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Pedaços do mundo e grãos de areia
O mundo contemporâneo? bem, isso é como a pescadinha de rabo na boca que se fechou num círculo de futilidade, a minha volta de 360 graus em torno de mim mesmo, tal como o ponteiro dos minutos, sempre às voltas e em busca de rumo, que é uma espécie de norte magnético a deslocar-se à velocidade geológica na direcção do sul, dando durante milhões de anos voltas em redor do planeta inteiro pois, lá no profundo, circulam fluidos sobre si próprios, enquanto em órbita voam estações espaciais que desenham círculos imperfeitos, como um carrossel sempre às rodas dando a ilusão de velocidade e em que as pessoas estão sentadas no mesmo sítio, ao contrário do que faz o peixe do aquário mais a sua ilusão do infinito, a apalpar paredes e a abanar barbatanas num movimento perpétuo, aventurando-se sempre em frente, e tal como estas palavras que por aqui andam às rodas, a frase a abrir a boca e a engolir as palavras seguintes, que assim formam uma fila indiana de gente em que o primeiro encontra o último e deixa de haver primeiro e de existir último.
Uma elite minúscula domesticou a sociedade civil, através do domínio de parte da comunicação social, da justiça e das universidades. Durante duas décadas, ninguém progrediu a criticar más políticas, sobretudo as do PS. Os processos eram amaciados, as notícias escondidas nas páginas pares, os intelectuais não alinhados eram mandados para o deserto das ideias e os juízes atrevidos eram transferidos para o cu-de-Judas. Estamos agora a ter os primeiros vislumbres de quanto isso nos custou; e ainda pode custar mais, se o país cair nas mãos dos populistas que vão deitar as culpas para a democracia. O certo é que este regime fabricou uma classe política míope e falhada, de onde saíram poucos que se atreveram a agir, geralmente ditando assim o fim das suas carreiras.
Um dos problemas da análise política é a falta de imaginação. Muitos analistas olham para a realidade como algo de estático e procuram os sinais de equilíbrio, mas quando olhamos para o presente percebemos sempre uma enorme diferença em relação ao passado. Há uma lei segundo a qual o futuro é quase inimaginável: o que hoje nos parece equilibrado não é mais do que uma situação precária cuja fragilidade nos escapava. Leio os textos de opinião sobre a situação política nacional e os autores detectam apenas a inflexível resistência de um governo minoritário que todos acham impossível retirar do poder. Escapa-lhes porventura o carácter eminentemente instável da situação: a táctica de dançar à vez com duas namoradas pode ter momentos saborosos no tempo que dura um baile, mas acabará inevitavelmente em ressaca e conflito.
Uma das características mais subtis da política contemporânea tem a ver com a distância crescente entre as elites e o povo, uma dissonância que se vai espalhando pelos meios intelectuais e que ocorreu no passado antes de grandes convulsões. Não há jornalista que não repita aquelas beatitudes quase religiosas sobre os valores liberais ou que se atreva a fazer uma leve crítica aos excessos ideológicos dos bem-pensantes. A academia, essa, entrou mesmo no delírio da torre de marfim, numa separação radical em relação ao mundo lá fora. Os políticos usam a linguagem de pau e têm tanto maior êxito quanto menos tentam mexer nas alavancas da sociedade. Os governos parecem cada vez mais impotentes para fazer o mínimo. Tudo é aparência, de conhecimento, de poder, de arte, mas na realidade oculta-se a acção do estado profundo e dos interesses oligárquicos, condenando as sociedades à paralisia e à mediocridade. Cresce a intolerância perante a mínima contestação da ortodoxia e todos os que têm algum acesso aos meios de comunicação limitam-se a dizer inanidades sem contacto com a vida dos outros. É o mundo do castelo: já ninguém pode compreender os mecanismos do poder, a democracia representativa tornou-se desnecessária e a elite, para além da crescente falta de transparência, tem intenções misteriosas.
Tive um sonho estranho, do qual acordei no momento em que uma das personagens olhava para o céu nocturno e dizia que no universo há mais estrelas do que possíveis nomes para cada uma delas. Dito de outra forma, há menos palavras do que estrelas e não nos seria possível encontrar nomes para todas. Esta ideia surgiu do nada, num sonho confuso que tinha cores, do qual ficou apenas este fragmento. Será ideia minha? Não me lembro de ter lido isto em qualquer sítio, apareceu-me assim, num farrapo de sensações que (segundo julgo) não controlo com o raciocínio ou com a memória. Mais estrelas do que palavras. Impossível encontrar nomes para todas. Tenho estado a pensar nisto: é assim, na verdade.
O facto é que não sabemos para onde nos conduzem as tendências do século, só sabemos que todos os sistemas acabam em decadência, crise e estoiro, e esse pode ser o nosso destino. A inteligência artificial e a automatização do trabalho rotineiro vão destruir milhões de empregos, as liberdades e a moderação recuam nas sociedades avançadas e os excessos que levaram à crise de 2008 são já amplamente visíveis na nova euforia financeira, que pode muito bem ser uma bolha de ilusões em cima de uma gigantesca montanha de dívidas.
A extraordinária hipocrisia da classe política portuguesa a que assistimos por este dias de luto não é muito diferente da profunda estupidez de uma elite mediática instalada no nevoeiro da sua ilusão de poder. Vivem ambos na mesma bolha que se afasta irremediavelmente do país, como se flutuasse numa jangada.
Há uma irrealidade em tudo isto: a negação das alterações climáticas e de uma floresta que está errada há 50 anos, desadaptada ao clima em mudança e à desertificação humana dos territórios. E em cada ano, o poder político comete os mesmos erros, refém de interesses obscuros ou na simples armadilha da estupidez humana, não sei ao certo, mas batemos com a cabeça na parede sempre da mesma forma, ignorando os conhecimentos da ciência, recusando as verdadeiras reformas da floresta, esquecendo o colapso evidente de um mundo rural que simplesmente já não existe. Desta vez, os erros foram acentuados por leis inúteis, pelos governantes mais preocupados com a imagem e ainda pela necessidade de praticar em larga escala as chamadas cativações orçamentais, única forma de emendar as ilusões que nos venderam de que a austeridade acabara. É assim em Portugal: estamos sempre a marrar com a cabeça nos mesmos problemas e as pessoas lúcidas são postas de lado pelos grandes medíocres.
Os auto-denominados liberais tentam caricaturar as posições de Donald Trump sem perceberem que há nestas críticas um corolário inevitável: se o eleitorado é estúpido, então os sistemas políticos devem incorporar mecanismos que evitem o erro sistemático dos eleitores pouco informados ou que evitem a eleição de maus candidatos. Claro que as elites é que decidem o que é um erro ou um mau candidato e, aliás, controlam a informação. Ou seja, o liberalismo começa a defender o seu exacto oposto, não compreendendo que faixas substanciais da população pretendem desmantelar uma ordem liberal que consideram prejudicial para os seus interesses. A esquerda surge no debate com um argumento que lembra os tempos de 1974-75, quando o povo, marcado pelo fascismo e repleto de ingenuidade política, não podia usar o seu novo direito de voto (as organizações populares, os partidos progressistas e o Movimento das Forças Armadas eram considerados mais legítimos do que a Assembleia Constituinte eleita).
Portugal tem vivido em sucessivos ciclos de expansão da despesa até ao estoiro, geralmente liderados pelos socialistas, com uma segunda fase de contracção sem reformas, sob condução da direita. A sustentabilidade das contas públicas tem sido o problema dos últimos quinze anos e deverá manter-se mais uma década: foi acumulada uma dívida brutal e, sem crescimento, o país não poderá suportar indefinidamente o peso dessa dívida; o crescimento depende em parte de reformas difíceis que permitam equilibrar os orçamentos. Os economistas andam a dizer isto desde o século passado e os políticos sabem que o problema nacional tem a ver com o excesso de despesa, mas o facto é que Portugal só muda por imposição externa. É o que acontecerá de novo. A geringonça não será mais do que um breve período de expansão orçamental e de aumento de impostos que vai rebentar um pouco à frente. O contexto do euro tornou o problema crónico mais difícil de gerir e os partidos parecem incapazes de organizar uma resposta que torne o país viável. A fragilidade do sistema partidário gera a paralisia institucional. Falta de coragem política para mudar a situação. Os partidos vivem da criação de intrigas artificiais e as discussões paupérrimas são de natureza ideológica, evitando-se sempre abordar a questão central. Os meios de comunicação tornaram-se cúmplices desta impossibilidade de fazer reformas e têm horror à ideia de renovação da classe política, pois alimentam algumas das personagens que criaram o próprio sistema em que vivemos: as televisões estão repletas de comentadores que nunca foram além de carreiras políticas medíocres. Falam como se tivessem sido grandes estadistas.