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(37)

por Luís Naves, em 05.12.18

Quando vi os prospectos, fiquei entusiasmado com aquela tecnologia inovadora. Era possível fazer o download da consciência e instalá-la num suporte diferente, o que em princípio permitia prolongar por vários ciclos a antiga vida humana. Comecei logo a juntar dinheiro para a minha velhice (quando morresse, era só descarregar as memórias para o novo corpo, por assim dizer). Apesar de tudo, cometi um erro: não devia ter comprado o pacote mais barato; nunca se deve poupar na saúde. Não sei se foi por serem negligentes, mas os tipos da companhia americana não deram grande atenção ao meu caso. Quando morri, lá estava o meu arquivo da consciência, mas alguém cometeu um erro e, ao fazer o download, não foi escolhido um corpo jovem e belo. Bem, agora estou aqui sem meios de fazer queixa formal, a ver passar minhocas, muitas cócegas na raiz número setenta e sete, sem conseguir mexer uma única folha exterior, ensopado, pois tem chovido a cântaros e a horta ficou inundada, nem um bocadinho de sol para aquecer os meus talos. Será que, como descarregaram a minha consciência para uma alface, isso me dará direito a pedir indemnização?

publicado às 11:28

(35)

por Luís Naves, em 01.12.18

Não tenho vergonha da História do meu país, mas hoje em dia só se fala de colonialismo, fascismo, escravatura, e é mais ou menos proibido mencionar as palavras descobrimentos ou independência, pois surge a brigada de costumes a rectificar esses perigosos conceitos. O sentimento de culpa em relação à história consegue-se pela menorização das grandes datas, dos maiores feitos e das principais personagens do passado colectivo de um povo, como bem ilustra o Primeiro de Dezembro de 1640, uma revolta aristocrática com apoio popular, que deu origem a uma guerra prolongada e cruel. Sem esse movimento, Portugal seria hoje uma província, mas a data transformou-se numa banalidade e num feriado de consumo, como se a liberdade não tivesse valor e antes fosse uma benesse que nos caiu do céu, com a pequena dose de culpa que acompanha a narrativa contemporânea de que isso das nações é coisa perniciosa, que deve diluir-se na amálgama internacional das identidades anónimas.

publicado às 11:26

(33)

por Luís Naves, em 29.11.18

Lev Tolstoi atribuía três qualidades à arte: originalidade, clareza e sinceridade. Embora os grandes artistas não sejam muito bons a explicar o que fazem, parece ser uma definição aceitável da boa literatura. A originalidade é talvez o aspecto mais difícil, pois qualquer escritor tem de respeitar a tradição, continuar a desvendar as veredas que os antecessores já exploraram, ao mesmo tempo que encontra a sua voz. A clareza parece evidente, mas esta qualidade é a menos respeitada. Finalmente, a sinceridade, onde falham muitos autores, sobretudo quando cedem aos gostos da sua época, ocultando o que verdadeiramente pensam do mundo que os rodeia. Isto ocorreu-me a propósito da leitura de História da Minha Vida, de Giacomo Casanova, livro que gosto de revisitar, onde cada página é uma delícia. Está lá tudo: é original, claro e sincero, mas convém explicar que a teoria de Tolstoi nunca foi demasiado popular: Nabokov, por exemplo, detestava duas destas supostas qualidades; para ele eram defeitos, gostava acima de tudo da complexidade e do artifício.

publicado às 11:19

(32)

por Luís Naves, em 27.11.18

Primeiro, foi a minha mulher a desamigar-me no Facebook. Ela não me fala há uma semana. Enviei-lhe uma mensagem e fui logo bloqueado. As minhas gatas evitam-me (não sei como perceberam que estou em maré de azar) e ando a perder seguidores no Twitter à razão de uma mão-cheia por dia. Para além das audiências em queda, deu o badagaio à televisão e não consegui ver o prós e contras, de que muito gosto. De resto, ando bem, não há novidades, fui à segurança social e olharam-me com desconfiança, o senhor não esteve aqui ontem? e desculpei-me, que sim, tinha estado, e também viera na véspera e no outro dia, perguntei-lhes se o meu problema estava praticamente resolvido e eles disseram-me que era difícil, com a falta de pessoal, e isso, disseram-me também para não ir lá todos os dias, que não adiantava, depois, ao vir de comboio, a composição foi suprimida e atrasou, o pessoal teve de se comprimir mais e mais, estávamos ali todos fechados e sem ar, mas andou, de resto, está tudo bem, houve ontem uns descontos na loja aqui do bairro e comprei uma pechinchas, acabou-se-me o dinheiro até ao fim do outro mês, mas não podia perder a oportunidade, não é? com aqueles preços tão porreiros e essas cenas.

publicado às 11:17

(29)

por Luís Naves, em 22.11.18

Uma das marcas das sociedades desenvolvidas é o bom relacionamento do Estado com os seus cidadãos. Em Portugal, essa relação sempre teve graves problemas e os cidadãos são tratados como potenciais facínoras ou como débeis mentais que deviam agradecer a generosa protecção das autoridades. O Estado presume que está a lidar com pessoas desonestas: se alguém reclama, é certamente um malandro; se está a contas com a justiça, alguma maldade terá feito; se pede auxílio e não pertence às óbvias categorias de clientela política, então só pode tratar-se de um caso de abuso. Este sistema não é um falhanço de estado, mas algo que lembra a igreja do passado: omnipresente e omnisciente, metia-se em tudo e tratava de toda a gente, com arrogância e sentido de missão; o país era um convento, olhando para cada membro da congregação como um mortal pecador, a carregar a cruz da confiança cega e da infinita paciência.

publicado às 18:45

(24)

por Luís Naves, em 15.11.18

Foi talvez um sonho ou uma daquelas divagações hipnóticas que nos embalam quando estamos na fronteira da realidade, não sei dizer ao certo, vi aquele cavalheiro de aspecto antigo, numa conhecida praça da nossa cidade, porventura viajante de outro tempo ou de um universo paralelo. A figura melancólica sabia, com as certezas só possíveis nos sonhos, que era a sua derradeira visita àquele lugar que tantas vezes pisara. O homem estava no fim de vida: na praça com estátua haveria, a partir daí, multidões sempre renovadas de gente desconhecida e diferente; pessoas com ideias novas, com outra mentalidade, na mesma exacta paisagem de prédios tristes. Já aqui não estarei, pensou, nesse mundo renovado e esquecido da minha existência, onde de meu não haverá sequer uma sombra. Depois, acordei, sem saber o que lhe aconteceu.

publicado às 18:49

(22)

por Luís Naves, em 13.11.18

O sol cru da tarde fria cobre as fachadas cinzentas e o arvoredo faminto do parque. Nas bancas de livros, os vendedores ambulantes esperam, a comentar se virá chuva. Cada um desenrasca-se como pode: há quem venda livros velhos, há quem tenha um transporte moderno por aplicação, como aquele sujeito que abre a bagageira para receber três jovens com malas, estudantes, observadas distraidamente pelo pedreiro empoleirado, que embeleza uma varanda. Há o barbeiro sem clientela, a mulher da limpeza a seco, numa lojinha apertada de onde sai o vapor de uma fumarola vulcânica. Sinais contraditórios, que certo prédio esquisito resume: confina com o buraco da construção ao lado e está seguro por estacas horizontais de ferro que o ligam à parede seguinte, através do vazio; os andares de cima estão a cair de podres, sem moradores, um andar de baixo foi renovado e brilha num esplendor deslocado.

publicado às 18:47

(13)

por Luís Naves, em 04.11.18

A arte, parece-me, tem muito a ver com a acumulação de experiências, de tentativas goradas, de momentos de reflexão, de falsas partidas, esforço desperdiçado, pensamentos esfarrapados, sonhos esquecidos, receios, hesitações, becos sem saída e, por vezes, muito raramente, de escolhas que fazem sentido. É fascinante a noção de serem poucos os artistas que se libertam da lei da morte. Num documentário sobre um ator famoso da minha idade, alguém dizia que a oportunidade que o transformou numa estrela surgiu após o enésimo fracasso, no exato momento em que, frustrado pelos sucessivos insucessos, ele ponderava desistir daquele trabalho. É perturbador pensar que podia estar no lugar da fama outra vedeta ou que, ao triunfar este ator, um desconhecido quase chegou lá e ficou apenas à porta.

publicado às 11:12

(10)

por Luís Naves, em 01.11.18

Hoje havia na minha rua uma revoada de pássaros zangados, mas não fiquei para ver a geografia nacional dos periquitos enfurecidos que andavam a assediar os pobres dos pombos. Com os seus bicos duros, os invasores voavam em formações de bombardeio picado e as pombinhas da paz fugiam numa aflição, batendo fragilmente as asas no ar frio. Percebia-se na perfeição quem eram os agressores, com os seus chilreios e gritos, as tangentes, os mergulhos, os assobios, súbitas mudanças de direcção e ataques quase perfeitos. Os pombos, coitados, arrulhavam e gemiam, submetiam-se como pássaros obedientes, sussurravam, dando à sola, por assim dizer depenados, perante o palreio das gargalhadas da passarada triunfante e, claro, sob o olhar distraído dos transeuntes que passavam no chão, com leve interesse na farfalhuda guerra das alturas e alguma simpatia pelos periquitos vencedor

publicado às 11:09


Autores

João Villalobos e Luís Naves