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Pedaços do mundo e grãos de areia
O regresso a esta publicação devia ser acompanhado de uma explicação, mas não me lembro do motivo de ter parado de escrever, foi talvez inércia. O mundo mudou muito nos últimos anos. Atravessámos uma pandemia que matou milhões e os confinamentos alteraram qualquer coisa de impreciso nas mentalidades. Muitas pessoas precisaram daquele trauma para reavaliarem as suas vidas, agora sabem que o tempo escorre depressa. Instalou-se na nova sociedade um clima de intolerância, triunfa a inteligência artificial, aumentaram as desigualdades, houve migrações em massa, tornou-se impossível dizer certas coisas e aceita-se com tranquilidade a denúncia dos comportamentos divergentes e da linguagem errada. O mundo mudou muito e ainda vai mudar mais, depois da guerra e da crise económica que nos ameaça. Estes não serão os novos anos 30, da grande depressão e dos totalitarismos, mas a mola do tempo estalou e recomeça a contagem para outra ordem mundial. As comparações que fazemos são sempre com 2019, o antes, o último ano de normalidade, por assim dizer, pois que tudo o resto é agora o afastamento em relação ao que existia, e que fica esquecido lá atrás. O rio selvagem da história acelerou nestes rápidos e leva-nos na corrente à solta. Só temos olhos para as surpresas que estão à nossa frente.
A imortalidade? Que interessa? Tudo o que fazemos será um dia inútil. Devidamente esquecido, como convém. Seremos uma memória vaga, até nem isso sermos. Depois, será esquecida a comunidade em que existimos, a própria humanidade, o sistema solar e a Via Láctea e todas as estruturas mais complexas que não conhecemos e que pareceriam imutáveis, se soubéssemos que existiam (há um belo poema de David Mourão-Ferreira sobre isso). Deus é uma ideia confortável, mas talvez até Ele acabe, quando se extinguir o nosso universo, porventura existindo outros universos por aí, cada um com os seus próprios deuses, que por sua vez poderão extinguir-se. A luz de uma vela treme um pouco antes de se apagar. Assim é connosco. Questão de tempo, tudo passa. Nada é eterno, nada é imortal, não vale a pena pensar nisso. A minha chama já treme, de tão fraquinha. Que interessa o que fazemos? que ilusão, tentar possuir o frágil e o efémero.
Não escrevi por estes dias, de viagem, neura e observações que vou esquecendo. Reentrar em Portugal envolve uma mistura de sentimentos contraditórios, por um lado é tudo agradável, mas estando bem visíveis os defeitos crónicos de um país provinciano. Não há clima como este, mas também não existe tanto marasmo no mesmo sítio e ao mesmo tempo. Ontem, pequeno passeio pela feira do livro, igual à do costume, com gente à procura de bons livros, o que parece incompatível com a manifesta complacência das editoras, bem à mostra nos escaparates das vedetas que se entretêm na escrita, mas que ninguém deseja ler. É cada vez mais difícil encontrar um autor de jeito. Vai tudo para a guilhotina em duas semanas. O mercado domina aquele universo, triunfa a politização da literatura. A feira devia ser o local onde se encontravam livros baratos em abundância, sobretudo restos de coleção, mas o conceito foi subvertido e serve para vender novidades ou para promover escritores da moda. Por outro lado, é utópico tentar romper com um modelo em que a cultura se tornou o recreio das ideias retrógradas da esquerda, numa estranha aliança com o capitalismo mais descerebrado. Repetição, banalidade, livros caros, os pavilhões interessantes para um leitor mediano são os de alfarrabistas, está tudo pela hora da morte.
Se alguém agredisse um cão sem motivo num sítio público, toda a gente reagiria com indignação. Se for uma pessoa a ser agredida sem motivo, o caso é bem diferente. Estou revoltado, foi isso mesmo que me aconteceu, mas sem que alguém ligasse pevide. A condição humana pode ser pior do que ser cão. Existe uma espécie de loucura no ar, um salve-se-quem-puder generalizado que faz vítimas perante a indiferença geral. Estamos prontos para salvar um cão da injustiça humana, menos dispostos a fazer sacrifícios por uma pessoa injustiçada. Assim vai o mundo. Fui despedido sem motivo e contra as regras do próprio capitalismo, mas não adianta queixar-me das agruras da vida. Resta prosseguir e não me deixar cair em fantasias. De resto, é matéria de reflexão isto de haver subitamente tantos doidos à solta, capazes das maiores patifarias para salvamento dos respetivos coiratos. Levo então isto como um aviso: restringir as perdas ao mínimo e recomeçar concentrado no essencial. Nada posso contra o que não controlo. Os canalhas são os canalhas e fica lá com eles. A minha consciência está limpa, não devo nada a ninguém e isso é o que mais me interessa.
Em carta dedicada a Lisboa, nas Prosas Bárbaras, Eça de Queiroz falava de uma cidade preguiçosa e triste à noite, que enterrava ideias. A beleza vinha com o esplendor do dia, mas a questão era a vida lenta e a resignação de não ter uma alma verdadeiramente criadora. Olhamos essa tua face antiga através do grão espesso de velhas fotografias e mal te reconhecemos nas camadas do tempo que se acumularam. Ainda tens o mesmo extenso labirinto de ruas estreitas, o mesmo rendilhado fino de uma colcha de casas a roçar o contorno manso das colinas, a mesma frescura da brisa ao fim da tarde, quando reaparece aquela luz cansada que transforma a tua pele em ouro. E, no entanto, já não é bem o fado aquilo que cantas, a tua tristeza ficou menos fatalista. Agora, tens um toque de modernice, às vezes exagerado, e sonhas em pertencer à família das «grandes cidades paradas nos cafés», que Álvaro de Campos descreveu na Ode Triunfal. Desejas o tumulto disciplinado das multidões e da gente que passa. Queres ser europeia, ter alma limpa, de maneira que ninguém possa dizer que nada crias embora, lá no fundo da tua essência, continues a ter a mesma sensual disposição, a bocejar de tédio, sempre contemplativa. Invulgar e serena Lisboa, sabes que tens muito tempo, não tenhas pressa, resiste um pouco à tua época e não percas a tranquilidade dos momentos saboreados, a graças das pequenas coisas belas, a risonha melancolia que te faz ser única. Não vá a beleza em excesso ainda te fazer vaidosa.
A ambulância correu em boa velocidade até ao pequeno ajuntamento que se formara no topo da rua. Ia a passar naquele momento e vi o idoso maltratado, que se estatelara no chão, talvez do piso escorregadio da chuva miudinha. Alguns bons samaritanos estavam à sua volta, preocupados, e tentavam ampará-lo. Tinham sido eles a chamar a ambulância, pois o velho estava desorientado. Isto foi ontem. Vejo-o muitas vezes no supermercado ou pelos centros comerciais do Saldanha, um homem muito pobre, solitário, sempre mal vestido. Horas antes cruzei-me com ele, vinha com um grande penso na testa, talvez de alguma queda algures na véspera. Por vezes, este homem anda com sacos de plástico na mão, para transportar o que consegue obter de produtos no supermercado (às vezes, oferecem coisas que estejam para além do prazo). Muitas vezes anda com garrafas de vinho. Observo-o sentado nos bancos de jardim da Duque de Ávila ou no Arco do Cego, sempre calado, triste, sujo. No domingo, não fiquei na rua para perceber se foi levado na ambulância. Naquele momento, não precisava da minha ajuda. Hoje, estive eu sentado num local onde ele costuma permanecer. Não o vi, havia muita gente, mas o velho não estava. Não sei o que lhe aconteceu, mas tive certo terror daquilo que imagino ser provável. Tenho o receio profundo de acabar a minha vida naquele tipo de pobreza, sem ninguém para me amparar, sem dinheiro para viver decentemente, a depender da bondade alheia, que felizmente existe, ah, sim, ela existe. Mas tenho medo de acabar assim, um dia a cair no chão, depois vem a ambulância e desapareço definitivamente dos locais que antes frequentava.
No restaurante do meu bairro, aos domingos, só entram casais idosos. Nesse dia desaparecem os trabalhadores dos serviços (a clientela da semana empurrada para os subúrbios) e temos uma noção concreta de como a população que resta na cidade vai envelhecendo, lá ao seu ritmo. Há nos rostos uma lentidão suave, quase não vemos crianças, os clientes têm tempo para ocupar a mesa e conversam uns com os outros. Saboreia-se o dia. Na sua frieza, as estatísticas demonstram que o País envelhece inexoravelmente, mas temos de ver para acreditar, suponho que é também assim em muitas aldeias, em outras zonas urbanas e vilas do interior. No meu bairro é assim, o País anda mais lentamente e os cabelos são brancos. O Portugal de idade avançada não se limita às pessoas, mas abrange os costumes e monumentos, as ideias e os problemas, o folclore e o fado. Sendo por isso longa, a memória dos portugueses deveria ser acompanhada pela saudade, mas vivemos em tempos estranhos, a nostalgia já não é como antigamente, o passado não interessa a ninguém, e suportamos o culto da juventude, onde tudo é juvenil e gracioso e o mundo se infantiliza. Seja contribuinte, cidadão, eleitor, consumidor, cada português, independentemente da idade, deve pensar que é jovem e confiar no futuro, sem olhar para trás. Este país comunica com o Estado pela internet, consome modas importadas, conclui que é fácil mudar de vida num sítio onde as coisas raramente mudam. Nesta tensão entre o velho e o novo, triunfa a ideologia da felicidade obrigatória, que nos ajuda a passar os domingos.
Sempre me fascinou aquela ideia de que existem almas gémeas para cada um de nós e nestes dias modernos até se escrevem algoritmos para tentar iludir o grande baile do acaso em que vivemos e onde é possível que dois parceiros ideais se cruzem muitas vezes no meio da multidão sem jamais se encontrarem de facto. Há quem se apaixone em numerosas ocasiões na vida, há quem infelizmente não tenha ilusões sobre o amor, cada um sofre à sua maneira. Um dia, de forma cruel, podemos encontrar a nossa alma gémea já em fase adiantada dos anos e podemos talvez pensar no que teria acontecido se o destino nos fizesse encontrar a ambos mais cedo, mas será demasiado tarde para desfazer o que foi, as crianças que nasceram e cresceram em vez das que nunca existiram, as memórias que ficaram em vez das que nunca foram inventadas. Sempre me fascinou este mito enraizado de se esconder na escuridão furtiva do tempo aquela pessoa perfeita que era só para nós. Sempre me fascinou o mito de que há uma estação do nosso caminho onde fatalmente nos devemos encontrar os dois, desviando cada um a sua linha de vida, para ser tudo divino até à estação terminal onde morreremos tranquilos, na beatitude do amor autêntico e completo, o único que não passando pelas coisas corriqueiras da biografia humana é, por isso mesmo, inatingível.
O sol brilha até com excesso de intensidade e vemos pessoas felizes ou em boa disposição; abrimos as redes sociais e chegam numerosos ecos de vidas satisfeitas e preenchidas; pelas televisões encontramos gente cheia de certezas e os políticos falam com confiança sobre o futuro, que tratam por tu. No entanto, por todo o lado há certos sinais ligeiros de inquietação, como se estivéssemos dentro de um romance negro, um mau romance, digo eu, pois o autor não soube colocar na paisagem brumas perturbadoras, nem o barulho alternado de remadores que se aproximam por um mar invisível, nem vozes sussurradas capazes de despertar receios. Esta história mal contada tem apenas alguns sinais ambíguos de pessoas desconhecidas que nos aparecem de súbito à frente, aparentemente desesperadas ou já sem fôlego; ou aqueles fantasmas que se arrastam sem destino pelos centros comerciais em busca do ar condicionado; ou aqueles velhos muito pobres, tão pobres que nunca fazem de pedintes. Por todo o lado vemos estes pequenos sinais que já não são notícia, da empresa em dificuldades que provavelmente terá de fechar, das vidas gastas, dos alucinados que se põem aos gritos na via pública, enquanto o mundo satisfeito mergulha nas importantes discussões da influência e no triunfo da futilidade.
Tento começar outra coisa, mas ainda não estou suficientemente deprimido, de vez em quando lá acontece algo que me faz rir e vejo então o aspeto mais ridículo destas tretas todas, dá-me gozo apreciar as patetices, como a daquele homem do correio que, olhando para o papel que eu lhe estendia, decretou: já aqui não está a encomenda, foi devolvida (tinha cinco dias úteis, faltavam três). Como é que sabe? perguntei. E ele: está no sistema. O homem não viu, não procurou. Estava tudo no sistema. Afinal, a encomenda foi encontrada no andar de baixo e o tipo levou uma piçada da chefe, por não ter procurado. São os dias que correm, está tudo no sistema. A chefe dizia-lhe ao telefone: isto é uma empresa, rui. Fiquei a saber o nome dele, um pateta que está a tirar o emprego a pessoas que precisam de trabalho. Vê-se por todo o lado esta mentalidade do desprezo, a resistência profunda à mudança e a ideia abstrusa de que é tudo igual, de que não vale a pena ser competente, de que a estupidez tem o mesmo valor que a inteligência. É assim o sistema, nada a fazer.