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Insatisfação

por Luís Naves, em 03.10.18

Continuo adiado, a vida suspensa, a espera interminável, a meio do labirinto. Acumulam-se as páginas por publicar e vou sonhando com textos que não chegarei a escrever, enquanto escrevo outros que parecem sofríveis ou inúteis. Vou mantendo a cabeça fria. Nem sei bem como cheguei aqui, mas deve ser um fado qualquer, algum mal terei feito para merecer o castigo, pois não me parece justa a explicação habitual de que o país é assim e maltrata os seus melhores, ou talvez não deva ter a veleidade de me incluir entre esses que a pátria rejeita, lá está, é o excesso de orgulho que me persegue, essa constante que, vendo bem, me definiu, resultando em que falhei em quase tudo o que fiz, fiquei sempre distante, muito longe até, do que podia ter sido. A história da minha vida, esse intransponível abismo que vai do homem à realidade que ele sonha.

publicado às 09:43

Dias esponjosos

por Luís Naves, em 11.07.18

Os dias esponjosos da longa primavera húmida deram lugar a um calor ventoso, de calma aparente, mas com algo de intranquilo no seu interior. As pessoas andam nervosas, sem saberem bem o que as espera. Há pequenos sinais pelo ar, de gente com pavio curto ou com pressa em excesso, gente sem tempo para escutar o que as envolve. O país está insuflado de almas impacientes e sem esperança, que se arrastam, num cansaço deprimido, à espera de uma pausa para respirar. Certa revista trazia na capa a vedeta a confessar o seu desespero; é do que mais vende, a exposição da tristeza alheia. Ao lado, as capas dos jornais festejavam o salvamento de uma equipa de futebol juvenil numa caverna da Tailândia e a transferência milionária do símbolo futebolístico da nação; é também do que mais vende, a boa notícia sobre a felicidade dos outros. Sim, estes são tempos de cinza, dos quais não ficará quase nada, excepto aquilo que mais vende, que é também o que possa reunir as qualidades do artifício, do exagero, do agressivo e do perverso, de preferência disfarçadas de contestação superficial à ordem burguesa (ou será desordem?).

publicado às 10:28

A minha vida de molusco

por Luís Naves, em 06.06.18

Percebo um pouco melhor o que significa viver na concha. Tenho uma existência de molusco bivalve, com curtos vislumbres da vida exterior e gasto o meu tempo nestas escritas, que se destinam ao inútil, e em longas reflexões sobre os farrapos da realidade que me chegam através dos filtros da mediação televisiva. Sei cada vez menos sobre o que se passa nos meios onde se tomam decisões, desconheço as discussões das elites e ouço com crescente cepticismo os poucos debates tolerados, onde os políticos do costume repetem as banalidades que se esperam deles. Gasto demasiado tempo a ver notícias na internet, a tentar descortinar para além da agreste paisagem do meu aquário, do qual aliás só vejo uma parte ínfima, pois da minha concha tenho um ângulo de visão limitado. Em compensação, há mais tempo para pensar: ninguém me telefona (este texto foi interrompido pelo telefonema de alguém que se enganou no número e assustei-me com a chamada), posso ler ou passear, entretenho-me com tarefas domésticas, vou anotando o que escrevi em cada dia numas tabelas estatísticas que revelam ritmos um pouco absurdos de trabalho; muitos dos meus amigos desertaram. A vida na concha tem os seus momentos de conforto e os seus problemas. Posso fechar completamente as valvas do exoesqueleto, até não ouvir nada do que venha do exterior, posso abrir ligeiramente e olhar, sempre com receio, a agitação incompreensível lá fora. Oscilo entre esta vontade de viver protegido e a necessidade de sair da casca.

publicado às 11:54

Que restará de tudo isto?

por Luís Naves, em 22.04.18

Que restará de 2018 daqui a mil anos? Admitindo que a civilização ocidental resolve os seus maiores problemas, trinta gerações são uma eternidade, a ponto de nessa altura sermos incompreensíveis, como os bizantinos são para nós. Partindo do princípio de que a nossa civilização encontrará formas de progredir sem passar por colapsos traumáticos, talvez se consiga resolver a limitação das viagens espaciais, prolongar a vida humana e desenvolver máquinas inteligentes, talvez se encontrem soluções para os problemas da energia, ambiente, água e alimentação da humanidade, que será mais numerosa e transformada. Em 3018, haverá cem mil milhões de seres humanos dispersos por trinta planetas habitáveis em 80 sistemas solares explorados, cujas ligações levarão trinta a cinquenta anos a concluir entre si. Sendo necessário para cada viagem um décimo da longevidade média dos astronautas geneticamente modificados, haverá aventureiros famosos a concluir a sua sétima ou oitava viagem (os passageiros estarão em hibernação, para consumirem o mínimo de recursos, e a maioria dos sistemas terão inteligência artificial). Cada pequeno núcleo de viajantes levará consigo embriões humanos. Com núcleos populacionais tão distantes entre si, a linguagem estará a fragmentar-se a partir de uma língua franca baseada em inglês, castelhano e mandarim, cujas formas arcaicas, tal como eram faladas no início do século XXI, serão compreensíveis só para peritos, como o latim pertence hoje a uma elite de sábios. Para historiadores especializados em assuntos arcanos, o ano de 2018 terá uma sensaboria interna que os obrigará a vasculhar velhos arquivos nas camadas mais profundas do conhecimento, consultando informação que ninguém terá procurado desde o centenário anterior. Entre o que não se perdeu entretanto, por causa das tecnologias obsoletas dos arquivos, será possível recuperar imagens e factos, com dúvidas sobre o respetivo grau de relevância: por exemplo, qual o motivo de determinado conflito num país obscuro que se chamava Síria ou o que pretendiam as potências da época, Estados Unidos, China, aliança europeia (seria este o nome?), os impérios russo ou japonês, núcleos políticos que se desintegraram ou reconfiguraram ao longo dos dois séculos seguintes, para não falar daquelas pequenas nações extintas com nomes poéticos, como Portugal, cujos problemas não passarão de enigmas quase insolúveis, a exigir especulação histórica. Das artes, pouco restará. O pós-modernismo foi uma transição em que se privilegiou a moda e o fogo de artifício, que por definição não resistem à tradução e à poeira do tempo. Mesmo para eruditos, será difícil distinguir entre 2018 e os anos à volta (o que terá sido aquela crise de 2008?); e alguém, mesmo culto, terá dificuldade em perceber se 2018 foi antes ou depois da Guerra Fria, precisando de fazer contas de cabeça para compreender que já tinham passado gerações após os grandes tiranos do século XX, cuja fama misteriosa será o que para nós é a celebridade de Átila, o Huno. O cidadão comum terá dificuldade em lembrar-se que 2018 ocorreu depois da primeira viagem à Lua, que por sua vez os estudantes mais cábulas tentarão colocar no século XXI, levando os tutores robóticos à impaciência. Talvez os historiadores ortodoxos concordem em chamar ao nosso tempo o breve período do liberalismo complacente ou terceira fase capitalista arcaica, ainda antes da pré-robotização e da ascensão das máquinas, certamente um momento pouco fértil do lento progresso rumo ao início do século XXII, o da segunda renascença, aí sim, com aceleração da História e coisas interessantes para estudar.

publicado às 18:33

É tudo demasiado frágil

por Luís Naves, em 10.04.18

No centro da cidade, há um constante inferno de ambulâncias que passam com as sirenes numa chiadeira assustadora. Isto aconteceu ontem à tarde: uma ambulância de bombeiros aproximava-se da avenida em velocidade cautelosa, num grande chinfrim, a tentar passar o vermelho; de súbito, em sentido perpendicular, houve um guincho de travões e o som horrível do choque brutal entre dois veículos, que ainda vi parcialmente: uma mota de grande cilindrada estatelara-se contra a traseira de um táxi que travara no verde para deixar passar a ambulância. Não me virei a tempo de ver o que acontecera ao motociclista, que foi a minha preocupação, o que acontecera ao condutor da mota? e só percebi toda a cena quando o táxi saiu do cruzamento, para parar um pouco mais à frente. No solo, jazia um homem e o insólito era o fatinho completo, a gravata encarnada, a cara atrás do enorme capacete preto, onde apareciam uns óculos com ar entre o aflito e o confuso. O homem estava estendido ao contrário do que eu pensara, tentou erguer-se e desfaleceu. Suspirei de alívio, porque ele parecia consciente e não fora atropelado por outro carro. Os homens da ambulância ficaram imediatamente no local, tudo se passou de forma civilizada, sem pressas nem pânico: estabilizaram o ferido, o taxista colocou o triângulo do seu veículo atrás da mota desfeita, no espaço de minutos chegou a polícia e o homem do fato permaneceu no solo sob a atenção dos socorristas. Não fiquei para ver se foi levado para o hospital, mas presumo que isso era lógico. Assisti apenas a isto, talvez a um acidente sem consequências, só mais tarde fui pensando no que não testemunhei: o motociclista estava estendido no solo com a cabeça virada para a mota, o que significa que terá dado um salto mortal completo no ar, com as pernas a rodarem 250 graus; isso também significa que caiu no solo desamparado e provavelmente de costas, com risco de partir ossos da bacia, um braço ou alguma vértebra. A vítima estava consciente e mexeu-se (bom sinal), mas não conseguiu pôr-se de pé. Talvez os ferimentos fossem ligeiros, mas era impossível não admitir mazelas mais graves e estive todo o dia a pensar na fragilidade de tudo: uma motona cara, o fato elegante, a vida cheia de sucesso, mas isso pode mudar em segundos, num qualquer acidente estúpido, porque travar uma mota é difícil e um táxi queria deixar passar uma ambulância que podia ter esperado pelo verde.

publicado às 12:32

Acidente

por Luís Naves, em 05.11.17

Recordei com dificuldade o episódio do acidente de 1975, a pensar nos detalhes quase milagrosos e até improváveis da minha sobrevivência, e então passou-me pela cabeça que não existe qualquer prova de que eu esteja mesmo a viver este instante, o qual pode ser o sonho de alguém que ficou em coma em 1975: posso existir apenas um pouco depois, por hipótese um mês depois, e tudo o que vivi após o acidente não foi mais do que a ilusão e o sonho em fragmentos de um jovem adolescente inanimado na cama de um hospital. Nem sequer este relato prova a minha existência na forma em que julgo existir, pois quando releio o que escrevi pareço notar subtis discrepâncias entre aquilo que julgo ter escrito e aquilo que efectivamente vejo escrito. As duas coisas nunca coincidem: ou a minha memória me prega constantes partidas ou então é a realidade que está alterada e deixou de ser autêntica. As hipóteses de acontecimentos paralelos nestas memórias do acidente são intrigantes, pois se o meu peso fosse apenas ligeiramente maior ou a velocidade do carro um pouco diferente, se os ziguezagues tivessem sido um tudo de nada invertidos ou mais alargados, se em vez de batermos na barreira tivéssemos caído na ravina, se não houvesse por ali pessoas para ajudar, então tudo teria sido diferente, e o que por vezes permite distinguir duas alternativas é quase nada, mais dez quilómetros por hora no momento do choque e estaria morto; e foi decisiva a trajectória daquele pedacinho de vidro, que não teve força suficiente para me tirar uma vista ou que foi desviado num milissegundo por uma colisão com outro fragmento, isto no meio do caos anárquico à minha volta. Enfim, o que aconteceu tinha forçosamente de acontecer daquela forma; e a fronteira entre nada e quarenta anos de consciência é acima de tudo um limite intransponível, talvez o mistério da desordem, ou porventura sou uma alma sem corpo, a flutuar no limbo, ou sou um ser inanimado, estendido numa cama e ligado à máquina, e em certo momento posso despertar e estarei de volta à minha realidade, a verdadeira, e tudo o que entretanto vivi não terá sido mais do que um fio de pequenas mentiras que nunca me aconteceram, de simples farrapos que sonhei e me preencheram a vida inteira.

publicado às 21:50

Fatinhos demasiado justos

por Luís Naves, em 01.06.17

Talvez a nossa época seja olhada como um tempo em que havia fatinhos demasiado justos, barbas compridas (por convicção ou moda), atentados cruéis e rebeliões eleitorais. Talvez se lembrem de nós como um bocadinho ingénuos, contemporâneos de uma era superficial, em que o humor era ácido e a elegância rasteira. Gostávamos de fogo de artifício, não tínhamos tempo para nada, a classe média fora destruída e começávamos a inventar inteligência artificial e drones, juntando os dois, enquanto descobríamos planetas em outros sistemas solares e desenvolvíamos algoritmos. A arte não era demasiado interessante, porque tínhamos perdido o sentido trágico da História e suspendido a busca da autenticidade transcendente da vida. As nossas elites eram cínicas e os cidadãos andavam zangados, dispostos a votar nos primeiros que aparecessem a querer arrasar tudo. Tínhamos sido traídos pela ganância dos banqueiros e pela falta de coragem dos intelectuais; vivíamos num lamaçal de dívida, amargos e tristes, com profunda nostalgia pelo passado e com desconfiança cautelosa do futuro.

publicado às 09:46

Mal-encarado

por Luís Naves, em 31.05.17

A impaciência crescia, igual uma comichão incómoda, das que não nos livramos sem esgravatar sob a pele com as unhas afiadas da raiva. O corpo cansado recusava-se a avançar no doloroso caminho que o Sol abrasava. Todas as pessoas feias me irritavam, mas sobretudo as bonitas, pois a beleza é um insulto: esta por falar alto, a outra por se meter à minha frente; e havia o peso do casaco demasiado quente que me sufocava e a necessidade de gritar no meio da rua, sem que isso fosse possível. A brisa ácida trazia com ela o cheiro da comida gordurosa. Os carros tentavam atropelar-me e cresciam outras ameaças à minha volta: o cão perigoso que me evitou, transeuntes hostis, jovens que falavam alto e me queriam empurrar do passeio, o vendedor que me impingia algo e desistiu logo, o bronco tatuado que caminhava a sorrir (para quê), a velha irritante cheia de sacos, o miúdo com os pés no banco a olhar para o telemóvel, o chão sem sombras, o avião a rugir por cima das casas, a pomba parva que trotava à distância de um pontapé, a fila de carros parados a buzinar, as manchetes cretinas dos diários e o tom delico-doce das montras, tão felizes, que apetecia espatifar com uma pedrada.

publicado às 18:47

O telegrama judeu

por Luís Naves, em 12.02.16

Num artigo do New York Times sobre tensões internas da UE entre países de leste e ocidentais, era citada a história do telegrama judeu, anedota divertida, que se resume a isto: “Começa a preocupar-te, pormenores seguem mais tarde”.

Não reencontrei o artigo (pouco importa, não era interessante), mas julgo que a ideia da frase se aplica de forma perfeita à actualidade. Sentimos que se prepara alguma coisa profundamente má, mas não sabemos exactamente o quê. Os mercados andam nervosos e os economistas explicam esse nervosismo como algo um pouco no ar, que tem a ver com preços de petróleo, instabilidade dos bancos, lucros em queda, abrandamento na China, dívidas monstruosas, pequenos pânicos bolsistas.

Começa a preocupar-te, os detalhes seguem depois, aplica-se muito bem à situação geral, sobretudo nos países avançados, onde alastra um descontentamento difuso. Os eleitores estão furiosos com os efeitos de uma crise interminável, mas sobretudo com a impotência das elites e a arrogância dos intelectuais, a língua de pau dos burocratas e a indiferença dos poderosos. As classes altas instalaram-se numa torre de marfim e o homem da rua perdeu a sensação de mobilidade social. Aprofundam-se as desigualdades, mas o poder nunca falou tanto da igualdade a todo o custo.

Esta ansiedade junta-se à opinião, cada vez mais espalhada, de que os pequenos não contam (proprietários, lojistas, empresas, países) e que só a dimensão garante influência. Os líricos dizem que não há partidos à sua imagem, como se houvesse um partido para cada um de nós ou alguém impedisse a formação de novos partidos. Estas tiradas demagógicas apenas abrem caminho ao corolário de não valer a pena participar, que o homem simples não risca nada. É isso que anuncia o telegrama judeu: a história mal contada conduz a medos imprecisos e, mais tarde, ao receio cínico de se tentar fazer alguma coisa para travar os pormenores que não tardam.

publicado às 13:04

Da hipocrisia

por Luís Naves, em 08.01.16

Por dá-cá-aquela-palha surgem violentas indignações, mas as conversas são sempre sobre trivialidades, clubes de futebol e assuntos fracturantes que interessam a meia dúzia. Vivemos num período de profunda hipocrisia. A política esconde-se atrás de uma retórica balofa, de dedo espetado, a qual jura que se bate por grandes causas. Os intelectuais deixaram de dizer o que pensam. Os banqueiros e empresários servem interesses instalados. Valores, tradições, passado, nação são palavras que deixaram de ser utilizadas, até vagamente sujas. Entre os intelectuais, não há carreiras sem exposição mediática e esta depende das afirmações justas. Nos jornais, publica-se sobretudo o irrelevante e o incontroverso. A popularidade exige comportamento domesticado e quem não seguir as regras será invisível. A língua de pau exprime sobretudo o vazio. Os partidos afundam-se num pântano de falta de ideias e a opinião pública está infantilizada, o seu voto ignorado em nome das ilusões delirantes, dizendo-se que é mudança aquilo que visa repor o que antes falhara. As elites empresariais são uma face do poder partidário e dos interesses especiais sentados à mesa do orçamento, que perfaz metade da economia. Ali ganham sempre os grandes. O cidadão comum, esse, vive na incerteza e na insegurança. Paga mais impostos e tem menos serviços públicos, as dívidas acumulam-se, o desemprego é altíssimo. Ouve sempre a mesma lengalenga: que os males do mundo são culpa sua, por causa do imperialismo, do colonialismo, da escravatura, do consumo e do alheamento. O falhanço das elites nacionais devia produzir-nos espanto, mas causa apenas encolher de ombros. As pessoas desligam, vão às suas vidas, mas existe uma inquietação nesta aparente indiferença, fermenta ali também o cansaço e a raiva.

publicado às 12:16



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