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Pedaços do mundo e grãos de areia
Os primeiros blogs apareceram há vinte anos, ainda toscos, mas democratizaram a escrita popular. Qualquer cidadão podia dizer em público aquilo que pensava, numa expansão extraordinária do conceito de cartas ao diretor que então ainda era comum nos jornais. No início foi engraçado, havia gente com ideias novas, vários autores tiveram êxito e migraram para a política e para a imprensa. Depois, os leitores preferiram outras plataformas e os blogs adaptaram-se a audiências mais pequenas. Hoje, servem de oficina e escrita de café, funcionam como diários e dispersos, podem basear-se em opiniões, memórias ou em farrapos de ficção. Estes espaços têm estilos muito diferentes e alguns dos melhores cumprem a função literária da resistência à passagem do tempo. Os blogs são coleções de crónicas sem preocupação com a atualidade, por isso o formato devia ser mais estimado pelos leitores. Sobrevivem inúmeros exemplos de qualidade. Não tenho dúvida de que se esta tecnologia existisse no passado, Fernando Pessoa, assinando Bernardo Soares, teria escrito um blog pouco lido na altura, chamado o Livro do Desassossego. Camilo podia ter criado outro com o título Noites de Insónia.
imagem gerada por IA, Microsoft Image Creator
Temos a sensação de que tudo muda à nossa volta e de que, ao longo dos anos vividos, fomos testemunhas de alterações sem precedentes nas sociedades humanas. Pensando melhor, talvez não seja bem assim. Existe de facto uma aceleração do mundo e somos contemporâneos de grandes avanços, mas será mesmo um momento singular da História? Uma pessoa que em 1925 olhasse para os 25 anos anteriores teria muito mais com que se espantar. A moda, a ciência, as artes, a política, tudo isso mudara de forma radical. Em 1900, já existiam a lâmpada elétrica, o automóvel, o cinema ou o telefone; 25 anos depois, estas não eram invenções recentes, mas realidade do quotidiano. Em 1925, havia máquinas voadoras e as pessoas cultas conheciam a teoria da relatividade e também sabiam que a Via Láctea era apenas uma galáxia entre muitas. Em comparação, o período entre 2000 e 2025, um quarto de século, teve igualmente guerras, epidemias e crises financeiras, mas a vida não mudou assim tanto. Vestimos mais ou menos da mesma maneira, usamos telefones engraçados e ainda estamos à espera da inteligência artificial. De resto, foi mais do mesmo, a internet, a globalização e o conflito entre norte e sul.
imagem gerada por IA, Night Café
Muito do que se está a passar na política internacional pode ser explicado pela procura de recursos minerais e de fontes de energia. As potências querem assegurar o seu domínio sobre reservas de matérias-primas e, para muitos países, isso pode constituir uma maldição. Entre os motivos da guerra da Ucrânia encontra-se o controlo de minerais críticos, sobretudo no Donbass, onde decorrem os combates mais violentos. Na semana passada, uma mina de lítio foi conquistada pelos russos. As indústrias militares ocidentais terão dificuldade em obter titânio (o do nosso lado é processado em Zaporijia e no Canadá). A Gronelândia, para citar outro exemplo, tem vastos recursos naturais, de grafite e urânio, além de terras raras (minerais que não são necessariamente raros, mas vitais para a transição energética). A Europa tem um interesse elevado na Ucrânia por causa da geologia (alumínio, lítio, urânio, ferro), entre outros, algumas terras raras, como berílio ou zircónio. Aquele país tem solos agrícolas ricos que garantem a autonomia alimentar da UE por séculos, também haverá acesso a combustíveis fósseis, enfim, talvez o altruísmo tenha algum papel nestes interesses.
Um dos enigmas contemporâneos é a estagnação secular das artes no planalto pós-moderno. Da era clássica ao modernismo, sucederam-se movimentos e ruturas. Cada geração inventava uma nova maneira de escrever, de pintar ou de fazer música. A partir da II Guerra Mundial, as mudanças estéticas foram absorvidas num vasto bolo de gelatina. Há uma estimativa credível segundo a qual se publicam por ano mais de 2 milhões de novos livros, número de obras que inclui autopublicação, publicação digital, volumes anónimos, diferentes traduções. Desde a invenção da Imprensa, a contagem vai em 160 milhões de títulos, mas a aceleração na nossa época está a produzir quantidades que ninguém consegue absorver. A leitura é hoje para todos, mas a literatura continua a ser um interesse de minorias. As salas de concertos de música antiga estão cheias, não há falta de público, mas como se explica o marasmo na música popular nos últimos 50 anos? Aliás, podemos ouvir milhares de vezes uma obra que alguém do século XIX ouvia uma vez na vida, mas a música contemporânea não produziu nenhuma vanguarda escandalosa nos últimos 50 anos. Talvez isto seja também uma crise de espiritualidade, da nossa vida materialista e sem tempo para pensar.
Está a crescer um movimento de demolição que visa erguer uma nova cultura sobre as ruínas da anterior. Os ateus dizem como deve ser a missa, minorias agressivas não deixam falar mais ninguém, visões estreitas tapam as restantes. Há uma revolução em curso que manipula a linguagem num processo digno de Orwell. Por exemplo, pratica-se a omissão de informação em nome da perseguição da desinformação e munições de guerra são compradas com dinheiro do Mecanismo Europeu de Apoio à Paz. Quando as empresas falam em "crescimento pessoal" isso significa que os empregados vão trabalhar mais horas por menos dinheiro. Além da nova língua, existe o cancelamento, que suprime vozes incómodas e persegue as opiniões divergentes. Até a literatura do passado está a ser revista, pois quem controla o passado controla o futuro. A triunfante cultura popular valoriza o feio, a agressividade e a violência gratuita. Nas universidades, limita-se a livre circulação de ideias e os meios de comunicação estendem a passadeira vermelha a todos os grupos que contestem instituições e nações antigas, tradição, heterossexualidade e família.
Talvez seja uma hipótese idealista, mas a globalização parece perder terreno, com muitas pessoas a reagirem à limitada opção de terem de escolher entre o poder das grandes corporações ou o poder dos grandes governos. Já ninguém atura esta corrida pela escala e a competição darwinista. É possível inventar estilos de vida alternativos, com pequenos negócios e tecnologias que permitem produzir localmente (as impressoras 3D), trabalhar de forma remota ou ter acesso a conhecimentos sofisticados, nomeadamente através da inteligência artificial, para transformar universidades de província ou hospitais concelhios. As pessoas querem melhorar a sua qualidade de vida. O consumo, o ensino e o lazer serão diferentes em comunidades mais pequenas. Os meios de comunicação, a política, a energia, as indústrias, tudo isso será descentralizado. A globalização, tal como a conhecemos, criou homogeneidade, desindustrialização e desigualdades económicas. Este novo movimento a favor da vida local trará diversidade, empregos e harmonia social, provavelmente sociedades mais coesas e seguras.
Um ditado diz que tudo, não importa o quê, pode tornar-se "tão incerto como o jantar do cão". Vivemos nesse género de época. Por isso, devia fazer sentido reunir pequenos textos sobre o quotidiano, numa espécie de blogue para a gaveta. Não tenho leitores, o que fica aqui não é jornalismo nem leituras, embora resulte talvez numa reflexão sobre o quotidiano. O que hoje for escrito ganhará amanhã um significado inesperado. Talvez queira levar em consideração um pedaço de sabedoria popular, lido algures, sobre o "ressentimento ser igual a engolir veneno e esperar que a outra pessoa morra". Os rancores paralisam e a preguiça mata. Escrever tem de ser uma profissão sem distrações, o exercício diário e livre de alguém que, enquanto remar, continua vivo, mesmo que esteja perto de perder o fôlego, mesmo que a sua memória tenha já ultrapassado o estado incandescente do ferro em brasa e, dessa forma, seja ainda mais difícil moldar o que se deve dizer. E seguir a ideia de André Gide no diário, “jornalismo é tudo o que for menos interessante amanhã do que hoje”. Por isso, aqui, não tenciono fazer jornalismo.
Vários dias sem tocar no romance e ando nervoso. O livro avança a bom ritmo, não me interessa se cumpre os requisitos teóricos. Aliás, a teoria não me interessa. O estilo, o conceito, a carpintaria (como se diz), se está na moda ou o que vão pensar os leitores, nada disso me interessa. O destino mais certo do Homem Morto é ficar na gaveta, por isso, o que fizer é o que deve ser. A única preocupação é que aquilo mexa, que o leitor de repente consiga imaginar uma coisa em movimento, abstraindo-se de mim, ignorando a minha presença: não posso ser mais do que um árbitro quase invisível. As editoras não querem ficção, desistiram de contar histórias, dizem que as pessoas estão contentes na Netflix, onde se encharcam de imaginário. As livrarias andam cheias de livros para o Natal, clássicos e não-ficção, uns raros romances contemporâneos de nomes sonantes; o livro é um presente popular (compram-se os nomes conhecidos, mas ninguém os lê) e os escritores populares são aqueles que vendem; os que vendem são os que dão entrevistas na TV, onde nos programas culturais circulam sempre as mesmas figuras, que falam sobre uma data de coisas fáceis de esquecer, em frases floreadas, de preferência sobre tudo o que não seja literatura. Ninguém quer saber aquilo que o escritor pensa sobre o seu ofício, os temas culturais são propriedade da esquerda; nunca há escândalos, a não ser quando o artista X diz mal do artista Y, com sarcasmos e bisbilhotices, mas isso é para cómicos ou jornalistas e esses não são para levar a sério; no mundo sério, pelo menos em público, ninguém diz mal, está tudo desinfetado.
A decadência do Ocidente é um elemento óbvio da paisagem. Existe um mal-estar geral e é impossível não reparar nele. As pessoas de cada época têm dificuldade em compreender o motivo das coisas se degradarem depressa, mas fazendo comparações com o seu tempo de juventude, cada observador percebe se o mundo vai colina abaixo ou que se caminha para algum futuro decente. Não é necessário ser cínico: o contraste mostra o declínio. Em 1989, foi fácil sonhar com um mundo melhor, havia esperança, a liberdade era real. Houve depois décadas de prosperidade que dificilmente serão repetidas. Hoje, proliferam minorias agressivas que, em muitos assuntos, tentam diminuir a liberdade de expressão da maioria; os partidos políticos estão em falência ideológica, incapazes de selecionar líderes competentes; a política é medíocre, as discussões centram-se em banalidades, a racionalidade foi posta de lado. Vivemos na instabilidade, somos governados por burocratas sem ideias, a sociedade já não conta, mas qualquer protesto é descartado. Existe no Ocidente uma crise migratória e outra crise energética impostas por interesses onde convergem grupos minoritários, rentistas gananciosos e burocracias não-eleitas. O retrocesso da religião e da demografia é irreversível. A condescendência do poder está por todo o lado e quem lhe resistir perde o emprego, ou é removido do espaço público. A democracia contemporânea despreza os eleitores e os políticos ignoram o povo; os meios de comunicação indignam-se com a própria opinião pública, de que se envergonham todos os dias.
Muitos dos comentadores mediáticos têm dificuldade em ver as várias componentes simultâneas dos problemas que nos afligem, por isso para eles as coisas não são demasiado alarmantes. No entanto, esta crise será mais séria do que as anteriores, pois estão a acontecer vários fenómenos ao mesmo tempo, valendo o lugar-comum da tempestade perfeita. Não admira que as grelhas de análise fracassem. Hoje, falava-se das taxas de juro e o analista só percebia a questão das hipotecas; não conseguiu mencionar os efeitos na economia, na produção e no emprego, nem referiu a escassa probabilidade de isto ficar por aqui. No mesmo noticiário, havia notícias que permitiam perceber a floresta: menos consumo, recessão à vista, a ameaça de uma crise de dívida, a inflação elevada, o problema da energia. As famílias enfrentam contas de eletricidade proibitivas, subidas abruptas da renda de casa, cabaz de mercearia mais caro, instabilidade do emprego, mas o tipo só via as rendas. O mesmo para a Ucrânia, onde os analistas não conseguem explicar o motivo de ser melhor uma ameaça de guerra nuclear do que um processo de paz. O conflito está a provocar um choque energético na Europa, a alimentar a inflação mundial e a tornar o planeta um sítio ainda mais perigoso. Na rádio, um jornalista experiente ria-se de um comunicado da embaixada russa, segundo o qual as empresas de armamento estavam a testar armas na Ucrânia. “Onde é que já ouvimos isto?”, ironizava, sem rebater a afirmação. O facto é que estão todos a testar armamento, incluindo os russos, com alguns dos sistemas vendidos como pãezinhos quentes. Neste conflito, as regras do capitalismo foram postas em causa e os países ocidentais continuam a usar mecanismos condenados, como é o caso do cartel de compradores a limitar o preço de compra (o vendedor não vende, claro). Tudo para inglês ver. Os líderes dizem “é preciso que a Rússia perca”, mas não podem acreditar naquilo que dizem, pois isso inclui o risco de guerra nuclear onde todos perdiam. A hipocrisia atinge níveis absurdos: basta citar o caso da Bélgica, que continua a comprar diamantes à Rússia, enquanto parte da população da Europa regressa ao aquecimento por lenha por causa das sanções. Entretanto, a Ucrânia está devastada, bombardeada e praticamente às escuras, mas os senhores do castelo continuam a enumerar as brilhantes vitórias do exército ucraniano e ninguém menciona as baixas elevadas. O negócio, naturalmente, está na reconstrução daquilo que sobrar.