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Pedaços do mundo e grãos de areia

Costumava existir separação nítida entre realidade e imaginação. Havia o mundo dos factos e havia o mundo da fantasia, e os dois não se misturavam, eram como a água e o azeite. Na Era em que vivemos já não é assim. As notícias assumem narrativas e têm dificuldade em aceitar os próprios factos, tendem a criar realidades parcialmente ficcionadas, baseadas naquilo que desejamos ver. Os escritores, que se dedicavam a imaginar irrealidades desconfortáveis, agora só são publicados se não contarem histórias, só são publicados se escreverem crónicas pessoais, construídas com as mil banalidades da existência e separadas da fantasia. Nas notícias meio-inventadas, tornou-se difícil distinguir o falso do verdadeiro; na literatura os escritores praticam a autoficção e o enredo verídico, portanto, sem grande lugar para a invenção. Os noticiários moralizam constantemente: a actualidade é maniqueísta, o bem contra o mal. Por seu lado, a literatura tornou-se didáctica e militante, também repleta de crenças de bem contra o mal. O jornalismo, que devia tratar de factos, tem horror da realidade; a literatura, que devia tratar da imaginação, aterroriza-se com a sua natureza.
Vários dias sem tocar no romance e ando nervoso. O livro avança a bom ritmo, não me interessa se cumpre os requisitos teóricos. Aliás, a teoria não me interessa. O estilo, o conceito, a carpintaria (como se diz), se está na moda ou o que vão pensar os leitores, nada disso me interessa. O destino mais certo do Homem Morto é ficar na gaveta, por isso, o que fizer é o que deve ser. A única preocupação é que aquilo mexa, que o leitor de repente consiga imaginar uma coisa em movimento, abstraindo-se de mim, ignorando a minha presença: não posso ser mais do que um árbitro quase invisível. As editoras não querem ficção, desistiram de contar histórias, dizem que as pessoas estão contentes na Netflix, onde se encharcam de imaginário. As livrarias andam cheias de livros para o Natal, clássicos e não-ficção, uns raros romances contemporâneos de nomes sonantes; o livro é um presente popular (compram-se os nomes conhecidos, mas ninguém os lê) e os escritores populares são aqueles que vendem; os que vendem são os que dão entrevistas na TV, onde nos programas culturais circulam sempre as mesmas figuras, que falam sobre uma data de coisas fáceis de esquecer, em frases floreadas, de preferência sobre tudo o que não seja literatura. Ninguém quer saber aquilo que o escritor pensa sobre o seu ofício, os temas culturais são propriedade da esquerda; nunca há escândalos, a não ser quando o artista X diz mal do artista Y, com sarcasmos e bisbilhotices, mas isso é para cómicos ou jornalistas e esses não são para levar a sério; no mundo sério, pelo menos em público, ninguém diz mal, está tudo desinfetado.
A vida real dos novos camponeses é dramática. Alastra o fenómeno dos sem-abrigo; por todo o lado, a pobreza dos imigrantes, na sua maioria sem papéis e que se vergam e gastam em trabalhos penosos e mal pagos; sob as arcadas, começam a aparecer tendas, onde os mais miseráveis dos miseráveis se protegem do frio, mas nem essas tendas improvisadas os podem proteger da chuva; e como tem chovido! São às centenas os estafetas da Uber, numa roda-viva de bicicletas. Estas pessoas chegam do Sri Lanka e desconhecem a língua dos nativos; vivem em hostels turkish style, habitam silenciosamente nos meandros da sociedade, nunca fazem grande barulho, ninguém repara neles, a não ser pelo cheiro, quando se tornam sem-abrigo. A bolha mediática deixou de os ver, entretida a discutir temas fraturantes (questões de género, de raça, de identidade, direitos das minorias e culpas coloniais); a alta casta anda dividida em torno de minúsculas bizantinices, surda perante o tumulto da multidão desesperada que, lá fora, aguarda a abertura de uma frincha nos portões.
Há numerosos temas para crónicas, mas preciso de me interrogar mais vezes nestas páginas soltas. Isto devia ser diferente. Escrevo demasiado sobre o que não me devia interessar. Nestes fragmentos há observações sobre a realidade, mas poucas personagens verídicas e escassas reflexões biográficas. O facto é que a minha biografia é de pobre, portanto nunca acontece nada, e a ausência de personagens explica-se pela relativa solidão. Ando a ler excesso de notícias e, sabendo que devo limitar o consumo de atualidades, aquilo funciona como uma espécie de droga dura. É difícil deixar o vício e, no entanto, devia ser fácil, nem que fosse pela circunstância de muito do que leio ser manipulado (e farto de saber que leio textos desonestos). O ambiente das discussões públicas é tóxico e intolerante, o que parece paradoxal: vivemos num mundo pós-ideológico que perdeu as referências morais, mas nestas bolhas mediáticas existe máxima intransigência sobre assuntos irrelevantes. O fanatismo religioso ou político de outros tempos revive agora nas pequenas trivialidades artificiais. De resto, triunfa a mesma estupidez e falta de escrúpulos própria dos tempos de trevas. As discussões decorrem entre limbo e purgatório, no quentinho dos sofás.
Escrevi num livro de apontamentos algo que não cheguei a usar: “Vivemos numa farsa, as pessoas ficam muito contentes com as pequenas alegrias da satisfação imediata, com aquilo a que chamam felicidade”. Não tem data, mas aplica-se a um filme que vi pela primeira vez, A Ultrapassagem, de Dino Risi, italiano, dos anos 60, que pega neste tema. O filme funcionava como antecipação do mundo que aí vinha, superficial e irresponsável. O Ocidente mergulhou, entretanto, numa realidade virada para a satisfação de impulsos, com uma espécie de crónico défice de atenção, como o daquelas pessoas que estão sempre à procura de novas sensações e não conseguem parar essa busca transformada em droga; pessoas incapazes de se focar no essencial, aliás, como o protagonista, interpretado por um extraordinário Vittorio Gassman. Estão-se nas tintas para o resto, para a sociedade, para a família, para tudo o que esteja fora do seu umbigo, a única coisa que lhes interessa. Impossível não pensar na forma aparentemente fácil como tudo aquilo flui, ao contrário do que acontece com as xaropadas contemporâneas, mais a sua inaturável tendência para a moralidade (a série da Amazon que segue o senhor dos anéis tem heróis de ação femininos, elfos negros e hobbits com pronúncia irlandesa; vi um episódio e fugi). O mundo velho é como as canetas de tinta permanente, que já não servem para nada: objetos estéticos para colecionadores, mas ninguém escreve com peças de museu. Um eletricista veio aqui a casa reparar umas coisas e comentou a qualidade dos interruptores: “Isto era muito bom, mas já não se faz. Deixaram de fazer o que era bom”. Não é só nos interruptores: deixaram de fazer bons filmes e já não sabem ir à Lua. Já ninguém escreve com canetas a sério, podia ter dito o bom eletricista.
Aqui posso escrever o que me apetecer. Ninguém vai ler e, se alguém vier ler, não terá qualquer surpresa. Tenho pensado muito na minha escrita. Tentarei não abandonar mais a literatura. Talvez já não consiga. As notícias são banalidades, quase sempre coisas falsas que todos repetem. O estilo perde-se naquele registo de lugares-comuns. Os diários podem ser relatos dos acontecimentos (mas isso só faz sentido se quem escreve é um dos raros alfabetizados de uma sociedade; estava a pensar nos velhos diários escritos por pessoas comuns, os quais deixam claro o que pensavam os contemporâneos de cada época). Há ainda diários íntimos, que só cada um pode escrever, mas são algo pretensiosos: ninguém é tão sincero que não minta um bocadinho sobre os seus sentimentos, ninguém é tão sincero a ponto de presumir que os seus textos jamais terão leitores e, por isso, não existe em diários íntimos a autenticidade absoluta do pensamento e devemos perdoar certas cedências à posteridade e aos amigos. Por falar nisto, em fio de ideias, estava a refletir, pouco antes, meio ensonado, sobre o carácter premonitório da arte. Os melhores livros antecipam de maneira inconsciente as grandes verdades do futuro. Não existe qualquer pista sobre o mecanismo, que devia assustar os seus dotados (Dick, Simenon, Verne, entre outros gigantes). Kafka imaginou um romance que foi vivido por muita gente apenas anos depois da escrita, durante o Holocausto e o terror estalinista, pessoas que não sabiam o crime de que eram acusadas, cheias de esperança de esclarecer o equívoco, incapazes de compreender que não era preciso terem praticado um crime para serem culpadas. Algumas destas vítimas, sem dúvida, talvez tenham recordado nos seus últimos instantes aquele estranho romance com título O Processo, que tinham lido anos antes, que afinal não era uma fantasia, mas algo muito realista, que relatava as suas próprias desgraças. Na mesma lógica, tendo em conta que o essencial da nossa arte é bizarramente pessimista, arte sombria, obcecada pela decadência da civilização, é seguro dizer que nos espera um futuro de colapso. A dissolução das democracias é já óbvia e tudo na economia parece insustentável. Na ordem intoxicada em que vivemos, o desastre está ao virar da esquina.
Portugal é um país lírico e sentimental. Há uma crença algo ingénua no poder da poesia sobre a razão da força da gravidade, há também preferência geral por narrativas que puxem as lágrimas como água de um poço. Vemos isto na política, na literatura, nas redes sociais. Na campanha eleitoral, por exemplo, as discussões superficiais dos candidatos prometem soluções milagrosas e geralmente instantâneas, sem custos para o utilizador. Tudo se vai compor na pátria como que por magia, através de uma ideologia simples e óbvia, nunca aplicada por motivos que não se entendem, mas que devem ser razoáveis. O pensamento mágico do lirismo nacional torna-nos fortes no campo da literatura, onde domina o sentimentalismo da frase bonitinha e arranjadinha como um canteiro de flores. Enquanto leitores de romance, preferimos os temas agradáveis, o narcisismo dos autores, os bons sentimentos progressistas, as personagens exemplares do politicamente correto, as histórias que nunca pisam o risco. Enfim, tudo aquilo que não incomode as nossas pacatas consciências. Nas redes sociais, assistimos de bancada a discussões que nunca vão ao essencial: andam por ali a depenicar a clara do ovo estrelado, a evitar a gema com nojo. Não admira que o nosso povo aprecie futebol, modalidade que não é bem um desporto, mas a gestão contínua das ilusões dos adeptos em campos inclinados. Não estou a criticar. Claro que o lirismo sentimental da nação também tem as suas vantagens, pois entre os altos e baixos da autoestima há aqueles momentos em que a euforia se encontra no topo. O carácter do povo português talvez o torne mais resistente às grandes desilusões que atingem regularmente o resto da humanidade. Quando tocados pela adversidade, nós, entre um poema e um suspiro, encolhemos os ombros e seguimos em frente, a acreditar com toda a força que melhores dias virão.
Tenho saudades da nostalgia e já não me interessa o que possa parecer antiquado. Envelheci e sonho com a juventude eterna, sem espaço para transportar na velhice a tralha acumulada durante a vida. Os objetos tornaram-se baratos, acessíveis e triviais. Parece que não tenho lugar para as memórias: elas não cabem na mala, não cabem na casa. As mensagens duram quinze segundos ou duzentos e quarenta caracteres, exigem pouca atenção; leio tantas de uma vez, que as esqueço todas. A arte também é efémera e decorativa: as instalações são desmontadas depois da exposição, as ideias provisórias vão passando, os livros ficam duas semanas na livraria e ninguém os compra; ou melhor, são comprados se os escritores fizerem o pino para atrair a atenção do público, dizendo uma banalidade memorável por mais de um dia. Tenho memória de periquito e voo fascinado por coisas fúteis. A mediatização excessiva implica que em todo o tempo surgem variações da mesma novidade, como variantes do mesmo vírus a causar exatamente a mesma excitação que a anterior variante. Estou mergulhado na repetição monótona e incessante de temas sempre idênticos. Por exemplo, se durante duas semanas não ouvir nada sobre os assuntos do dia, terei no regresso a sensação de que nunca saí do sítio. Uma sociedade sem nostalgias pensa a curto prazo; é tudo estruturado, mas sem rasgo; é tudo defensivo e sem risco. Por isso, as canções na rádio parecem-me todas iguais, formatadas e sem defeitos; é por isso que os protestos me parecem um ritual sem alma, com emoções falsas; é por isso que me atrai o entretenimento desistente, com jogos de futebol decalcados uns dos outros, com simples variações das mesmas peripécias. A sociedade contemporânea é como um carro atascado na lama: lá dentro, para passageiros como eu, há imenso barulho, sensação de poder e de movimento; na realidade, o veículo já está condenado à estagnação.
Como será o mundo daqui a vinte anos? O exercício de imaginação tem elevado grau de incerteza, mas é provável que o Ocidente ainda esteja a discutir a sua decadência, embora já sem grandes ilusões. A China será o país mais rico do mundo, um colosso criado pela segunda globalização, a dominar as subtilezas do poder no século XXI. Os Estados Unidos talvez ainda possuam a maior força militar, mas o talvez é necessário, pois não sabemos os efeitos da próxima crise financeira, da qual estaremos a recuperar com dificuldade. A federação europeia, como de costume, estará a iniciar a sua enésima cimeira decisiva. Daqui a vinte anos, ainda estaremos a falar da ameaça iminente das alterações climáticas, das desigualdades e das migrações, do custo da alimentação e do desemprego, da pandemia. Falaremos de estados falhados, do terrorismo extremista, da ruína nos paraísos socialistas, das expedições a Marte, de literatura pós-moderna e do noticiário superficial; haverá banalidades e coisas sérias, sonhos e pesadelos, ideias novas e imitações, recuos e avanços; as pessoas vão continuar a divertir-se e a chorar, distraídas com os seus telemóveis de bolso de oitava geração; os saberes velhos serão esquecidos e os novos terão o seu momento de glória. Como será o mundo daqui a vinte anos? Enfim, bastante parecido com o mundo de hoje, embora com outros facínoras e heróis, suficientemente reconhecível para que seja também assustador e desmedido.
Do que sucede nas nossas vidas, quase tudo se perde no esquecimento, como se um grande cansaço nos forçasse a apagar da memória aquilo que vivemos. Estive a tentar arrumar os textos deste confuso memorando e, de repente, com surpresa, dei-me conta de que já passou muito mais de um ano e ainda estamos na pandemia. Assustados, de máscaras, à espera do que se vai seguir. Há como que uma decomposição social à nossa volta, vemos na rua pessoas que já não aguentam mais, que parecem alucinadas, a falar sozinhas, a gesticular, com pressa de ir a lado nenhum. A vacinação ainda vai a meio, os números de infetados voltam a subir, há umas euforias, depois toda a gente regressa à depressão, os jovens andam pelas esplanadas em estado de exuberância, as ambulâncias não se calam, nas suas gritarias, muitas empresas vão falir em breve. Entretanto, arranjei trabalho num jornal, estava nas lonas, a conta bancária a zero, posso respirar um pouco, aliviar as aflições. O jornalinho vai na nona edição, mas não me parece que avance muito além da trigésima. Projetos políticos em contexto de incerteza, incógnitas. O regime apodrece: já não há dinheiro para manter os tachos dos avençados; todos os dias há um escândalo de amiguismo, nepotismo ou incompetência; o governo minoritário fala grosso; acumulam-se sinais de que vem aí uma crise financeira. Como é que depois disto tudo ainda será possível dizer que chegam os tempos difíceis?