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Regras absurdas da vida

por Luís Naves, em 02.09.18

Parece ser uma daquelas regras absurdas da vida, mas quando uma pessoa está na mó de baixo recebe sempre mais críticas, seja de desconhecidos, de familiares ou de amigos com boas intenções. Dizem eles que deve haver alguma coisa de errado com alguém que pareça um óbvio fracasso: esforços inúteis, esforços insuficientes, ilusões ou caminhos que não dão em nada. Enfim, algo estará errado, e então aparecem aqueles conselhos que já foram explorados, aquelas observações que já foram pensadas, as ligeiras críticas veladas que mandam a auto-estima ainda mais abaixo. Não tens talento para o que tentas fazer ou vives numa estúpida mania de grandezas, enfim, não te sabes avaliar e quando insistes num plano estás a bater com a cabeça na parede. Se a tua vida é um buraco, então pára de escavar, dizem os amigos; se não funciona este caminho, não insistas, mas por outro lado não fiques a dormir a sesta, à espera que os teus problemas se resolvam sozinhos, embora isso (no teu caso, mas só no teu caso) não seja inteiramente má ideia, pois é preferível não dares nas vistas, fingires que está tudo bem, sorrir e confiar. A mó de baixo é culpa de quem lá está, portanto, é culpa tua. Para ti, a fasquia está sempre mais alta. Ah, e não critiques, porque é inveja.

publicado às 17:53

Isto hoje está lento

por Luís Naves, em 05.06.18

Passei seis horas nas finanças, na companhia de outros pobres, descontentes e frustrados, onde se incluíam muitos estrangeiros. Com as bases de dados, os computadores, as novas tecnologias, gerir o país devia ser cada mais simples, mas acontece o contrário, o Estado tornou-se incapaz das mais pequenas tarefas (e as finanças até funcionam razoavelmente, em comparação com outros organismos). O excesso de leis é um labirinto onde muitos se movem com extrema dificuldade. Quando insisti com um funcionário para que desse prioridade a uma senhora de 88 anos que estava por ali abandonada, ele proferiu uma frase lapidar, que julgo ser a que se ouve nestas situações: «isto hoje está lento». Portugal é mesmo assim, «isto hoje está lento», ninguém sabe bem porquê, nem interessa.

publicado às 12:46

Carta da minha sobrinha-neta Flora

por Luís Naves, em 06.04.18

Carta da minha sobrinha-neta, Flora, escrita em 2100, enviada pela máquina do tempo que ela mesma inventou, na sua primeira experiência. A carta apareceu-me hoje assim, manuscrita, na minha secretária:
«Querido tio, gostava que aqui estivesses, para poderes ver o meu mundo, tão diferente daquele que imaginaste. Não posso dizer que somos todos mais felizes do que no teu tempo, pois isso seria exagero e mentira, mas vivemos numa sociedade que, apesar dos seus defeitos, é mais justa do que aquela que conheceste, mais rica e progressiva, mais optimista e segura. Somos mais sábios? Não me parece, mas sabemos mais coisas, o que não é o mesmo. Os problemas da tua época não têm a mesma forma na minha, mas persistem neste tempo alguns dos defeitos menores da nossa espécie, a inveja, desprezo, medo, ambição e os chamados erros humanos em geral, que resultam das fraquezas correntes e que seria apesar de tudo uma grande pena perderem-se pela inevitável e progressiva modificação da nossa natureza. É talvez o problema que mais nos apaixona: até que ponto queremos manter a natureza humana, prolongar a vida, aumentar as nossas capacidades mentais e físicas, incluir uma parte maquinal nos nossos corpos, viver em comunidades de consciência alargada, entre outras amplas possibilidades tecnológicas que dificilmente poderias entender. Os meus pais ensinaram-me a gostar e cuidar de pessoas e assim vivi todos estes anos, já não vou mudar, embora me preocupe a longevidade e, claro, tudo farei para atrasar o meu próprio envelhecimento e a miséria da decadência. Tenho 82 anos, o que nesta época ainda é ser jovem, por isso viverei mais umas décadas. No ano em que nasci, em 2018 (lembras-te quando me pegaste ao colo?) sei pelos teus apontamentos que imaginaste um futuro com viagens mais velozes, energia abundante, gente em demasia, crises sociais e poderes oligárquicos. No fundo, olhavas para a tua realidade e pensavas como ela iria evoluir através de mais do mesmo: haveria aviões, mas mais rápidos, computadores mais pequenos, pessoas mais saudáveis, conflitos com mais fogo-de-artifício, um capitalismo mais selvagem. Não aconteceu exactamente assim, houve saltos súbitos e mudanças profundas, sobretudo quando acabaram os combustíveis fósseis e descobrimos a forma de viajar entre as estrelas e de construir autómatos capazes de fazer todo o trabalho mecânico. Não, não concluas que somos indolentes e preguiçosos, dispomos de um exército de escravos robóticos, mas cada indivíduo pensa em ser útil e, na realidade, vivemos uns para os outros. Dedicamo-nos à fantasia e à busca da felicidade, libertámo-nos da ideia de utilização finita de recursos (usamos sempre menos do que está disponível), explorámos outros sóis na galáxia e levámos connosco o esplendor da vida, com nova compreensão da mortalidade e melhor entendimento do universo. Tudo aquilo que entre nós te poderia horrorizar (as experiências de mente colectiva, por exemplo, ou a minha máquina do tempo), possui também alguma coisa de milagre; as nações diluíram-se e as culturas misturaram-se, não há fronteiras (excepto em alguns locais que escolheram manter-se isolados), temos mais liberdade e tolerância. Pensarias porventura que, para as nossas idades, somos infantis, ingénuos e demasiado irreverentes, certamente ficarias surpreendido com a sofisticação artificial e algo pedante das conversas que mantemos à hora do chá. Talvez te fizéssemos rir e talvez nos ríssemos de ti, meu tio-avô, que estás tão sério neste velho retrato da tua meia-idade, uma imagem diluída que tenho à minha frente e me leva, através da espessa névoa que cobre o oceano do tempo, a vagas memórias da tua existência»

publicado às 18:42

Memória da Graça

por Luís Naves, em 19.06.17

Estão a arder alguns lugares onde passei parte da minha infância: ocorrem-me as primeiras memórias, a minha avó, a minha mãe. A primeira vez em que percebi o tamanho do mundo estava na orla de um imenso pinhal (era imenso porque eu devia ter uns três ou quatro anos), e os troncos erguiam-se como se fossem pilares de uma catedral cujo tecto filtrava a luz em pequenos fios oblíquos; e o solo, repleto de fetos, tinha um ligeiro declive que me fascinou intensamente. Lembro-me do cheiro da terra e do perfume único dos pinheiros e de uma voz ao fundo, muito ao fundo, para lá de uma barreira em que terminava a floresta e se alongava uma vastidão ignorada, onde se propagavam as vozes estranhas e fantasmagóricas de não sei quem, numa língua desconhecida e com os seus dramas próprios. O pinhal ficava ao lado da casa da minha avó, nos confins da aldeia onde ela era professora primária e, um pouco afastada, talvez a dois ou três quilómetros, ficava a aldeia da Graça, que por estes dias esteve na rota do fogo e onde anos depois estudei, com pouco êxito, a catequese. Ainda hoje confundo algumas das rezas fundamentais, que nunca penetraram completamente neste meu crânio duro e mau, talvez por culpa do padre Aníbal, a quem a minha avó chamava sarcasticamente o padre animal. Lembro-me da luz pura e dos campos fragmentados, lembro-me da estrada em macadame e da pobreza, lembro-me das casas em pedra, dos currais, do porco Príncipe Perfeito que nós, as crianças, torturávamos com alegria, e todos chorámos quando ele foi vendido, gordo como um porco; lembro-me dos campos lavrados, do milho alto, mas não tenho memória do calor extremo. Eram tempos mais amenos, parece-me, a minha avó tinha um telefone em que se dava a uma manivela e se pedia linha à telefonista; lembro-me de tudo isso e muito mais, da sujidade e da água, das estrelas no céu e da lua cheia em que passeavam astronautas, lembro-me do foguetão que fizemos com pólvora e em cuja explosão pereceram duas baratas; lembro-me do peru voador e dos miúdos camponeses, da escola e do meu fascínio pelas letras escritas a giz no quadro negro; estas aldeias tinham muitas histórias, da velha que matava galinhas com o olhar, do regresso dos franceses, do escândalo que foi a minha tia a bronzear-se ao sol em biquíni, as invejas e as guerras por terra e água, o bailarico e o vinho, as velhas de negro, as vidas duras e secas, o ocasional fogo ao longe, mas isso já era mais raro que o resto, que era a vida de então, existência entretanto extinta e lembrada apenas em imagens fugitivas que se vão perdendo. Sim, não havia as temperaturas de hoje, não havia as calamidades florestais de hoje, aquele mundo desapareceu mesmo, como certamente há muito tempo se terá esfumado mais aquele chão de floresta à beira da estrada e ao lado da casa agora em ruínas, o gigantesco pinhal em que pela primeira vez pressenti a dimensão do mundo.

publicado às 13:19

Como cantaria ela os parabéns-a-você?

por Luís Naves, em 12.06.17

Num restaurante para jovens, daqueles de fast food americana, um grupo de adolescentes desatou de repente a cantar os parabéns-a-você, e foi um momento de pureza, ingénuo e simples. Em volta, havia apenas sorrisos e, no meu canto da sala, a pensar como a vida passa, senti primeiro a onda feliz, mas logo a seguir um arrepio, com a ideia repentina de que tudo será um dia esquecido; decorrida uma eternidade suficiente, digamos de quinhentos anos, nem sequer haverá a mesma língua, nem sequer porventura a mesma canção de parabéns, talvez não existam os países e as cidades, nem nada de parecido, apenas os rostos semelhantes de pessoas em tudo o resto diferentes. Terá decorrido um minúsculo nada na linha do tempo e uma imensidade e meia nas vidas humanas, pelo menos de quinze gerações. Ninguém se lembrará de quem fomos ou que significado tivemos, tudo o que deixarmos será interpretado, até se tornar incompreensível. Tenho à minha frente uma reprodução de Uma Jovem de Florença, como é conhecida a pintura de Domenico Ghirlandaio, de 1495, cujo original está no Museu Gulbenkian (existe uma grande reprodução numa estação de metropolitano); a minha imagem é um pequeno rectângulo chamado pano em microfibra, o que teria deixado o pintor italiano numa perfeita estupefacção; como está no meu ângulo de visão, em frente ao computador, penso muitas vezes nesta rapariga (quem seria, o que fez, como viveu?) muito criança ainda, olhos cinzentos e cabelo ruivo, rosto que podia ter encontrado naquele restaurante para jovens onde se cantavam os parabéns-a-você, nesse quase-nada congelado na linha do tempo e que em breve, digamos quinze gerações, nem sequer fará sentido para alguém que esteja vivo, pois tudo é passagem e esquecimento.

publicado às 16:55

Exemplo de ser português

por Luís Naves, em 07.06.17

Li na imprensa que um homem foi detido e levado a tribunal por furtar um saco de morangos no valor de 2,5 euros. Isto aconteceu no mesmo país onde se reclamam inocentes todos os banqueiros que estoiraram com bancos inteiros e ainda governantes que se governaram em contas bancárias de milhões que não estavam em seu nome, sem falar nos gestores cujas empresas têm lucros garantidos à custa do bolso de todos, mediante leis devidamente fabricadas para o efeito, pois esfolar legalmente um país inteiro não é crime. Este é o mesmo país onde vão presos ladrões de morangos e ficam à solta os benfeitores que nos roubem a valer; um país que se habituou aos grandes ladrões a quem chama doutores, mas que não tolera o pequeno furto de morangos feito por amadores; boa pátria para quem a desfruta, mas de mão pesada para quem cobiçar fruta, ou neste caso, o fruto acessório agregado, o que a botânica diz que um morango é. Pois neste país tudo pode ser, no fundo, acessório agregado, se visto do ponto de vista das elites que nos sacam, retirando as partes carnudas do corpo da nação sem que isso constitua furto ou delito, o mesmo não se dizendo para quem de repente, saltando uma simples vedação, levar um saco com morangos que, sendo propriedade privada, merece exemplar repressão, enfim, para dar o exemplo sem explicar os porquês. O exemplo de quem pode mandar e o exemplo de quem deve obedecer, de quem tem e de quem deve. Um exemplo, enfim, de ser português.

publicado às 12:14

Tralha

por Luís Naves, em 30.05.17

Acumulamos objectos ligados à nossa memória, dos quais temos dificuldade em separar-nos, mas que talvez sejam apenas coisas empoeiradas, que não interessarão a ninguém depois de nós, os seus proprietários, desaparecermos desta Terra. Na visita às catacumbas do computador, encontrei, numa incrível confusão, textos esquecidos que poucos leram ou que nem sequer foram publicados. Estavam cheios de poeira e julgo que a recente síncope da máquina misturou e alterou muitos deles. Quantos terão sido apagados? Esboços, excertos, pedaços, antiguidades, pequenas reflexões, repetições, variações do mesmo tema, obsessões e teimosias, delírios, monstros disformes, ideias péssimas, coisas incompletas e coxas, frases insensatas, passagens com observações incompreensíveis, hesitações e memórias esquecidas, histórias mortas, convicções incertas, textos cheios de lógica e sem graça, que guardei por qualquer razão que me escapa, talvez para os juntar ao nada onde acumulamos toda a tralha das nossas vidas.

publicado às 18:42

Tempos de mudança

por Luís Naves, em 08.11.16

À hora a que escrevo, milhões de eleitores americanos estão a votar nas presidenciais mais dramáticas em 16 anos. Hillary Clinton, candidata democrata, representa os interesses das oligarquias, foi apoiada pelos meios de comunicação como nunca antes aconteceu em eleições americanas e dispôs de uma máquina política demolidora que gastou verbas sem precedentes. O seu rival, o demagogo e super-populista Donald Trump, assumiu as dores de Main Street, prometeu travar o século XXI e cavalgou a onda do medo da globalização, numa campanha inédita pela sua agressividade e por dispensar a aristocracia do partido e o dinheiro dos magnatas.

O que espanta nestas eleições é a dimensão do descontentamento na América. Os trabalhadores votam agora à direita e a burguesia está na esquerda. A direita tornou-se anti-comércio livre e a esquerda conta com o apoio entusiástico de Wall Street e da banca (estes estão num pânico, com a perspectiva de vitória de Trump). A imprensa tem tratado os eleitores como um rebanho de deploráveis, mas os deploráveis deixaram de ler o que se escreve sobre eles. Estamos a assistir a uma grande mudança, que não acontece apenas na América, mas um pouco por todo o mundo e à nossa volta. Não é fácil perceber para onde vamos.

Em Portugal, a direita betinha não compreende ainda este possível segundo momento Brexit e a esquerda caviar, apesar de sentir que lhe roubaram temas queridos, tem uma reacção pavloviana de quem vê outra vez o fascismo a chegar, ou pior. Os nossos meios de comunicação fizeram uma cobertura pobre, parecia que também votávamos, e só houve espuma, opiniões superficiais e frases fora de contexto. A eventual vitória de Trump, que ainda é possível, não terá qualquer explicação para quem tenha seguido apenas os meios de comunicação nacionais.

Se Trump vencer no Ohio, Carolina do Norte, Flórida e Arizona fica próximo de uma surpresa que pode mudar muita coisa na ordem política mundial, pois este candidato representa a tendência isolacionista na América. Clinton tem um caminho mais fácil, basta-lhe vencer um destes quatro estados para acabar com a corrida do adversário. Ohio e Pensilvânia podem ser decisivos, dois estados da cintura da ferrugem onde muitas pessoas perderam os seus empregos ou as suas casas durante a Grande Recessão, para verem depois os políticos a salvarem bancos e campeões da indústria, cujos resgates implicaram despedimentos em massa.

No fundo, é esta a questão: onde meter o descontentamento e como combater a sensação de declínio? Muitos eleitores não confiam nos políticos e partidos tradicionais, querem mudança a sério e votarão em quem pareça capaz de reconhecer as feridas da crise. As desilusões pagam-se caro e os vencidos da globalização pensam que estão a ser manipulados. Se, cumprindo o cenário mais provável, Clinton for eleita dentro de algumas horas, ela será uma presidente impopular e muito activa em intervenções externas, com imagem de corrupta e perseguida por escândalos. Não lhe será fácil insistir na mensagem das elites a favor das políticas de mais do mesmo.

publicado às 16:47

Os fantasmas

por Luís Naves, em 29.10.16

Entre os grupos que se passeiam ao sol feliz do Outono tépido, encontramos os fantasmas. São figuras trágicas que, com certa dose de crueldade, classificamos mentalmente como cromos, por não terem coisas para fazer, por estarem tão obviamente fora da existência normal, por não serem como nós e por viverem assim, esfarrapados e no alheamento. Um deles aproxima-se, mal vestido e sujo, os sapatos rotos, as calças demasiado compridas, no fio, a dançarem no chão. Tem umas madeixas de cabelo a taparem mal a sua confusa cabeça. Investiga brevemente um caixote do lixo. Tal como os outros fantasmas, traz um vistoso saco de plástico, que leva com orgulho, através das margens do grande rio da sociedade. Este também fala sozinho, em longas conversas, como fazia o que encontrei atrás e que costumo ver num centro comercial, a esforçar-se por andar bem vestido, mas visivelmente solitário e com a sua vida parada algures num passado que já só existe em recordação. Hoje, estava apenas a ver passar o mundo, mas geralmente faz pequenas tarefas de vigilância, deixam-no andar por ali, no centro comercial, por ter um ar decente, mas, no fundo, é como os restantes, os que percorrem cenários como personagens em busca de uma deixa e nós, os espectadores, olhamos com divertimento para a interrupção que eles fazem na história, rimo-nos mentalmente, quer dizer, nisso somos civilizados, o nosso riso é puramente mental e acompanhado imediatamente de uma vaga culpa, pois também temos sentimentos e também nos emocionamos com as desgraças televisivas, sobretudo as mais distantes e que estão devidamente arrumadas em narrativas com princípio, meio e fim. Não é o caso destes cromos, pelo contrário, aqui o que sabemos deles? Porque pararam estas vidas? Quem são estas figuras tristes e qual o motivo de se atravessarem tão abruptamente no nosso dia tranquilo?

publicado às 19:24

Crónica demasiado pessoal de um velho Tempo

por Luís Naves, em 06.07.16

A morte de um jornal não tem a gravidade de uma morte humana, mas é à sua maneira um grande abalo na vida das pessoas e na memória das sociedades. Lembro-me daquelas semanas sombrias, quando O Tempo fechou. Talvez fosse inevitável, mas nunca soube a verdadeira razão do declínio a que assisti. É daquelas coisas que não se esquecem: só se falava do outro jornal que também fechara portas por esses dias, o Diário de Lisboa, e o encerramento de O Tempo era um notícia envergonhada e minúscula, como se tivesse falecido aquele familiar embaraçoso cujo nome não devia ser mencionado. Era ainda um jovem irreflectido, mas julgo que recebi a minha primeira grande lição sobre os dois pesos e duas medidas que regem a política.

Quando entrei em O Tempo, dois anos antes, em 1987, já na rampa inclinada, a redacção era um lugar estranho, juntando jornalistas com ideias diversas, de várias gerações e diferentes pancadas. Não havia facções definidas, nem rivalidades, nem me recordo que houvesse as maldades que depois encontrei em outros ambientes, pelo contrário, existia uma espécie de alegria ingénua e contagiosa. O director e proprietário, Nuno Rocha, era um homem elegante e alto, de sorriso fácil, charmoso e simpático, que tratava toda a gente da mesma maneira. Acho que gostou de uns textos que escrevi à experiência (obrigado, Fernando Sousa, pela oportunidade) e decidiu contratar-me. Entrei na mesma semana em que começou a sua brilhante carreira de jornalista o Pedro Camacho, mas ao contrário desse meu outro amigo, julgo que fui um erro de avaliação de Nuno Rocha, que viu em mim um talento inexistente.

 

A minha vida teria sido diferente

Se não tivesse entrado naquela altura na redacção de O Tempo, tudo para mim teria sido diferente. Em reportagem para o jornal conheci o amor da minha vida, pode parecer pedante ou piroso, mas é a pura verdade: sou um caso raro desse género de acontecimento e tratou-se de circunstância pouco profissional, pois o jornalista não se deve envolver demasiado no assunto que observa, embora não acredite no distanciamento ou no jornalismo que se demite de também sentir o mundo. Como já disse, fui um erro de casting.

Os outros jornalistas daquela redacção anacrónica ensinaram-me quase tudo o que aprendi na profissão que pratiquei durante 25 anos e certamente tentaram transmitir-me muito do que nunca cheguei a entender dela. Eram repórteres experientes e sabiam da minha falta de jeito, mas o Nuno Rocha talvez não se tenha dado conta: na praxe do caloiro (juro, isto é verdade) enviaram-me em reportagem à sede da NATO, em Bruxelas, e escrevi duas páginas de banalidades que encantaram o director. Nessa viagem, só havia craques enviados por outros jornais (lembro-me do Afonso Camões e do Miguel Gaspar); o Fragoso Mendes, do DN, perguntou-me há quanto tempo era jornalista e eu, parvo, disse a verdade, desde a semana passada, e o Fragoso, filosófico: ‘Está tudo doido’. Talvez a loucura possa ser explicada; como a redacção era pequena, escrevíamos sobre tudo e mais alguma coisa. Que melhor escola podia existir?

 

Vítima do Cavaquismo que defendera

Pedro Correia conta nesta belíssima crónica como era a redacção de O Tempo no início dos anos 80 e escreve um belo texto de memória sobre Nuno Rocha, que faleceu ontem, aos 83 anos. Também é muito justa esta evocação assinada por João Cândido da Silva: Reconheço imediatamente o retrato de um jornalista que marcou toda uma época. Mas eu tive menos sorte; assisti aos dois últimos anos, de declínio e morte de O Tempo. No colapso, havia razões financeiras que nunca entendi, talvez fosse parte de uma crise mais geral dos meios de comunicação, confrontados com a súbita perda de leitores ou de interesse em publicações centradas nos assuntos políticos e na discussão das grandes clivagens ideológicas. Os jornais eram caros de fazer e distribuir e precisavam de uma modernização da linguagem, da imagem e do estilo. Talvez fosse isso que faltou.

Não conheci intimamente Nuno Rocha (ele era meu director), mas testemunhei alguns momentos da sua humilhação pública. Lentamente, perdeu o controlo da empresa e via-se no olhar o desespero do fracasso ou de quem tombava de muito alto. Asseguro-vos, uma das coisas mais tristes é assistir à queda de um anjo. Ele, que tinha sido o grande jornalista, o homem poderoso, que dirigira um jornal de enorme êxito, confrontava-se então com a perspectiva da falência. Foi lamentável o episódio em que Nuno Rocha perdeu o controlo da sua criação e acabou escorraçado, como um velho incómodo. Mil perdões se falto à verdade, mas foi isto que vi, o poder de direita já não precisava de um jornal de direita que concordava com esse poder. Ironia, O Tempo foi vítima do Cavaquismo que defendera com unhas e dentes. E a ‘classe jornalística’ assistiu ao fim com um encolher de ombros: afinal, era uma publicação de direita.

 

Não se regressa da derrota

Nuno Rocha perdeu o controlo do jornal e teve de sair. Da agonia ao fecho foi um processo rápido. Provavelmente, não houve investidores para a modernização, também não havia entusiasmo para a concretizar. A redacção esvaziara-se e eu fui um daqueles que não saíram a tempo. Havia outros, todos personagens de romance. E não posso deixar de lembrar aqui a tragédia de Eduardo Guerra Carneiro (das prosas mais perfeitas que encontrei na vida) um dos que foram ficando no esquecimento que não mereceram. Enfim, na fase terminal, o raciocínio deixara de ser o do entusiasmo e da tolerância, o poder não precisava daquilo, era mais fácil fazer outros projectos de raiz, com menos jornalismo e mais do resto que temos agora em abundância.

Nas décadas seguintes, encontrei-me com Nuno Rocha algumas vezes. Ele perguntava-me pela minha mulher, era mesmo a primeira pergunta que me fazia, sempre com ternura. Sabia da minha história. Mantinha aquele ar distraído e a mesma elegância no trato. Julgo que tentou outros projectos porque não podia estar quieto, mas fracassaram um bocadinho ou nenhum deles triunfou, não sei. Eu fui à minha vida, o Nuno nunca conseguiu regressar da sua derrota, depois reformou-se, deixou de ser falado. E o que aprendi com ele? Ah, a resposta a essa pergunta é relativamente fácil: aprendi o valor da liberdade, o seu valor inestimável e precioso, pois foi isso que existiu sempre no jornal dele. Como é que se escreve sem usar esse elemento tão custoso de ganhar e tão penoso de manter? Não sei se é possível, só sei que escrever com liberdade vale bem uma derrota sem regresso.

publicado às 22:46



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