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Gaza, o eu de hoje

por Luís Naves, em 08.08.25

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Noite densa, silêncio. Quando me deitei, ontem, era um burguês anónimo, sem história para contar, feliz com a minha vida, digamos assim, plenamente satisfeito. Vivia numa cidade ocidental igual às outras, onde nada acontecia, era consumidor, pagava impostos e votava de vez em quando. Nessa qualidade, nunca me interessaram os conflitos do médio oriente, parecia-me aquilo demasiado grotesco, também distante, mas quando acordei, esta manhã, estava aqui, junto a esta pequena fogueira, rodeado de ruínas e com outra consciência na minha cabeça.

Tenho um nome diferente e outra história, no fundo sou uma pessoa alterada, que já não se lembra bem daquilo que foi ontem e recorda com nitidez tudo aquilo que lhe é novo. Os meus avós foram expulsos do país que hoje se chama Israel e que na altura se chamava Palestina. Eles vieram para aqui, Gaza. A minha família prosperou durante duas gerações, mas toda a gente atravessou dificuldades, depois veio esta guerra.

Quando começaram os combates, os meus avós já tinham morrido, mas sei que não podiam tolerar esta brutalidade, os bombardeamentos, a violência, as incursões de soldados, a fome e a agonia lenta. Os meus pais morreram logo no início das hostilidades, pois não havia medicamentos e os hospitais foram destruídos. Os velhos desapareceram depressa e não contam para as estatísticas.

Perdemos as nossas terras e vivemos numa prisão a céu aberto, onde sofremos durante setenta anos as maiores humilhações. O mundo sempre nos condenou. Alguns dos meus primos aderiram ao Hamas e foram martirizados nos combates. Chamamos a isto a resistência, mas o meu eu de ontem dizia que era terrorismo.

No último ano e meio, além dos meus pais, perdi dois irmãos e sete sobrinhos em bombardeamentos. Foram apanhados a dormir nas suas casas ou nos campos onde se tinham refugiado, palavra talvez errada, pois não existe refúgio, não temos para onde ir, a nossa prisão tem apenas 400 quilómetros quadrados e está inteiramente destruída. Não há água potável, comida ou energia. Não podemos pescar nem tratar das nossas hortas. A minha casa foi arrasada, mas felizmente sobrevivemos. Eu sou agora o chefe da família (não restam pais nem irmãos mais velhos), tenho mulher e três filhos, mais três sobrinhos órfãos à minha guarda.

Tenho andado à procura de comida, mas é cada vez mais perigoso. É preciso andar quilómetros até aos centros de distribuição, depois voltar, sempre sob ameaça. Há perigo constante. Podem disparar sobre nós ou roubar a comida. O caos é total, não há leis que nos defendam, morre-se de fome ou por um pedaço de alimento. Até agora tive sorte, mas cada vez que saio da tenda onde vivemos sei que o mais provável é não regressar. A minha criança menor já não tem força, está a perder peso depressa, não sei se vou distribuir a sua parte pelos outros e se divido a minha parte com ele.

Não sei que fazer. Será justo pegar em armas e resistir? O meu eu de ontem diria que isso me transforma num terrorista, ele acha que este não é um caso de violência sobre seres humanos, mas uma espécie de violência merecida, uma punição sobre animais ou sub-humanos. Diz-se que a situação vai piorar em breve. Hoje, tenho de regressar à fila de distribuição de comida. Talvez nunca volte para ver as almas preciosas que me são tão queridas. Nesse caso, irei para o paraíso ou talvez regresse ao meu eu de ontem, que tinha uma vida confortável e não precisava de se preocupar com nada.

imagem gerada por IA, ChatGPT

publicado às 16:21

O cavaleiro solitário - falso western

por Luís Naves, em 22.07.25

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O homem cavalgava para oeste, mas não lhe restava tempo, as provisões estavam no fio. O sol impassível queimava-lhe a alma. O cavalo era magro e nervoso. A poeira agarrava-se aos ossos, cobria tudo com uma mortalha sufocante. A terra seca, a planície agreste transformada em corpo sedento, a tempestade a correr na sua direção, com o fragor de uma carga de cavalaria. Mesetas misteriosas recortadas no horizonte, pedra vermelha, antiga. Moitas cobriam o chão, o vago cheiro arrastado pelo vento amargo. Iúcas resistiam ao calor, cactos erguiam-se teimosos.
A sombra de uma cascavel assobiou, demasiado depressa, como se a rocha fervesse. O cavalo desviou-se, assustado, depois controlou o movimento. O homem nem teve tempo para levar a mão ao revólver, o perigo escondera-se. O céu tinha camadas de azul profundo, mas azuis mais claros estendiam-se no horizonte pálido, do lado de onde ele vinha. À direita, nuvens finas, altas. A aproximar-se, a barrar-lhe o caminho, a tempestade que engrossava: a massa escura de nuvens semelhante a um monstro ameaçador.
Chegou ao riacho, embelezado com flores silvestres. Amarelas, roxas. O cheiro era doce.

 

 

publicado às 11:14


Autores

João Villalobos e Luís Naves