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Trabant

por Luís Naves, em 04.01.25

Sobre a mesa está a miniatura de um Trabant, em escala 1 para 60, teto branco e carroçaria azul-celeste. Fabricado na ex-RDA, este foi o veículo mais popular nos países de leste, na fase final do bloco socialista. Andei duas ou três vezes num Trabant, um privilégio, com aquele motor que parecia de mota, o interior tosco, as mudanças de trator e o centro de gravidade tão baixo que tornava os camiões da estrada em monstros ameaçadores. Devia ter escrito sobre isso na altura, mas não o fiz, e tenho pena. As máquinas socialistas eram simples e podiam durar eternidades, mas o sistema ruiu quando as pessoas deixaram de acreditar nas mentiras do poder e começaram a sonhar com os produtos sofisticados do ocidente. Todos queriam ter um Volkswagen, nem que fosse importado e em segunda mão. Os Trabant foram para a sucata, embora muitos tenham circulado ainda outra década, pois os motores eram fáceis de reparar. Por cruel ironia, o brinquedo que comprei é made in China, o país que, entretanto, inundou a Europa de carros elétricos, iniciando porventura uma extinção industrial semelhante. Os automóveis europeus de agora serão em breve memórias simpáticas e carrinhos de brinquedo.

publicado às 18:46

Mar de contentamentos

por Luís Naves, em 25.12.24

Como no verso de Camões, "os maus vi sempre nadar em mar de contentamentos" e parece uma fatalidade que durante algum tempo triunfem os cruéis, pois sem isso não haveria o impulso de fazer o bem, de escolher o melhor lado na nossa vida, de optar pela desistência das mundanidades que nos levam pelos caminhos errados do tal mar das falsas delícias. No fundo, a malvadez resulta em bens de fortuna, mas também na ilusão da felicidade, pois ninguém pode anular a sua consciência, pelo que a perversidade que se distribui aos outros deve queimar por dentro, nem que seja um pouco, à maneira da comichão em maré alta, que se torna um tormento. Conheci pessoas francamente más, felizmente não muitas. Estão sempre sozinhas, amargas, fingem que são felizes, aliás, odeiam a felicidade dos outros, pois as vítimas encontram maneira de escapar à opressão, um milímetro de cada vez. As benesses que se tiram de tiranizar os semelhantes são simples miragens: o mar de contentamentos é um deserto.

publicado às 14:00

Realidades paralelas

por Luís Naves, em 10.06.23

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Costumava existir separação nítida entre realidade e imaginação. Havia o mundo dos factos e havia o mundo da fantasia, e os dois não se misturavam, eram como a água e o azeite. Na Era em que vivemos já não é assim. As notícias assumem narrativas e têm dificuldade em aceitar os próprios factos, tendem a criar realidades parcialmente ficcionadas, baseadas naquilo que desejamos ver. Os escritores, que se dedicavam a imaginar irrealidades desconfortáveis, agora só são publicados se não contarem histórias, só são publicados se escreverem crónicas pessoais, construídas com as mil banalidades da existência e separadas da fantasia. Nas notícias meio-inventadas, tornou-se difícil distinguir o falso do verdadeiro; na literatura os escritores praticam a autoficção e o enredo verídico, portanto, sem grande lugar para a invenção. Os noticiários moralizam constantemente: a actualidade é maniqueísta, o bem contra o mal. Por seu lado, a literatura tornou-se didáctica e militante, também repleta de crenças de bem contra o mal. O jornalismo, que devia tratar de factos, tem horror da realidade; a literatura, que devia tratar da imaginação, aterroriza-se com a sua natureza.

publicado às 11:08

Carpintaria do romance

por Luís Naves, em 09.12.22

Vários dias sem tocar no romance e ando nervoso. O livro avança a bom ritmo, não me interessa se cumpre os requisitos teóricos. Aliás, a teoria não me interessa. O estilo, o conceito, a carpintaria (como se diz), se está na moda ou o que vão pensar os leitores, nada disso me interessa. O destino mais certo do Homem Morto é ficar na gaveta, por isso, o que fizer é o que deve ser. A única preocupação é que aquilo mexa, que o leitor de repente consiga imaginar uma coisa em movimento, abstraindo-se de mim, ignorando a minha presença: não posso ser mais do que um árbitro quase invisível. As editoras não querem ficção, desistiram de contar histórias, dizem que as pessoas estão contentes na Netflix, onde se encharcam de imaginário. As livrarias andam cheias de livros para o Natal, clássicos e não-ficção, uns raros romances contemporâneos de nomes sonantes; o livro é um presente popular (compram-se os nomes conhecidos, mas ninguém os lê) e os escritores populares são aqueles que vendem; os que vendem são os que dão entrevistas na TV, onde nos programas culturais circulam sempre as mesmas figuras, que falam sobre uma data de coisas fáceis de esquecer, em frases floreadas, de preferência sobre tudo o que não seja literatura. Ninguém quer saber aquilo que o escritor pensa sobre o seu ofício, os temas culturais são propriedade da esquerda; nunca há escândalos, a não ser quando o artista X diz mal do artista Y, com sarcasmos e bisbilhotices, mas isso é para cómicos ou jornalistas e esses não são para levar a sério; no mundo sério, pelo menos em público, ninguém diz mal, está tudo desinfetado.

publicado às 13:45

A vida real

por Luís Naves, em 07.12.22

A vida real dos novos camponeses é dramática. Alastra o fenómeno dos sem-abrigo; por todo o lado, a pobreza dos imigrantes, na sua maioria sem papéis e que se vergam e gastam em trabalhos penosos e mal pagos; sob as arcadas, começam a aparecer tendas, onde os mais miseráveis dos miseráveis se protegem do frio, mas nem essas tendas improvisadas os podem proteger da chuva; e como tem chovido! São às centenas os estafetas da Uber, numa roda-viva de bicicletas. Estas pessoas chegam do Sri Lanka e desconhecem a língua dos nativos; vivem em hostels turkish style, habitam silenciosamente nos meandros da sociedade, nunca fazem grande barulho, ninguém repara neles, a não ser pelo cheiro, quando se tornam sem-abrigo. A bolha mediática deixou de os ver, entretida a discutir temas fraturantes (questões de género, de raça, de identidade, direitos das minorias e culpas coloniais); a alta casta anda dividida em torno de minúsculas bizantinices, surda perante o tumulto da multidão desesperada que, lá fora, aguarda a abertura de uma frincha nos portões.

publicado às 13:43

As trivialidades artificiais

por Luís Naves, em 06.12.22

Há numerosos temas para crónicas, mas preciso de me interrogar mais vezes nestas páginas soltas. Isto devia ser diferente. Escrevo demasiado sobre o que não me devia interessar. Nestes fragmentos há observações sobre a realidade, mas poucas personagens verídicas e escassas reflexões biográficas. O facto é que a minha biografia é de pobre, portanto nunca acontece nada, e a ausência de personagens explica-se pela relativa solidão. Ando a ler excesso de notícias e, sabendo que devo limitar o consumo de atualidades, aquilo funciona como uma espécie de droga dura. É difícil deixar o vício e, no entanto, devia ser fácil, nem que fosse pela circunstância de muito do que leio ser manipulado (e farto de saber que leio textos desonestos). O ambiente das discussões públicas é tóxico e intolerante, o que parece paradoxal: vivemos num mundo pós-ideológico que perdeu as referências morais, mas nestas bolhas mediáticas existe máxima intransigência sobre assuntos irrelevantes. O fanatismo religioso ou político de outros tempos revive agora nas pequenas trivialidades artificiais. De resto, triunfa a mesma estupidez e falta de escrúpulos própria dos tempos de trevas. As discussões decorrem entre limbo e purgatório, no quentinho dos sofás.

publicado às 13:41

O bom eletricista

por Luís Naves, em 24.09.22

Escrevi num livro de apontamentos algo que não cheguei a usar: “Vivemos numa farsa, as pessoas ficam muito contentes com as pequenas alegrias da satisfação imediata, com aquilo a que chamam felicidade”. Não tem data, mas aplica-se a um filme que vi pela primeira vez, A Ultrapassagem, de Dino Risi, italiano, dos anos 60, que pega neste tema. O filme funcionava como antecipação do mundo que aí vinha, superficial e irresponsável. O Ocidente mergulhou, entretanto, numa realidade virada para a satisfação de impulsos, com uma espécie de crónico défice de atenção, como o daquelas pessoas que estão sempre à procura de novas sensações e não conseguem parar essa busca transformada em droga; pessoas incapazes de se focar no essencial, aliás, como o protagonista, interpretado por um extraordinário Vittorio Gassman. Estão-se nas tintas para o resto, para a sociedade, para a família, para tudo o que esteja fora do seu umbigo, a única coisa que lhes interessa. Impossível não pensar na forma aparentemente fácil como tudo aquilo flui, ao contrário do que acontece com as xaropadas contemporâneas, mais a sua inaturável tendência para a moralidade (a série da Amazon que segue o senhor dos anéis tem heróis de ação femininos, elfos negros e hobbits com pronúncia irlandesa; vi um episódio e fugi). O mundo velho é como as canetas de tinta permanente, que já não servem para nada: objetos estéticos para colecionadores, mas ninguém escreve com peças de museu. Um eletricista veio aqui a casa reparar umas coisas e comentou a qualidade dos interruptores: “Isto era muito bom, mas já não se faz. Deixaram de fazer o que era bom”. Não é só nos interruptores: deixaram de fazer bons filmes e já não sabem ir à Lua. Já ninguém escreve com canetas a sério, podia ter dito o bom eletricista.

publicado às 19:51

Aqui posso escrever o que quiser

por Luís Naves, em 11.06.22

Aqui posso escrever o que me apetecer. Ninguém vai ler e, se alguém vier ler, não terá qualquer surpresa. Tenho pensado muito na minha escrita. Tentarei não abandonar mais a literatura. Talvez já não consiga. As notícias são banalidades, quase sempre coisas falsas que todos repetem. O estilo perde-se naquele registo de lugares-comuns. Os diários podem ser relatos dos acontecimentos (mas isso só faz sentido se quem escreve é um dos raros alfabetizados de uma sociedade; estava a pensar nos velhos diários escritos por pessoas comuns, os quais deixam claro o que pensavam os contemporâneos de cada época). Há ainda diários íntimos, que só cada um pode escrever, mas são algo pretensiosos: ninguém é tão sincero que não minta um bocadinho sobre os seus sentimentos, ninguém é tão sincero a ponto de presumir que os seus textos jamais terão leitores e, por isso, não existe em diários íntimos a autenticidade absoluta do pensamento e devemos perdoar certas cedências à posteridade e aos amigos. Por falar nisto, em fio de ideias, estava a refletir, pouco antes, meio ensonado, sobre o carácter premonitório da arte. Os melhores livros antecipam de maneira inconsciente as grandes verdades do futuro. Não existe qualquer pista sobre o mecanismo, que devia assustar os seus dotados (Dick, Simenon, Verne, entre outros gigantes). Kafka imaginou um romance que foi vivido por muita gente apenas anos depois da escrita, durante o Holocausto e o terror estalinista, pessoas que não sabiam o crime de que eram acusadas, cheias de esperança de esclarecer o equívoco, incapazes de compreender que não era preciso terem praticado um crime para serem culpadas. Algumas destas vítimas, sem dúvida, talvez tenham recordado nos seus últimos instantes aquele estranho romance com título O Processo, que tinham lido anos antes, que afinal não era uma fantasia, mas algo muito realista, que relatava as suas próprias desgraças. Na mesma lógica, tendo em conta que o essencial da nossa arte é bizarramente pessimista, arte sombria, obcecada pela decadência da civilização, é seguro dizer que nos espera um futuro de colapso. A dissolução das democracias é já óbvia e tudo na economia parece insustentável. Na ordem intoxicada em que vivemos, o desastre está ao virar da esquina.

publicado às 18:54

País lírico e sentimental

por Luís Naves, em 21.01.22

Portugal é um país lírico e sentimental. Há uma crença algo ingénua no poder da poesia sobre a razão da força da gravidade, há também preferência geral por narrativas que puxem as lágrimas como água de um poço. Vemos isto na política, na literatura, nas redes sociais. Na campanha eleitoral, por exemplo, as discussões superficiais dos candidatos prometem soluções milagrosas e geralmente instantâneas, sem custos para o utilizador. Tudo se vai compor na pátria como que por magia, através de uma ideologia simples e óbvia, nunca aplicada por motivos que não se entendem, mas que devem ser razoáveis. O pensamento mágico do lirismo nacional torna-nos fortes no campo da literatura, onde domina o sentimentalismo da frase bonitinha e arranjadinha como um canteiro de flores. Enquanto leitores de romance, preferimos os temas agradáveis, o narcisismo dos autores, os bons sentimentos progressistas, as personagens exemplares do politicamente correto, as histórias que nunca pisam o risco. Enfim, tudo aquilo que não incomode as nossas pacatas consciências. Nas redes sociais, assistimos de bancada a discussões que nunca vão ao essencial: andam por ali a depenicar a clara do ovo estrelado, a evitar a gema com nojo. Não admira que o nosso povo aprecie futebol, modalidade que não é bem um desporto, mas a gestão contínua das ilusões dos adeptos em campos inclinados. Não estou a criticar. Claro que o lirismo sentimental da nação também tem as suas vantagens, pois entre os altos e baixos da autoestima há aqueles momentos em que a euforia se encontra no topo. O carácter do povo português talvez o torne mais resistente às grandes desilusões que atingem regularmente o resto da humanidade. Quando tocados pela adversidade, nós, entre um poema e um suspiro, encolhemos os ombros e seguimos em frente, a acreditar com toda a força que melhores dias virão.

publicado às 11:47

Saudades da nostalgia

por Luís Naves, em 12.12.21

Tenho saudades da nostalgia e já não me interessa o que possa parecer antiquado. Envelheci e sonho com a juventude eterna, sem espaço para transportar na velhice a tralha acumulada durante a vida. Os objetos tornaram-se baratos, acessíveis e triviais. Parece que não tenho lugar para as memórias: elas não cabem na mala, não cabem na casa. As mensagens duram quinze segundos ou duzentos e quarenta caracteres, exigem pouca atenção; leio tantas de uma vez, que as esqueço todas. A arte também é efémera e decorativa: as instalações são desmontadas depois da exposição, as ideias provisórias vão passando, os livros ficam duas semanas na livraria e ninguém os compra; ou melhor, são comprados se os escritores fizerem o pino para atrair a atenção do público, dizendo uma banalidade memorável por mais de um dia. Tenho memória de periquito e voo fascinado por coisas fúteis. A mediatização excessiva implica que em todo o tempo surgem variações da mesma novidade, como variantes do mesmo vírus a causar exatamente a mesma excitação que a anterior variante. Estou mergulhado na repetição monótona e incessante de temas sempre idênticos. Por exemplo, se durante duas semanas não ouvir nada sobre os assuntos do dia, terei no regresso a sensação de que nunca saí do sítio. Uma sociedade sem nostalgias pensa a curto prazo; é tudo estruturado, mas sem rasgo; é tudo defensivo e sem risco. Por isso, as canções na rádio parecem-me todas iguais, formatadas e sem defeitos; é por isso que os protestos me parecem um ritual sem alma, com emoções falsas; é por isso que me atrai o entretenimento desistente, com jogos de futebol decalcados uns dos outros, com simples variações das mesmas peripécias. A sociedade contemporânea é como um carro atascado na lama: lá dentro, para passageiros como eu, há imenso barulho, sensação de poder e de movimento; na realidade, o veículo já está condenado à estagnação.

publicado às 11:01


Autores

João Villalobos e Luís Naves