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O mundo velho

por Luís Naves, em 02.11.18

Por toda a parte vemos a degradação progressiva das estruturas que julgávamos sólidas, do Estado Providência, dos serviços públicos, dos partidos, das grandes corporações e bancos, do trabalho, da família, das igrejas, dos mercados. As corporações perdem influência. As antigas fontes de poder fragmentam-se, por exemplo, o cinema americano, as potências militares, o cartel do petróleo, as grandes burocracias. Os pensadores já não chegam às massas, os políticos dispersam-se na cacofonia do irrelevante, todos falam no aumento dos riscos. Não quer dizer que haja um colapso, mas vivemos num mundo velho e sem fôlego, a abrir fissuras.

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publicado às 11:09

Incapazes de explicar a desordem...

por Luís Naves, em 15.10.18

Entre muitas leituras caóticas, encontro textos de opinião que revelam a crescente perplexidade dos seus autores em relação à mudança política em curso, que alguns identificam como a crise da ordem liberal. Esta mudança é generalizada, pois um pouco por todo o mundo democrático surgem votações surpreendentes, viragens à direita, derrotas inexplicáveis de progressistas, crispações políticas inesperadas, cenas de histeria, candidatos extremistas, discursos sem precedentes. Da Baviera à Suécia, do Brasil à Polónia, dos Estados Unidos à Itália, os cenários baralham-se de forma rápida. A opinião publicada tem duas teses principais: a alucinação dos eleitores e a perversidade das redes sociais. Ambas levam ao mesmo corolário: se as pessoas não sabem votar, suspendam-se os processos eleitorais. Fico sempre surpreendido com estas opiniões, que estão a generalizar-se na discussão nacional. Custa-me ver liberais que, em nome da defesa da democracia, criticam a livre opinião dos cidadãos e as suas escolhas livres. Incapazes de explicar a desordem e o grau de descontentamento dos eleitores, os progressistas estão a banalizar conceitos, acusando cada novo adversário de ser fascista, como se o fascismo pudesse ser banalizado.

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publicado às 12:03

Estado de insegurança

por Luís Naves, em 30.08.18

Na Europa Ocidental começou uma transição política que pode até ser o início de uma grande transformação. Esta mudança é alimentada pelo descontentamento de uma franja assinalável do eleitorado, a metade mais pobre da chamada classe média, que foi a parte derrotada na recente crise. Os motivos da insurreição são complexos e levarão anos a ser compreendidos, mas podem estar relacionados com o impacto de novas tecnologias, a contracção dos generosos sistemas de protecção social, a degradação dos serviços públicos, a insegurança física que muitas pessoas sentem nas próprias cidades e a pressão salarial dos migrantes. É fácil observar que cada um destes fenómenos tem maior efeito sobre pessoas mais pobres, as que vivem em bairros sociais ou as que dependem de empregos menos qualificados, a antiga classe operária, que os partidos de esquerda abandonaram. Em todos os países ocidentais, parte substancial da classe trabalhadora empobreceu, as fábricas mudaram de local e os novos empregos são mal pagos. A revolta que se designa como populista será a resposta destes eleitores à crescente insegurança, mas é também uma reacção a problemas concretos que as chamadas elites se recusam a reconhecer. Quando falo em elites, refiro-me ao conjunto de partidos tradicionais, burocracias e organizações, hierarquias académicas, grupos de influência empresarial, de intelectuais e vedetas mediáticas, ou seja, a bolha do topo, cuja narrativa da realidade rejeita qualquer argumento dos descontentes, desprezados como xenófobos, nacionalistas, irracionais, até como fascistas.

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publicado às 12:07

Frequências desencontradas

por Luís Naves, em 24.08.18

Chegámos a Lisboa há uma semana e já dá para sentir o desânimo. Em Portugal, parece que se infiltra no corpo a vontade de não bulir um músculo. Tudo está pré-determinado. Julgo que estamos a assistir ao final de uma época: representados e representantes divergiram de tal forma, que passaram o ponto de não retorno. A situação lembra a de um filme razoavelmente mau, com John Wayne, que vi na televisão, Inferno Branco, onde um avião que aterrou no gelo é procurado por uma frota de aparelhos que procuram seguir sinais de rádio cada vez mais fracos. A metáfora aplica-se à realidade contemporânea: por vezes, é possível ouvir as mensagens de um lado ou do outro, mas no essencial as duas partes do conflito falam em frequências desencontradas. As elites no poder estão dispostas a não ceder um milímetro e não vão aceitar a legitimidade de qualquer revolta eleitoral; os eleitores, por sua vez, já não acreditam em nada do que ouvem, e estão cinicamente alheados, à espera de que o edifício se desmorone. Julgo de daqui a uns anos vamos discutir se votar é assim tão importante. Até lá, as instituições vão separar-se das populações que deviam servir, dirigidas por elites iluminadas que não respondem perante os eleitores. Estes só terão direito a escolhas rigorosamente idênticas. O povo perderá a voz. Portugal infelizmente já funciona desta forma, tornou-se um protectorado da União Europeia, que por sua vez é o triunfo do Castelo de Kafka, indiferente ao que acontecer aqui, desde que haja obediência a uma hierarquia com agenda misteriosa. Portugal é hoje um país a fingir, o pátio das cantigas no seu esplendor.

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publicado às 12:04

Doce ilusão

por Luís Naves, em 18.05.18


A sociedade portuguesa anda muito doente e a melhor analogia que me ocorre é a da diabetes. Uma sociedade diabética, lentamente envenenada pela doce ilusão de um bem-estar que se acumula em todos os tecidos e sistemas, destruindo os órgãos, a visão, a própria inteligência. A nossa realidade é a de velhos obesos, sem futuro e com memória imprecisa, que morrem devagar sob o efeito tóxico de um mal subtil, que lhes invade e contamina as células, sugando a vontade de viver, adormecendo a razão, comprometendo a fertilidade. O narcótico que separa as classes, o sonho do consumo infinito, ainda degrada a natureza e destrói o clima. Este corpo envelhecido, inseguro, pressente e teme o declínio, embora esteja viciado no conforto do prazer efémero e no suave embalo de um tédio sem desígnio.

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publicado às 19:30

Journal

por Luís Naves, em 01.05.18

A minha abordagem à escrita de um diário é jornalística e não é por acaso que este género em inglês se chama journal (o mesmo em francês). Interesso-me sobretudo pelos factos em meu redor, faço pequenas observações do quotidiano, coloco aqui as minhas opiniões e dou conta das notícias relevantes, à maneira de um testemunho do meu tempo. Admito que isto seja pouco interessante daqui a dez anos, como acontece com muito jornalismo. Ninguém se irá interessar pelas minhas opiniões menos certeiras ou por acontecimentos que faziam parte da espuma da minha época. Por outro lado, um diário sobre a intimidade ou sobre as pessoas que conheci seria uma perfeita sensaboria. A minha biografia não tem interesse, mas acredito que o relato do presente possa ser para mim uma boa leitura dentro de alguns anos, já que o futuro promete ser bem diferente daquilo que conhecemos. Ao ler estas páginas poderei olhar o passado entretanto esquecido, a espantar-me, dizendo em sussurro: «estão, isto foi assim»? poderei recordar que naquele tempo começava a falar-se da inteligência artificial e de vez em quando víamos um carro eléctrico a circular na estrada; foi quando começou a sério aquela cena do streaming nas televisões, ainda víamos canais à maneira antiga, mas só passavam intermináveis debates sobre futebol, em que indivíduos histéricos espumavam irritações a falar de um único lance durante horas; foi antes da terceira bancarrota, quase nem deu para recuperarmos da segunda; e lembras-te de como as pessoas se vestiam? do fast-food? dos sem-abrigo que se faziam acompanhar de cães e gatos de estimação? do presidente que era só beijinhos e selfies? (parece tão ridículo hoje, tão fora de moda, isso das selfies); e lembras-te de como se usavam tantas palavras em inglês (só neste texto já vão quatro palavrinhas)? e os filmes eram maus à brava e a excitação que havia com coisas péssimas, ao mesmo tempo que não percebíamos o que era bom; e os pedantismos que agora nos soam cómicos, os turistas parvos, a morte dos jornais, a especulação imobiliária, os terroristas barbudos que se lançavam de carro contra multidões, a ingenuidade pacóvia das conversas intelectuais? o pensamento mágico dos que ainda estavam no século anterior (ouço-os daqui, cgtp unidade sindical), a vaidade dos artistas que hoje já ninguém recorda, e ainda havia primaveras mas já eram mais curtas do que antigamente, lembras-te? passávamos do oito para o oitenta no tempo em que o diabo esfregava o olho?

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publicado às 12:41

Pequenos soldados

por Luís Naves, em 12.04.18

Nos jornais já não se escrevem crónicas de jeito e nos jornais online este género jornalístico está extinto. Há, pelo contrário, grande profusão do género opinativo, que também não é para todos, sendo apesar de tudo fácil fazer uma boa imitação. Para a reportagem não há dinheiro e a que se faz é sobre temas leves, quase sempre com a tese já programada. De facto, e por muito que me custe esta opinião, começa a ser difícil justificar a existência de jornais em papel. Para ler as notícias de ontem? Mas já vimos tudo nos portais de informação na internet, já lemos até os comentários nas redes sociais, demos uma vista de olhos na imprensa estrangeira online, vimos as televisões, por isso temos uma ideia muito precisa do noticiário básico. O que podia ainda diferenciar os jornais foi aquilo que desapareceu: a boa prosa, a história original que nenhum outro órgão apanhou, a opinião heterodoxa (mas certeira) e a crónica capaz de nos fazer ver a realidade de outra forma. Os jornais suicidaram-se e julgo que esta morte começou naqueles anos da concentração dos meios de comunicação em grupos económicos, como pequenos soldados em grandes exércitos ao serviço de enormes interesses.

 

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publicado às 18:39

Escândalos de Hollywood

por Luís Naves, em 04.03.18

Em véspera da cerimónia dos óscares, não é possível ignorar a extraordinária decadência a que chegou Hollywood. Não sei se é o infantilismo da Marvel, o politicamente correto, a violência ridícula ou algo de mais sério, mas olhamos para a lista dos óscares de melhor filme e não encontramos um vencedor de jeito desde 2003. Longe vão os tempos áureos, entre 35 e 44, onde nunca houve menos de duas obras-primas a disputar cada troféu. Em 1942, no óscar de melhor filme, venceu O Vale Era Verde e o derrotado principal foi Citizen Kane. Venha o diabo e escolha! Num único ano, concorreram duas obras inesquecíveis, que devem constar em qualquer lista honesta dos dez melhores filmes americanos de sempre. Em contraste, a partir de meados dos anos 70, o cinema americano passou a exibir uma mediocridade geral, pelo menos na lista de vencedores. Em 1975, o histórico Barry Lyndon perdeu para o histérico Voando Sobre um Ninho de Cucos. Em 76, imagine-se, Taxi Driver perdeu para Rocky. E em 1979, Apocalypse Now perdeu para a xaropada Kramer vs Kramer. A última película de qualidade indiscutível a ganhar o óscar de melhor filme foi O Senhor dos Anéis, em 2003, e o último escândalo remonta a 2006, com a derrota de Cartas de Iwo Jima por um filme chamado The Departed. Entre os vencedores, não há uma obra-prima marcante desde 1972, ou seja, desde O Padrinho, apesar das vitórias justíssimas de Imperdoável, em 1992, e do já referido Senhor dos Anéis, dois filmes brilhantes que, apesar de tudo, não têm a mesma importância do primeiro. Para mim, é um mistério: qual a razão do declínio? Hollywood já foi a grande máquina ideológica do mundo ocidental, mas agora é apenas uma maquinaria sem ideias. Há dinheiro, tecnologia e talento, mas os melhores produtos são apenas sofríveis ou engraçados; os piores, embora intragáveis, são muitas vezes os premiados.

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publicado às 14:00

Sobre os heróis de cada tempo

por Luís Naves, em 26.02.18

A cultura popular dominante tende a reflectir a forma como as pessoas se interpretam a si próprias e a maneira como encaram o mundo em que vivem. Se olharmos atentamente para a ideologia em pano de fundo nas histórias dos filmes relevantes de cada época, podemos encontrar, no período após a II Guerra Mundial, três grandes ciclos narrativos. Na primeira fase, que corresponde à reconstrução que ficou conhecida nos EUA por ‘Grande Sociedade’, as personagens positivas são geralmente indivíduos de força, construtores e pioneiros, que resistem à tirania e ao cinismo da mediocridade ou da ganância. A coragem, a resistência e a autoridade moral são os valores desta época de poucas ambiguidades, caracterizada pelo progresso, a confiança e o triunfo da ordem. No final dos anos 60 e início dos anos 70, ocorreu uma transformação social e os heróis deixaram de ser pessoas carregadas de certezas, passando a favorecer a ideia do rebelde que procura uma causa capaz de preencher o seu vazio. As ideias dominantes da cultura popular passaram a ser liberdade, solidariedade e contestação, e foi assim até à crise de 2008, que talvez tenha lançado um novo ciclo. Agora, a rebeldia e a liberdade não são propriamente ideias valorizadas, pelo contrário, parece que introduzem uma espécie de opressão do pensamento. Os heróis deste ciclo estão sobretudo desiludidos e divididos, terão problemas de identidade e serão forçados a escolher soluções menos individualistas: o seu eventual inconformismo será menos compreensível para o público. Esta nossa fragmentação implica que cada dose de realidade esteja amplamente contaminada por fantasias (não quer dizer que isso não tivesse acontecido no passado, o que significa é que hoje já não podemos dizer que uma realidade aceite como tal é mais autêntica do que outra qualquer). Estaremos talvez ainda à procura dos heróis do nosso tempo. O que os fará dar o peito às balas? Antes, foi a necessidade de vencer o totalitarismo, depois foi a solidariedade com os oprimidos. O que virá agora?

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publicado às 13:57

Velhice

por Luís Naves, em 20.02.18

Tornou-se de bom tom afirmar que os grandes romances são escritos aos 30 anos (veja-se a tendência nos prémios) ou que um líder partidário não pode ter mais de 40, embora não haja qualquer prova de que isso seja assim, pelo contrário, não faltam exemplos que desmentem tais preconceitos. O mesmo princípio aplica-se mais ou menos a tudo o que mexe, à moda, aos padrões de beleza, ao entretenimento, aos actores, à música, à opinião ou ao jornalismo: vivemos numa obsessão pela novidade e a carinha laroca, preferimos a espuma das coisas ou a leveza adolescente. Uma sociedade envelhecida despreza tudo aquilo que resulte da sua experiência e procura o que não tem, que é juventude, enquanto mergulha no caminho da senilidade e da paralisia institucional, incapaz de mudar. Estamos a destruir a memória e deixámos de nos preocupar com o futuro. Temos uma população onde haverá imensos velhos depauperados, incapazes de pagar os cuidados de que vão necessitar e cujas poupanças foram e serão destruídas nesta crise e na próxima. Nem quero pensar no fardo da próxima geração, mas o que já vemos é a indiferença em relação à violência sobre os idosos, em simultâneo com a indignação extrema em relação a coisas de nada, como é próprio de quem não deseja enfrentar o vazio que está ali à frente, mas viver somente no conforto ilusório do outono.

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publicado às 19:20


Autores

João Villalobos e Luís Naves