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A nossa perigosa verdade

por Luís Naves, em 23.11.18

Um jornal descobriu que a foto de uma sem-abrigo com criança, que andava a circular nas redes sociais, não foi tirada em Lisboa, mas em Bordéus. A boa consciência ocidental respira mais descansada e lembrei-me de um episódio do final da Primeira Guerra Mundial, quando os países da Entente faziam correr boatos alarmantes nos territórios do Império austro-húngaro, as agora chamadas fake news, que na altura se denominavam boatos. Isso motivou um artigo de Karl Kraus: «as mentiras da Entente em geral nem de longe são tão perigosas como as nossas verdades», escreveu o jornalista vienense. Também considero grave que uma foto de uma sem-abrigo com criança em rua de Bordéus passe por ser uma cena em Lisboa, infelizmente as revelações nada alteram na pobreza em Portugal. Os sem-abrigo são iguais em todo o lado, pelo menos na sua miséria. Kraus teve razão antes de tempo, pois os boatos contemporâneos só circulam quando as pessoas deixam de acreditar nas autoridades e na sua imprensa, os rumores só atingem instituições e políticas descredibilizadas. De facto, a nossa verdade é pior que a nossa mentira, por isso teremos mais destes rumores, veremos outros sem-abrigo de Bordéus a fazerem-se passar por sem-abrigo de Lisboa.

publicado às 18:56

A intolerância portuguesa

por Luís Naves, em 30.10.18

Por todo o lado, sobre os assuntos mais corriqueiros, é possível observar a tendência para a irrelevância, para o pensamento mágico, para a reflexão de sacristia. As pessoas repetem ideias feitas e recitam argumentos moles. Nas redes sociais, ninguém quer destoar das boas intenções, o que não teria mal algum, se não fosse a imposição de uma mentalidade dogmática, quase feroz, que não tolera o mínimo desvio da ortodoxia. Se calhar, Portugal nunca deixou de ter uma sociedade incapaz de suportar a dissidência, o espírito inconformado e a percepção inquieta, tal como vemos nos velhos romances de Camilo, onde as personagens muitas vezes esbarram com hipócritas, pregadores de banalidades ou estreitas visões fradescas. Não tenho boas explicações para a intolerância portuguesa: talvez seja o nosso provincianismo, o atraso, o pouco hábito que temos de pensar pela nossa cabeça, ou antes, o desincentivo que existe para que cada um pense pela sua cabeça, pois que a independência é sempre olhada com desconfiança.

publicado às 12:01

Os ciclos do poder

por Luís Naves, em 29.10.18

O poder tem regularmente grandes viragens, ou inversões de ciclo, quando os eleitores rejeitam a ordem vigente e escolhem, no meio de grande resistência, uma nova geração de políticos que reflecte a nova geração de pessoas. Estamos a assistir a uma dessas viragens regulares, muito semelhante à que ocorreu no final dos anos 70, inícios dos anos 80, quando os governos do mundo industrializado foram varridos pela vaga liberal, na altura chefiada por Margaret Thatcher e Ronald Reagan. Tudo o que recordo desse tempo é semelhante ao que vemos agora. A simples intenção de tentar perceber os factos suscita reacções de grande violência retórica por parte daqueles que não aceitam qualquer mudança e que tentam defender o mundo anterior. E, no entanto, as sociedades viram as páginas que querem virar, e não vale a pena tentarmos negar o óbvio. Em várias democracias avançadas, (o movimento começou no Reino Unido, alastrou aos Estados Unidos) significativas franjas do eleitorado rejeitaram a ordem instituída e votaram a favor de projectos nacionalistas, que defendem o recuo da globalização, a limitação das migrações, o regresso daquilo a que chamam os valores tradicionais, além do reforço da soberania, incluindo no plano económico. Esta é, de alguma forma, a inversão do ciclo liberal da era de Reagan e Thatcher, mas há também a recusa veemente dos avanços sociais ligados ao maio de 68, os quais visavam contestar as estruturas da autoridade e negar a moral dominante. A ordem instituída (jornalismo, mercados, partidos) tenta travar a enxurrada diabolizando o adversário emergente. Foi o que aconteceu nos anos 80, quando o tsunami liberal era classificado abaixo de fascismo. A definição era errada e o novo poder alastrou um pouco por todo o lado, tornou-se a ortodoxia, acelerou a globalização, derrubou o Muro de Berlim e, agora, depois de mostrar os seus limites na Grande Recessão, é a velha ordem que ameaça ser substituída.

publicado às 19:33

Outros tempos

por Luís Naves, em 14.10.18

Acabaram os tempos em que os jornalistas eram senhores apaparicados pelos poderosos, tratados com salamaleques, cuidados, sorrisos e simpatias. Agora, trabalha-se à jorna, entra-se pela porta do fundo, os jornalistas não são respeitados e espera-se deles muito pouco. O jornalismo é semelhante ao que foi no tempo do anterior regime (segundo os relatos da velha geração) feito por “colaboradores” mal pagos e obedientes, que vivem no receio de perder o emprego, ao cometerem algum erro que irrite as sumidades. Claro que não estou a falar das vedetas.

publicado às 18:46

Os museus do futuro

por Luís Naves, em 12.10.18

Não existe notoriedade artística sem o cumprimento de certas regras de sobriedade política, toda a gente percebe isso, mas há certa tristeza inútil no exercício: ao longo das respectivas vidas profissionais, 200 artistas produzem qualquer coisa como 100 mil objectos. Quantos destes objectos contemporâneos vão caber nos museus do futuro? Uma centena? Se for calculada uma média de 40 anos de actividade para cada um destes artistas, teremos 2500 obras de arte produzidas anualmente, sendo que destas, talvez dez consigam quebrar a barreira do tempo. De cada época, na geração seguinte, sobrevive menos de um por cento da arte nacional produzida. Na geração posterior à seguinte, um décimo disso, e por aí fora, até à depuração secular, onde restam cinco ou seis livros e uma dúzia de pinturas por cada século, fora o que possa ser considerado antiguidade ou velharia.

publicado às 12:25

Das minorias

por Luís Naves, em 01.09.18

Basta ler qualquer autor centro-europeu da primeira metade do século para se perceber que o mundo do presente nem sempre é uma melhoria em relação ao do passado. A sociedade austro-húngara era multicultural e desapareceu no tempo do diabo esfregar o olho. O argumento que justificou desmembrar o império austro-húngaro foi a necessidade de criar territórios sem as chamadas quintas-colunas das minorias, por isso os Tratados de Versalhes e Trianon (impostos pelos vencedores da I Guerra Mundial) deram origem a processos de limpeza étnica de grande violência. Nos anos 20 e 30, desenvolveram-se ideologias de exclusividade racial e nacional que originaram catástrofes. Nos últimos cem anos, os países que se formaram no antigo império lutaram pela homogeneidade cultural e étnica, mas agora são acusados de desvio nacionalista sobretudo aqueles que já nasceram homogéneos contra a sua própria vontade. É uma ironia cruel. Durante o império, havia nas mesmas localidades populações sérvias, ciganas, húngaras, alemãs ou judias, ou outra qualquer combinação de cinco ou seis línguas e três religiões, mas nesse tempo as pessoas viviam em tranquilidade. O desmembramento do império serviu sobretudo as elites nacionais que, antes, teriam menos hipóteses de ascender ao poder. As expulsões das culturas erradas duraram duas gerações e decorrem ainda, sobretudo por emigração, pois não desapareceu o impulso de discriminar minorias. Entretanto, no resto da Europa, quando hoje se fala nas vantagens do multiculturalismo, isso significa aceitar culturas não europeias e considera-se irrelevante a continuação da discriminação política ou cultural dessas minorias internas, as que ficaram do lado errado das novas fronteiras e que continuam a resistir à assimilação. Há também o curioso caso dos migrantes dentro do mesmo país, cuja aceitação nunca foi fácil, sendo o caso catalão o mais evidente.

publicado às 12:19

País sem problemas

por Luís Naves, em 10.07.18

Os canais televisivos de notícias dedicam horas e horas a discussões intermináveis sobre futebol, onde se repisam informações perfeitamente inúteis ou perfeitamente especulativas. O fenómeno está a assumir proporções de loucura: desapareceu o noticiário convencional e fala-se sem cessar do nada. Isto não é inteiramente novo: a cultura já sofrera uma extinção semelhante à dos dinossauros, as notícias sobre dinheiro tinham forçosamente de transmitir optimismo aos agentes económicos e a informação internacional resumia-se a banalidades inócuas de um suposto conflito entre bons e maus. Vendo as notícias de hoje, o País transformou-se num gigantesco centro de estágios futebolísticos e deixou subitamente de ter problemas. A única ideologia permitida é a da auto-estima levada à hipérbole.

publicado às 10:25

A competição de pulos

por Luís Naves, em 16.06.18

Os principais dirigentes políticos estão envolvidos numa espécie de competição de pulos sobre quem é que mostra maior fervor pelo clube da pátria. Se o país não tivesse outros problemas, não havia nada de mal, mas o grande F deste regime, o futebol, permite apagar a luz durante demasiado tempo e, acima de tudo, cria um clima de ilusão e de pensamento mágico. Quando cairmos na realidade, um pequeno abalo será vivido como terramoto, a mínima perturbação social ou económica será interpretada como calamidade. O folclore da auto-estima, a teoria das vacas voadoras e a fé que vê miragens estão a conduzir o país para o território das desilusões insuportáveis.

publicado às 12:00

Declínios

por Luís Naves, em 21.04.18

A sociedade laica parece estar a desenvolver uma forma de pensamento mágico que a faz desviar-se de todos os problemas, como se eles não existissem ou pudessem milagrosamente resolver-se pela inacção. Talvez isto seja próprio daqueles países que envelhecem sem se dar conta ou seja próprio daquelas oligarquias à beira da revolução ou catástrofe e que ainda se entretêm numa existência alheada e aparentemente doce, onde os ódios são contidos e as palavras estão sempre cheias de ambiguidade educada ou de um vazio encantador. Assim eram as bolhas aristocráticas antes da revolução francesa ou da burguesia europeia antes de 1914: o reino da hipocrisia, cheio de regras para iniciados e onde já ninguém dizia o que pensava, mas falava em código. Agora, existe algo de semelhante: triunfa uma classe global que jamais diz o que pensa e deseja apenas que o sumptuoso declínio permaneça sob uma belíssima iluminação crepuscular.

publicado às 12:39

Fundos comunitários

por Luís Naves, em 13.02.18

Em Portugal instalou-se um mini-debate sobre o próximo pacote de fundos comunitários (para sete anos), que os líderes europeus vão discutir nos próximos dez meses e que entra em vigor em 2021. O que desencadeou a conversa foi uma proposta, apresentada como sendo de António Costa (na realidade, é tirada a papel-químico das ideias da comissão e do parlamento) de aprovar três impostos europeus, sobre economia digital, empresas poluentes e transacções financeiras. Ao aderir tão de perto a ideias que já circulam, Portugal reduz a sua capacidade negocial, não terá cedências para fazer e aceita tudo o que vier da negociação. O Brexit implica uma quebra nas receitas: sem o contribuinte líquido Reino Unido, haverá menos dinheiro para distribuir pelos países que recebem do orçamento mais do que pagam. Tendo regiões acima de 75% do rendimento médio per capita, Portugal terá menos dinheiro do que nos anteriores pacotes, pois as verbas tenderão a beneficiar os países de leste, mais pobres e que prometem negociar com dureza. Além disso, o essencial do orçamento comunitário sustenta a agricultura, sobretudo a francesa, sendo pouco provável que esse bolo se reduza sem resistência da França. A saída dos ingleses equivale a 10% das verbas, portanto, só há duas soluções: impostos europeus ou aumento da percentagem que cada país paga, de 1% do PIB para pelo menos 1,1%. No segundo cenário, os países contribuintes líquidos vão exigir qualquer coisa em troca. Por seu turno, a ideia de impostos que Lisboa apoia tem vários problemas. O da economia digital visa multinacionais americanas e terá a devida retaliação comercial de Washington (pode fazer enormes estragos); o das transacções financeiras contradiz a ambição de franceses e alemães de absorverem parte do negócio da City de Londres, no mundo pós-Brexit; e o das empresas poluentes é pago pelos países mais atrasados da União, aqueles que precisam de fundos exactamente para acabar com as empresas poluentes. Ou seja, isto vai acabar por ser um aumento da contribuição dos países e Portugal, com os seus crónicos problemas orçamentais, acabará provavelmente por pagar mais para os cofres europeus, recebendo menos das políticas comunitárias (é preciso não esquecer que as contribuições nacionais, calculadas em função do PIB per capita, representam 70% das receitas). A alternativa ao aumento da contribuição nacional será a redução de todos os programas europeus, a começar pela agricultura, que absorve 40% dos 140 mil milhões de euros anuais do orçamento. Haveria ainda a hipótese de diminuir as ambições da UE, mas os líderes pretendem avançar na direcção oposta, querem adicionar a segurança e as migrações a uma longa lista de programas comunitários onde constam energia, emprego, formação, alterações climáticas, ajuda externa, inclusão social, inovação, ciência, entre muitos outros. Em resumo, entramos na fase da política a sério, onde o interesse nacional será determinante e a EU terá de fazer uma escolha estratégica, se quer ou não ceder mais poderes e dinheiro à estrutura supranacional.

publicado às 19:04


Autores

João Villalobos e Luís Naves