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O crime compensa

por Luís Naves, em 05.07.25

Está em andamento um dos maiores crimes da história recente, a expulsão de dois milhões de pessoas da Faixa de Gaza, talvez até a expulsão de parte dos cinco milhões de palestinianos que vivem na Cisjordânia. As atrocidades são quotidianas e os relatos são insuportáveis. Soldados com ordens para disparar sobre filas de desgraçados que procuram comida, uma população tratada abaixo de gado, os aviões das operações contra o Irão a largarem sobre Gaza indefesa as bombas que sobravam. Destruição insensata, fome provocada, Israel perde a sua alma nesta calamidade de proporções bíblicas. A vida em Gaza é insustentável e, sendo assim, fica justificada a limpeza étnica em larga escala. Na realidade, estamos a assistir a um genocídio sem paralelo no século XXI, ao qual se seguirá a transferência organizada dos sobreviventes. Há estimativas que apontam para 200 mil mortos (velhos sem medicamentos, crianças de tenra idade), sendo que as vítimas diretas dos bombardeamentos ultrapassam as 60 mil, mais alguns milhares enterrados sob os escombros. O ocidente lava as mãos como Pilatos e levará tempo a recuperar moralmente. Nas discussões públicas, isto aceita-se com frieza.

publicado às 12:13

Os jornais antigos

por Luís Naves, em 02.07.25

Basta uma curta leitura de uma hora da imprensa nacional e encontram-se as mais incríveis tolices. À falta de assunto, os colunistas fazem raciocínios estranhíssimos e tentam demonstrar teses verdadeiramente bizarras. Antigamente, os jornais não tinham este excesso de opiniões fracas. Comunicavam o essencial das notícias e faziam o papel das televisões, em crónicas e reportagens escritas numa prosa visual, por vezes divertida, sempre descritiva, com abundância de pormenores, cores, sensações. Agora, temos a discussão enviesada, por tudo e por nada. Nas redes sociais, idem: toda a gente tem a opinião engatilhada (não serve para nada, mas a necessidade é universal). Não admira que as pessoas abandonem a leitura dos jornais, com a respetiva abundância de editoriais pomposos ao alcance de um Facebook mediano. As maravilhas tecnológicas prometiam um futuro brilhante para a comunicação: as pessoas pagavam pela qualidade e os algoritmos ajudavam a selecionar o melhor material, mas o lixo trivial está a travar este progresso possível. Temos nivelamento por baixo e dispersão dos leitores, sendo impossível financiar este modelo. Ninguém paga por banalidades.

publicado às 12:41

Dinheiro comum

por Luís Naves, em 01.07.25

A Europa caminha para um momento de divisão e paralisia capaz de matar o seu projeto político, a imitar o que aconteceu com o império austríaco, que definhou e estagnou até ao colapso, confrontado com a modernidade e incapaz de se adaptar. O modelo social baseado em pensões (o estado vigente na UE) está agora ameaçado por um projeto ainda mal explicado, o qual visa desviar as poupanças elevadas dos europeus para um mercado de capitais com inovações, recheado de riscos. Para os burocratas, o dinheiro está "parado no banco", pois os cidadãos não precisam de arriscar o que poupam em investimentos mais rentáveis, mas também mais voláteis. Será preciso desmantelar o estado social para convencer a população a investir à maneira americana? O facto é que a Europa precisa de dinheiro: o dilema é correr às poupanças ou aumentar a dívida. É urgente financiar a recuperação económica, mas também pagar o reforço da defesa. Aqui, os europeus agitam o papão russo: Moscovo vai invadir, apesar da abundância de artigos que nos explicam a derrota iminente da Rússia na Ucrânia, onde um exército de bêbados, sem botas nem munições, continua a usar chips de máquinas de lavar roupa.

publicado às 11:31

Para que serve a opinião?

por Luís Naves, em 09.06.25

Para que servem as opiniões? Agora, é igual ao litro, como se diz. As conversas inteligentes estão a extinguir-se e isso faz parte da nossa época de extremos, uma época em que não se termina um raciocínio, sendo tudo reduzido a fragmentos consumidos fora do contexto, transformados pela maldade da interpretação abusiva. Triunfa a ideia defensiva embrulhada em papel colorido, o pensamento fácil e superficial para consumo das massas. Não queremos dificuldades, que alguém nos lembre que isto não começou no vácuo e que deviam ser consideradas subtilezas. As opiniões deixaram de ser respeitadas, a conversa civilizada desapareceu, todos querem ouvir o eco dos seus pensamentos, a confirmação das suas visões, por mais estreitas que sejam. As opiniões que mais contam, agora, são aquelas que limitam o pensamento dos outros, que condenam e encontram defeitos. Para mais, fala-se para encher tempo de antena, atiram-se coisas para o ar. O que não é memorável perde inércia e é devidamente esquecido. Ficam apenas as impressões, não vale a pena dizer o que se pensa, é como falar na rádio, mas na frequência errada, onde ninguém está a escutar.

publicado às 12:31

Factos diversos

por Luís Naves, em 04.06.25

Leio textos anteriores deste Fragmentário e, em muitos casos, não entendo bem o assunto que me preocupou. A política envelhece depressa: aquilo que nos surpreendeu era afinal uma brisa a passar levemente. Escrever todos os dias cansa imenso e pode ser inútil. Muitas vezes, caímos na tentação dos factos diversos, da maionese. Podia escrever mais vezes num tom de repórter, mas a minha vida é um filme monótono. As observações seriam triviais, mencionando a gentileza de uma tarde ou o bulício da cidade, a viagem saloia, a reflexão superficial sobre um livro. Podia explicar encontros com os meus contemporâneos, mas sou um eremita e conheço pouca gente. Podia falar das minhas intimidades, mas era um pouco ridículo (quem poderia interessar-se?). Era possível incluir memórias, mas não tenho biografia de jeito e, de resto, a minha memória é péssima. Por isso, escrevo muitas vezes sobre acontecimentos que me pareciam dramáticos na altura, mas que se revelam apenas efémeros. As eleições, o episódio parlamentar, a crise inesperada, as ameaças mundiais, tudo fácil de esquecer. Fascinante nesse dia, mas muita parra para pouca uva.

publicado às 11:56

A morte do velho sistema

por Luís Naves, em 03.04.25

No fundo, não me apetece muito escrever sobre política, mas é difícil escapar ao burburinho dos acontecimentos. Aquilo que vemos da realidade parece conter demasiado caos, mas esta é a natureza da transição contemporânea, a morte do velho sistema do homem de Davos e o nascimento da nova ordem marcada pela brutalidade de líderes que não procuram esconder o que pensam, pelo contrário, estão entretidos a partir a loiça de porcelana e a cuspir nos tapetes dos salões elegantes. Não é que os anteriores fossem menos brutais, essa foi a sua ilusão mais conseguida. Era tudo financeiro e sem alma, executado no sussurro das torres de marfim. O anúncio de dez mil despedimentos fazia subir a empresa em bolsa, pois os investidores sabiam que isso implicava deslocalizações, minúsculas margens esmifradas, migrações de indústria e mais dinheiro sem cheiro nem pátria. Os trabalhadores só serviam para consumir sempre as mesmas coisas e votar sempre nos mesmos capatazes. Eram descartáveis e fáceis de substituir por hordas dóceis. No tempo anterior, o verdadeiro poder era discreto e burocrático. O próximo será disruptivo e tecnocrático, estará baseado na vertigem. A globalização vai recuar e teremos zonas de influência imperiais.

publicado às 18:32

Orwellianos

por Luís Naves, em 09.02.25

Um dos argumentos mais pobres dos defensores da guerra é a ideia de que negociar a paz na Ucrânia será uma capitulação semelhante à de Munique, em 1938. Tudo se reduz à analogia hitleriana. Estas pessoas pensam que é preciso continuar a combater a Rússia, embora nunca concluam que a Ucrânia não tem capacidade para vencer, o que só aconteceria se houvesse tropas ocidentais no campo de batalha. Moscovo diz que atacará imediatamente estas forças. Querem enviar soldados? Os americanos já disseram que não, o que leva à pergunta inevitável: quem o irá fazer, sabendo que isso provocará a III Guerra Mundial sem proteção americana? A que se deve esta alucinação? Manter o conflito, mas apenas se houver desgraçados de outro país dispostos a morrer? Não aceitar a neutralidade da Ucrânia nem reconhecer os erros de estratégia que criaram esta trapalhada, levando todo o planeta ao holocausto nuclear? Deve existir um motivo racional para estes delírios, mas não se vislumbra. O heroísmo retórico considera putinismo defender um cessar-fogo e o rótulo até se aplica ao Vaticano. Se houver paz, haverá guerra, dizem estes orwellianos bloqueados no absurdo.

publicado às 12:35

Ninguém pode ser otimista

por Luís Naves, em 05.12.24

Ninguém pode ser otimista quando há uma guerra violenta às nossas portas e assistimos a cenas de barbárie no Médio Oriente (ali, está tudo a partir-se). Não é bom sinal ver sociedades perigosamente fragmentadas, exibindo divisões internas que não se viam há décadas ou as feridas de embriões de conflito civil. As tecnologias do futuro foram sempre olhadas com preocupação, mas esta época parece diferente, pois a inteligência artificial não é apenas audaciosa, mas sobretudo temerária. Pela primeira vez, a humanidade não controla completamente o desenvolvimento de uma tecnologia. O mundo contemporâneo tem outros sinais inquietantes, como a proliferação de estados falhados, a bolha de dívida, a degradação da educação, existe também aquilo a que podemos chamar a cultura vazia do espetáculo, que talvez não seja mais do que a febre elevada de uma civilização em decadência. Estamos a terminar um tempo e a começar outro, talvez os historiadores de amanhã possam compreender melhor estes processos, mas não me atrevo a dizer que venha aí um período de prosperidade e paz. Talvez até seja o nascimento perturbado de uma nova Era Dourada, mas por agora não tem aspeto disso.

publicado às 12:42

A Europa surda e fraca

por Luís Naves, em 27.11.24

A nova Comissão Europeia de Ursula von der Leyen foi aprovada e o que mais chocou nos discursos foi a parte bélica. Bruxelas tem novas ambições na defesa e, se dependesse do palavreado, estávamos em guerra com a Rússia. A comissão devia obedecer aos países membros, mas corre em pista própria. Ninguém a elegeu, não tem legitimidade democrática e não devia falar em nome dos povos europeus, mas considera-se o pináculo do poder. A extensão da influência deste órgão só foi possível devido às divisões entre os líderes eleitos e à fraqueza de governos que se confrontam com o descontentamento interno. Os eurocratas empurraram a agenda climática que comprometeu a competitividade, mas essas elites acham que as trapalhadas que criaram justificam ainda mais influência. A coligação de derrotados continua a dominar o parlamento, como se as recentes eleições não contassem. "Vamos trabalhar com as forças democratas pró-europeias nesta câmara", disse von der Leyen, que tenciona ignorar os partidos ditos extremistas, estes fortalecidos em cada nova eleição, mas que não contam. Insiste-se no centrismo amorfo, na exclusão de uns quantos, a Europa condena-se à paralisia, ignora os seus descontentamentos, é surda e fraca, mas sempre a falar forte.

publicado às 18:49

A guerra está perdida

por Luís Naves, em 18.11.24

Parte da opinião pública continua a aceitar tranquilamente que o complexo militar-industrial americano leve o mundo para o desastre. De peito cheio, muitas pessoas parecem dispostas a morrer por causa da Crimeia. Três anos de condicionamento mediático deram nisto: aceita-se o fim da civilização em nome dos interesses disfarçados das Blackrock da vida. Ao autorizar o uso de armas de longo alcance, Biden deixou uma gigantesca armadilha para o seu sucessor, cujas promessas eleitorais de acabar depressa com a guerra na Ucrânia serão mais difíceis de cumprir. Nos jornais globalistas surgem os primeiros textos a comparar a vontade de Trump com o inevitável Neville Chamberlain. A comparação obriga-nos à guerra e não permite abertura negocial ou qualquer razoabilidade diplomática. A guerra está perdida, a estratégia ocidental de cortar a Rússia em três fragmentos (Rússia europeia, Sibéria e Extremo Oriente) fracassou de forma clamorosa. Está na altura de sair disto, pois morrem centenas de pessoas por dia. A Ucrânia terá estatuto de neutralidade e a perspetiva de adesão à UE, a Crimeia fica território russo. É preciso parar, mas o estado profundo quer ter a última palavra.

publicado às 10:55


Autores

João Villalobos e Luís Naves