelos em franja. Já telefonei três vezes para a polícia e fiz dez queixas à câmara municipal, por causa do barulho e pelas coisas esquisitas que eles dizem uns aos outros. Não se percebe nada daquela linguagem do sistema de Betelgeuse, ou lá o que é, só ouvi falar que são refugiados, por causa da estrela deles, que dizem que vai explodir, o que pode nem ser verdade, pois ninguém foi lá verificar. As crianças (acho que são crianças, pois têm menor dimensão do que os dois adultos) gritam nas suas brincadeiras e não tenho sossego. Os fedelhos são selvagens e imagino que lá no planeta deles seja possível aquele comportamento impróprio, mas este é o nosso planeta e não devia ser permitido que se perturbe a paz dos nossos bairros. Nós, os humanos, temos regras e gostamos de as cumprir. Ora, estes Betelgeusenses (pouco me importa o que sejam), não têm modos e não se comportam como pessoas. Não se sabe o que pensam, não vão à igreja e teme-se o pior. Pediram asilo, compreendo o imperativo, mas preferia que os políticos me tivessem consultado em referendo. Não concordo nada com estas histórias de darem habitação ao primeiro que nos aparece de mão estendida; sobretudo quando não há apartamentos baratos para nós e logo isto acontecer no meu bairro. A família dos cabeçudos foi colocada na casa ao lado, que estava vazia. Não podiam ter posto esta gentinha noutro sítio? Não suporto ver aquelas cabeças de porcelana cinzenta, aqueles olhos esbugalhados, a má educação, a falta de expressão, que até parece que nos estão a gozar. Dizem que o chefe da família tem emprego, mas quando o confrontei com a sua incompreensão dos nossos costumes, limitou-se a falar pessimamente a nossa língua e prometeu que ia tentar aprender. Tentar aprender, senhor presidente da câmara? Isto é um escândalo. Ou os tiram daqui ou temos o caldo entornado. No mínimo, deixo de pagar impostos.
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Se fosse super-herói, aquele fulano podia chamar-se a perfeita melga. Não conheci pessoa mais chata, aparecia sempre nos momentos inoportunos, dizia coisas inconvenientes, até um pouco grosseiras. Artur podia ser obsessivo com as amizades e, nos namoros, era picuinhas, ciumento e caprichoso, ou pelo menos estas eram as queixas normais das mulheres que se fartavam dele. O Artur tinha o hábito de falar incessantemente, não se calava, interrompia os outros com uma frase irritante, era isso que eu ia dizer, e depois apropriava-se da ideia, convencido de que tinha sido ele o primeiro a defender aquela opinião. Comecei a chamar-lhe o super-melga, como aquelas figuras da banda desenhada, o que era um sarcasmo talvez um bocadinho excessivo. Nunca lhe reconheci mérito e, muitas vezes, quando ele aparecia do nada, eu não conseguia esconder a impaciência. Levava grandes secas, o Artur tomava conta da conversa e ficava em minha casa até tarde, a mastigar sempre os mesmos assuntos, e via-se certamente na minha cara o aborrecimento, a falta de pachorra, pois o homem não perdia o pio e ficava horas a palrar. Bem preso à minha vida, debitava os seus problemas, que tinham sempre a mesma origem: não conseguia desamparar nenhuma loja e as pessoas cansavam-se dele. Se o Artur era assim com amigos e namoradas, não imagino como funcionava no trabalho. Só posso garantir que foi subindo na hierarquia lá na sua empresa e começou a aparecer menos vezes. Andava noutros círculos e perdi-lhe um pouco o rasto. Artur subiu como um barão, às tantas andava metido em altos voos corporativos e ficou uma pessoa importante, o que para mim foi sempre misterioso, pois era um chato dos antigos e as reuniões da direcção da empresa deviam ser filmes para dormir, daqueles russos que duram vinte horas. Abrevio a história, só para dizer que eu próprio passei dificuldades na vida, estava em maré baixa social e os meus amigos tinham dado de frosques. Lembrei-me um dia de telefonar ao Artur e combinar um encontro, para falarmos dos bons velhos tempos. Assim foi, mas eu devia estar nervoso, ou assim, falei e falei durante toda a conversa, dei por mim a interromper o meu amigo, era isso que eu ia dizer, e na cara do Artur percebi sinais de enfado. O super-melga não tinha paciência para estar ali a ouvir o que eu dizia.
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Não fui ouvida por nenhum procurador ou juiz de instrução, nada sei sobre os crimes que cometi, ou melhor, sei que não pratiquei qualquer crime, pelo menos a pessoa que agora sou, pois pelas mulheres que fui em outras vidas não devia ter de responder sem acusação formal e sustentada. Alguns chamam a isto o carma, mas tem outros nomes, eu digo que não passa de injustiça do destino. Não consigo orientar a minha vida e as contrariedades sucedem-se, umas atrás das outras: hipóteses de emprego que se esfumam, dívidas que surgem do vazio, conflitos que não desejo, casamentos falhados, amigos perdidos, a falência bateu-me à porta. Estou no fio de um desespero sem medida. À noite tenho sempre o mesmo sonho estranho, como se o passado me quisesse comunicar os termos da acusação. É algo difuso, mas vejo-me na pele de uma rainha poderosa que fez mal a muita gente. São imagens demasiado violentas e não as quero recordar nesta confissão. Elas repetem-se sem mudanças e implicam ódios infinitos. Os pormenores são pouco claros, não chego a entender o contexto. Será este sonho recorrente uma simples fição da minha cabeça ou aquelas imagens soltas e confusas correspondem a coisas vividas por alguém que fui eu numa existência anterior? Teríamos então de admitir que compreendemos mal a natureza da consciência humana, que a nossa energia não se extingue inteiramente com o desaparecimento do corpo, que há sucessivos ciclos de vida e de morte, que parte da consciência passa para o ciclo seguinte e que esse movimento transfere também um pedaço da responsabilidade e da culpa. Não sei quem fui nesse passado atormentado de um mundo em guerra, mas pago o preço e tenho a inocente esperança de que toda esta especulação seja pura invenção minha. Como explicar, então, os insucessos da vida presente? Os azares que não controlo, a insónia e o desprezo, a solidão? Pois se não fiz nenhum mal, como explicar as minhas desgraças? Preferia ser ouvida por um juiz severo a viver em tal desespero. Entretanto, apenas uma ideia me pode confortar: expiando nesta vida os crimes da minha consciência passada, talvez me liberte para uma futura existência feliz. Não me recordarei disto, mas poderei talvez ter sonhos imprecisos sobre este meu presente, que em dia mais agradável será apenas passado.
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