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Encontrado num baú e retirado do contexto

por Luís Naves, em 09.05.17

Entre os meus trinta anos e os meus quarenta, parece-me agora, o tempo fluiu com monotonia e numa espécie de preguiça menos memorável do que outras fases da minha vida. Devia ter sido o apogeu dos meus dias, mas foi simplesmente uma época difusa. O país mudara muito e as pessoas muito pouco. A esta distância é fácil perceber o que fizemos mal, mas talvez seja injusto culpar a política ou a indolência pelo adormecimento temporário da nação e das pessoas. Aquela época foi apenas assim, a ponte para um mundo novo, a transição que tínhamos de atravessar, só não sabíamos que sob os nossos pés se estendia um abismo assim tão vazio.

publicado às 16:23

Algumas pessoas pressentem a aproximação dos grandes acontecimentos, sabem que vai ocorrer uma guerra ou uma vasta perturbação. Não é assim no caso dos pequenos eventos da vida. As minúsculas tragédias humanas são sempre vagamente misteriosas. As sociedades transformam-se tal como acontece com os lentos processos de mudança de uma paisagem, por efeito da subtil persistência da água e do vento e dos enigmáticos movimentos do magma profundo, mas não é assim com as pessoas, para quem tudo pode mudar num momento, num capricho da sorte, num lance de cartas, não havendo forças da natureza que sirvam de explicação.

publicado às 16:27

Novo-nova

por Luís Naves, em 07.05.17

A obsessão pelo novo, a nova política, a nova literatura, a nova cultura, mas é quase sempre o novo vazio ou a nova banalidade.

publicado às 16:08

Um pedaço

por Luís Naves, em 04.05.17

Como se verifica nestas linhas confusas, é difícil para mim construir um retrato fiel de uma cidade que deixara de existir, ou antes, que existia de uma forma diferente: menos agreste, mas mais falsa; menos marcada, mas mais insípida. A doida varrida existira naquela minha vida anterior, perante a indiferença geral, e agora eu próprio tinha transitado para uma Lisboa mais agreste e mais culpada, onde a doida talvez existisse de outra forma ou talvez tivesse sido esquecida de outra forma. Não digo que houvesse vantagens na apatia e na indiferença, não posso afirmar isso sem parecer injusto, pois aquela ansiosa melancolia prendia toda a gente ao sentido trágico do seu futuro; era talvez indigno, mas nesta cidade nova pairava uma opressão difícil de definir: um medo pesado, nem sei dizer bem o que era, uma falsidade geral, talvez, a hipocrisia, a noção nítida de que ninguém podia dizer o que pensava. Ali não havia pessoas desiludidas. Sim, as desilusões só podem afectar quem se iluda.

publicado às 16:05

Excerto de alguma coisa

por Luís Naves, em 02.05.17

Pensei nestas impressões como se pertencessem ao passado ou talvez não existissem como as imaginava, mas de outra forma, com a mesma crueza, sem que fizessem parte das recordações acumuladas. Lisboa é uma cidade de cores fortes e tem uma luz que faz inclusivamente doer a vista, criando sombras densas no interior dos prédios soturnos, onde sentimos o cheiro a mofo. Se passarmos pelas traseiras, veremos igualmente a podridão, ninhos de ratos, hortas selvagens. Na paz precária das habitações, há desempregados, idosos, mulheres de vida fácil, desocupados sem rumo, malandros sem destino e alguns malucos sem dinheiro para medicamentos. Tudo igual a qualquer outra rua de uma cidade moribunda: poucas crianças, tipos divorciados e velhos sozinhos; vidas de merda, confusas ou assim-assim.

publicado às 16:02

Intolerância

por Luís Naves, em 27.04.17

As formas de discriminação nem sempre são evidentes, mas quando tiramos o verniz, encontramos pequenos indícios de intolerância. É instrutivo ler os comentários das notícias sobre futebol, onde se encontram exemplos de raiva pura, racismo, imbecilidade, por vezes ódio primário. Há quem diga que se trata de uma raiva inofensiva, mas imagine-se o que seriam estas paixões em temas importantes, se Portugal tivesse regiões separatistas, minorias étnicas, religiões minoritárias convencidas da extrema superioridade dos seus valores.

publicado às 15:59

O poder da mudança

por Luís Naves, em 15.04.17

Uma pessoa da minha idade que em 1950 pensasse um pouco sobre os anos vividos saberia identificar os dez grandes acontecimentos que tinham mudado a civilização e o mundo. O início da guerra, em 1914, era um exemplo óbvio, mas havia outros: a revolução russa, o Tratado de Versalhes, o crash da bolsa em 29, a ascensão de Hitler em 33, o início da II Guerra Mundial na Europa (embora essa fatalidade já estivesse decidida um ano antes, com a ocupação da Áustria). Para completar uma lista justa era necessário incluir Pearl Harbour, a conferência de Ialta, a bomba atómica de Hiroxima e o Holocausto. Enfim, a lista de dez grandes acontecimentos podia ser um pouco alterada, para incluir a gripe espanhola, por exemplo, ou o terror estalinista, mas os acontecimentos citados eram mais ou menos evidentes. Ao analisar os anos vividos, elaborar a mesma pequena lista de dez mudanças parece ser um exercício mais difícil para uma pessoa da minha idade. Não posso incluir o triunfo comunista na China nem o primeiro voo orbital de Iuri Gagarine, mas já era vivo durante a crise dos mísseis de Cuba e no dia em que astronautas americanos chegaram à Lua. Maio de 68 é um mês importante, como é o primeiro choque petrolífero, que começou com o embargo do cartel de exportadores, em Outubro de 73. A revolução iraniana mudou muita coisa, sobretudo no mundo islâmico, que mergulhou numa cruel guerra civil entre xiitas e sunitas, radicalizando-se por sucessivas ondas de fanatismo; a sucessão de Mao Zedong, em 1975, não mudou apenas a China, o que já era imenso. Devemos talvez incluir a explosão de Chernobyl e, sem dúvida, a queda do Muro de Berlim. E não há grande controvérsia em colocar nesta lista os atentados de 11 de Setembro de 2001 e a longa crise financeira iniciada em 2008. Ficou imensa coisa de fora: a Guerra do Vietname, a cimeira entre Nixon e Mao, Watergate, Reagan, a perestroika, as guerras do Golfo, o euro, a crise migratória. Muitos dos meus contemporâneos fariam uma escolha diferente, mas o ponto é o seguinte: vivemos num tempo acelerado, em que é bastante fácil identificar, em cada cinco anos, um grande sismo político de dimensão mundial. A distância torna mais evidente cada escolha, ou seja, provavelmente já estamos a viver um evento de transformação global, mas cuja importância ainda não é clara. Ou não tardará um grande acontecimento, com efeitos imediatos de tal forma vastos, que não teremos qualquer dúvida: este tem de estar na lista.

publicado às 19:41

Discussão francesa

por Luís Naves, em 18.08.16

A França discute o burkini, fatiota de praia que tapa inteiramente o corpo das mulheres. Alguns municípios proibiram esta moda muçulmana e impuseram multas, para grande escândalo dos que consideram tratar-se de ‘islamofobia’. O argumento de que as nossas avozinhas usavam roupa de praia semelhante é ligeiramente absurdo, pois a moda muda, na civilização ocidental o corpo feminino tornou-se uma banalidade, pelo que a imposição de um pudor extremo alheio à cultura dominante parece ser uma cedência ridícula das nossas liberdades. Alguma esquerda defende a ideia aparentemente liberal de cada um vestir o que lhe apetecer, mas a questão do burkini não é um fait divers, pelo contrário, é altamente política e não tem nada a ver com as liberdades, mas com a opressão da mulher. Esta moda está a ser imposta pelos salafistas, corrente extremista com uma interpretação da religião muçulmana que exclui todas as outras. A esquerda europeia tende a olhar para a minoria muçulmana nos seus países como um grupo discriminado e oprimido de trabalhadores, resultando num raciocínio perverso de que impor valores ocidentais apenas aumenta a alienação social destes emigrantes e filhos de emigrantes. O avanço das ideias salafistas, graças a dinheiro saudita que sustenta mesquitas radicalizadas, prejudica ainda mais estas populações pouco integradas, que já não apenas rejeitam mas combatem abertamente as ideias republicanas de Estado secular e liberdade individual. A tolerância da esquerda facilita a intolerância dos fundamentalistas, e as primeiras vítimas são as mulheres muçulmanas de França.

publicado às 19:12

O justo vencedor

por Luís Naves, em 12.08.16

O nadador norte-americano Michael Phelps será o grande herói dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, após ter batido um recorde com mais de 2100 anos. Ao ganhar a sua 13ª medalha de ouro individual, Phelps ultrapassou o anterior recorde de vitórias, que pertencia a um grego chamado Leonidas de Rodes, que venceu 12 competições em quatro olimpíadas clássicas. Leonidas, evidentemente, não ganhou medalhas de ouro, mas ramos de oliveira. Para além deste momento histórico, os jogos do Rio estão a ser marcados pelas primeiras críticas públicas de atletas limpos aos batoteiros que usam drogas para melhorar as suas capacidades físicas. O movimento olímpico só poderá sobreviver se conseguir identificar e expulsar todos os ladrões de medalhas. É uma tarefa difícil, devido à politização do desporto, uma das causas do desaparecimento da tradição grega dos jogos antigos. Em 67 d. C, numa altura em que os jogos já estavam em decadência, o imperador Nero fez uma visita à Grécia e cumpriu o seu sonho de competir nos jogos olímpicos. Nero adorava corridas de carros de cavalos e tentou bater todos os recordes com uma viatura de dez cavalos, um Ferrari do seu tempo, muito instável e perigoso. O imperador romano saiu da linha de partida a uma velocidade louca e estampou-se logo na primeira curva, sendo projectado do carro. Ficou bastante maltratado (há teorias de que bateu com a cabeça e enlouqueceu neste episódio), mas apesar de não ter concluído a corrida, Nero foi mesmo assim declarado vencedor. Venceria dezenas de competições, incluindo a que não terminou.

publicado às 12:45

Fertilidade dos solos

por Luís Naves, em 01.08.15

(Esta crónica tem três anos)

Sempre gostei da elegância simples da ideia. O factor limitante é por definição a causa a impedir um qualquer crescimento. Aplica-se sobretudo à biologia, a populações, ecossistemas, etc. O conceito é intuitivo: se não houver água suficiente para abastecer mais de um milhão de pessoas, uma cidade terá aqui o factor limitante e não passará de um milhão de pessoas.
Estudei a ideia aplicada à fertilidade dos solos, onde é crucial a relativa abundância de fósforo, potássio e azoto, sem os quais as plantas não podem constituir a respectiva massa. A questão é um pouco mais complicada, há minerais secundários, como enxofre, cálcio, ferro ou magnésio, sendo necessária matéria orgânica, muita água, dióxido de carbono e sobretudo luz. Mas sem aqueles nutrientes em quantidades generosas, havendo ausência de apenas um deles, a colheita está ameaçada. A fertilização dos solos concentra-se, assim, na reposição dos minerais e, acima de tudo, na preocupação em identificar e eliminar o factor limitante de determinado solo.
Julgo que a ideia se aplica a muitas situações da nossa vida. Podemos ter tudo, saúde, amor, e faltar-nos o dinheiro. Penso que também serve de metáfora para o que somos, alguns de nós trabalhadores e honestos, mas sem ambição; outros, cultos e capazes, mas cheios de vaidade. Enfim, os nossos maiores defeitos são sempre o factor limitante do que poderíamos ser. E isto parece ser verdade no mundo que nos rodeia: uma economia capaz de crescer sempre, embora com pequenos soluços, foi transformada numa sociedade em crise, pelos efeitos perversos da ganância selvagem.

 

publicado às 19:14


Autores

João Villalobos e Luís Naves