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Pedaços do mundo e grãos de areia
Publicar um romance é cada vez mais difícil, sobretudo em editoras que dependem de vendas em larga escala de livros alavancados pela fama colhida nos tiktoks e no circuito mediático. A literatura foi engolida por um sistema financeiro que impõe o mínimo denominador comum e reflete o pior da sociedade contemporânea: exibicionismo e banalidade, a visão conformista do mundo e a irrelevância da cultura. Este romance, O Homem Morto, surge no exterior do sistema de avaliações comerciais e não foi escrito para agradar a críticos ou ao Adamastor enigmático que dá pelo nome de mercado. O livro não terá direito a críticas penetrantes nos jornais ou a carreira pomposa nos festivais onde se discute a literatura do passado. O tema desta obra é a dissolução e a mentira, que julgo apanhar fragmentos do espírito da época. Tentei não ser agradável, procurei ser realista no estilo, com enredo e ritmo, mas sem lições de moral ou mensagens políticas.
O Homem Morto pode ser comprado aqui.
Quando vi os prospectos, fiquei entusiasmado com aquela tecnologia inovadora. Era possível fazer o download da consciência e instalá-la num suporte diferente, o que em princípio permitia prolongar por vários ciclos a antiga vida humana. Comecei logo a juntar dinheiro para a minha velhice (quando morresse, era só descarregar as memórias para o novo corpo, por assim dizer). Apesar de tudo, cometi um erro: não devia ter comprado o pacote mais barato; nunca se deve poupar na saúde. Não sei se foi por serem negligentes, mas os tipos da companhia americana não deram grande atenção ao meu caso. Quando morri, lá estava o meu arquivo da consciência, mas alguém cometeu um erro e, ao fazer o download, não foi escolhido um corpo jovem e belo. Bem, agora estou aqui sem meios de fazer queixa formal, a ver passar minhocas, muitas cócegas na raiz número setenta e sete, sem conseguir mexer uma única folha exterior, ensopado, pois tem chovido a cântaros e a horta ficou inundada, nem um bocadinho de sol para aquecer os meus talos. Será que, como descarregaram a minha consciência para uma alface, isso me dará direito a pedir indemnização?
Não tenho vergonha da História do meu país, mas hoje em dia só se fala de colonialismo, fascismo, escravatura, e é mais ou menos proibido mencionar as palavras descobrimentos ou independência, pois surge a brigada de costumes a rectificar esses perigosos conceitos. O sentimento de culpa em relação à história consegue-se pela menorização das grandes datas, dos maiores feitos e das principais personagens do passado colectivo de um povo, como bem ilustra o Primeiro de Dezembro de 1640, uma revolta aristocrática com apoio popular, que deu origem a uma guerra prolongada e cruel. Sem esse movimento, Portugal seria hoje uma província, mas a data transformou-se numa banalidade e num feriado de consumo, como se a liberdade não tivesse valor e antes fosse uma benesse que nos caiu do céu, com a pequena dose de culpa que acompanha a narrativa contemporânea de que isso das nações é coisa perniciosa, que deve diluir-se na amálgama internacional das identidades anónimas.
Lev Tolstoi atribuía três qualidades à arte: originalidade, clareza e sinceridade. Embora os grandes artistas não sejam muito bons a explicar o que fazem, parece ser uma definição aceitável da boa literatura. A originalidade é talvez o aspecto mais difícil, pois qualquer escritor tem de respeitar a tradição, continuar a desvendar as veredas que os antecessores já exploraram, ao mesmo tempo que encontra a sua voz. A clareza parece evidente, mas esta qualidade é a menos respeitada. Finalmente, a sinceridade, onde falham muitos autores, sobretudo quando cedem aos gostos da sua época, ocultando o que verdadeiramente pensam do mundo que os rodeia. Isto ocorreu-me a propósito da leitura de História da Minha Vida, de Giacomo Casanova, livro que gosto de revisitar, onde cada página é uma delícia. Está lá tudo: é original, claro e sincero, mas convém explicar que a teoria de Tolstoi nunca foi demasiado popular: Nabokov, por exemplo, detestava duas destas supostas qualidades; para ele eram defeitos, gostava acima de tudo da complexidade e do artifício.
A ordem liberal está a ser posta em causa por um somatório de descontentamentos, cujas causas não são claras. Pode ser receio da globalização, empobrecimento súbito de parte da classe média, desindustrialização, migrações, subfinanciamento do Estado Providência, ansiedade em relação ao pagamento das pensões ou consequência do envelhecimento (pessoas mais velhas tendem a ser menos saudáveis e mais pessimistas), pode também existir uma percepção do declínio do Ocidente ou a noção concreta de que esta ordem compromete tradições que os cidadãos ainda valorizam. Seja qual for o motivo dos protestos, parece evidente que os meios de comunicação e a cultura de massas olham para a dissolução ocidental como se fosse uma doença, não um sintoma. Para muitos intelectuais, o descontentamento é um mal que tem de ser combatido, não é uma questão que deva, primeiro, ser compreendida.
Primeiro, foi a minha mulher a desamigar-me no Facebook. Ela não me fala há uma semana. Enviei-lhe uma mensagem e fui logo bloqueado. As minhas gatas evitam-me (não sei como perceberam que estou em maré de azar) e ando a perder seguidores no Twitter à razão de uma mão-cheia por dia. Para além das audiências em queda, deu o badagaio à televisão e não consegui ver o prós e contras, de que muito gosto. De resto, ando bem, não há novidades, fui à segurança social e olharam-me com desconfiança, o senhor não esteve aqui ontem? e desculpei-me, que sim, tinha estado, e também viera na véspera e no outro dia, perguntei-lhes se o meu problema estava praticamente resolvido e eles disseram-me que era difícil, com a falta de pessoal, e isso, disseram-me também para não ir lá todos os dias, que não adiantava, depois, ao vir de comboio, a composição foi suprimida e atrasou, o pessoal teve de se comprimir mais e mais, estávamos ali todos fechados e sem ar, mas andou, de resto, está tudo bem, houve ontem uns descontos na loja aqui do bairro e comprei uma pechinchas, acabou-se-me o dinheiro até ao fim do outro mês, mas não podia perder a oportunidade, não é? com aqueles preços tão porreiros e essas cenas.
Foi talvez um sonho ou uma daquelas divagações hipnóticas que nos embalam quando estamos na fronteira da realidade, não sei dizer ao certo, vi aquele cavalheiro de aspecto antigo, numa conhecida praça da nossa cidade, porventura viajante de outro tempo ou de um universo paralelo. A figura melancólica sabia, com as certezas só possíveis nos sonhos, que era a sua derradeira visita àquele lugar que tantas vezes pisara. O homem estava no fim de vida: na praça com estátua haveria, a partir daí, multidões sempre renovadas de gente desconhecida e diferente; pessoas com ideias novas, com outra mentalidade, na mesma exacta paisagem de prédios tristes. Já aqui não estarei, pensou, nesse mundo renovado e esquecido da minha existência, onde de meu não haverá sequer uma sombra. Depois, acordei, sem saber o que lhe aconteceu.
Uma das marcas das sociedades desenvolvidas é o bom relacionamento do Estado com os seus cidadãos. Em Portugal, essa relação sempre teve graves problemas e os cidadãos são tratados como potenciais facínoras ou como débeis mentais que deviam agradecer a generosa protecção das autoridades. O Estado presume que está a lidar com pessoas desonestas: se alguém reclama, é certamente um malandro; se está a contas com a justiça, alguma maldade terá feito; se pede auxílio e não pertence às óbvias categorias de clientela política, então só pode tratar-se de um caso de abuso. Este sistema não é um falhanço de estado, mas algo que lembra a igreja do passado: omnipresente e omnisciente, metia-se em tudo e tratava de toda a gente, com arrogância e sentido de missão; o país era um convento, olhando para cada membro da congregação como um mortal pecador, a carregar a cruz da confiança cega e da infinita paciência.
Foi talvez um sonho ou uma daquelas divagações hipnóticas que nos embalam quando estamos na fronteira da realidade, não sei dizer ao certo, vi aquele cavalheiro de aspecto antigo, numa conhecida praça da nossa cidade, porventura viajante de outro tempo ou de um universo paralelo. A figura melancólica sabia, com as certezas só possíveis nos sonhos, que era a sua derradeira visita àquele lugar que tantas vezes pisara. O homem estava no fim de vida: na praça com estátua haveria, a partir daí, multidões sempre renovadas de gente desconhecida e diferente; pessoas com ideias novas, com outra mentalidade, na mesma exacta paisagem de prédios tristes. Já aqui não estarei, pensou, nesse mundo renovado e esquecido da minha existência, onde de meu não haverá sequer uma sombra. Depois, acordei, sem saber o que lhe aconteceu.
O sol cru da tarde fria cobre as fachadas cinzentas e o arvoredo faminto do parque. Nas bancas de livros, os vendedores ambulantes esperam, a comentar se virá chuva. Cada um desenrasca-se como pode: há quem venda livros velhos, há quem tenha um transporte moderno por aplicação, como aquele sujeito que abre a bagageira para receber três jovens com malas, estudantes, observadas distraidamente pelo pedreiro empoleirado, que embeleza uma varanda. Há o barbeiro sem clientela, a mulher da limpeza a seco, numa lojinha apertada de onde sai o vapor de uma fumarola vulcânica. Sinais contraditórios, que certo prédio esquisito resume: confina com o buraco da construção ao lado e está seguro por estacas horizontais de ferro que o ligam à parede seguinte, através do vazio; os andares de cima estão a cair de podres, sem moradores, um andar de baixo foi renovado e brilha num esplendor deslocado.