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Pedaços do mundo e grãos de areia
A ascensão da China e a queda do Muro de Berlim foram os grandes acontecimentos desta época. No ano da morte de Mao Zedong, 1976, poucos podiam adivinhar as mudanças a que assistimos. Vivemos quase 50 anos de ordem mundial de triunfo do liberalismo económico baseado no dólar e na exuberância financeira. A América tinha a hegemonia indiscutível, a Rússia era uma potência humilhada, a China executava uma ascensão discreta e a Europa lançava um projecto federal sem apoio popular. Em 2008, houve uma crise financeira a expor a fragilidade deste sistema. Começou tudo a correr mal: efeitos das alterações climáticas, migrações, populismo, pandemia e uma guerra diferente das anteriores, com tecnologia moderna e alta violência dos dois lados.
O próximo ciclo de meio século será provavelmente de equilíbrio entre potências. De um lado, o bloco de países ocidentais, com sistema capitalista e regime liberal; do outro, países ambiciosos e humilhados no passado, alguns com grandes proporções de jovens, que juntam capital, gente, minerais, indústrias e comida. A segunda aliança é ainda pouco clara, mas pode ser liderada pela China e conter Rússia, Irão, um conjunto do Médio Oriente, Indonésia, partes de África, talvez a América do Sul, talvez a Índia.
Nos próximos 50 anos, o mundo estará em renovação tecnológica acelerada (inteligência artificial, bioengenharia, computadores quânticos, fusão, corrida espacial). A globalização atingiu o pico e os países readquirem as suas indústrias em nome da soberania. Veremos corridas aos armamentos. As guerras serão indirectas, mas haverá poucas operações militares desiguais, fica o modelo da Ucrânia de conflito violento, entre exércitos equiparáveis. A crise climática vai agravar-se, as migrações podem engrossar. Teremos pensamento mágico, nacionalismo e fragmentação social, um pouco de tudo e mais incerteza. Assim parece desfiar-se o novelo do tempo com que os gatos cósmicos brincam.
imagem, IA, Night Café, SDXL 0.9
A empresa Goldman Sachs fez umas projecções sobre a economia mundial até 2075 e pode dizer-se que o panorama não é animador para os países ocidentais. Admitindo que os alinhamentos políticos se mantêm, o G7 será um grupo sem significado em 2075. A aliança dos BRICS terá um PIB real a rondar 125 biliões de dólares, enquanto o G7 pouco passará dos 82 biliões de dólares (não entram nas contas Canadá, Itália e África do Sul, por não estarem entre os 15 maiores do mundo). As sete maiores economias terão apenas um país que pertence ao actual G7, os EUA, com medalha de bronze.
A União Europeia tenderá a desaparecer: a Alemanha tem hoje a quarta maior economia do mundo; em 2075, terá a nona maior. A França passa do sétimo lugar para o décimo quinto. Segundo estes dados, a China lidera a partir de meados da década de 30 e a Índia na de 80.
Isto são projecções. O destino das nações não é uma ciência exacta, tudo pode ser diferente, mas julgo que assistimos já a esta erosão da supremacia ocidental. O produto interno é apenas um indicador e não nos diz tudo sobre o verdadeiro desenvolvimento dos países ou o grau de felicidade e segurança das populações.
Se admitirmos estes números e olharmos com distanciamento para a História, percebemos melhor que o declínio ocidental é recente. Os impérios europeus de 1914 controlavam o mundo, tinham o domínio absoluto sobre populações mais numerosas, sobre os recursos de todos os continentes, criavam as inovações e a cultura, tomavam as decisões essenciais e prosperavam sem dificuldade.
Aquele sistema podia ter sobrevivido séculos. A sua fragilidade vinha das lideranças medíocres que levaram esses impérios a uma guerra insensata, onde todos perderam. A Europa nunca recuperou dos extremismos, das divisões e dos conflitos. Duas vezes devastada, reergueu-se num estado de velhice sem sabedoria.
Nas rivalidades contemporâneas surgem as potências emergentes que no passado o Ocidente humilhou. China e Índia serão dois colossos económicos no próximo meio século, talvez em rota de colisão, talvez numa aproximação hoje improvável. Podemos ver outras alianças em formação: América do Sul, por exemplo; ou uma cooperação entre Egipto, Arábia Saudita, Turquia, Irão e Etiópia; ainda a hipótese que junta China, Rússia e Indonésia.
Só não vemos as outras possibilidades por falta de imaginação. Ninguém em 1914 podia conceber que, 47 anos depois, haveria um soviético em órbita do planeta (um quê???), e 55 anos depois, americanos a caminhar na Lua.
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Lemos sobre alimentação, ambiente, guerra, geopolítica ou finanças e percebemos que esta ordem mundial vive uma actualidade insustentável. É curioso que num país periférico como Portugal tenham sido publicados vários romances sobre catástrofes. Existem excepções, claro, mas geralmente publicavam-se livros sobre personagens em ruínas, agora temos o colapso da própria civilização. Não sei se este fenómeno revela a capacidade premonitória dos escritores (que podem observar a matéria escura da humanidade), ou se é sintoma da dissolução da sociedade ocidental.
Talvez algumas pessoas consigam pressentir antes das restantes as ondas sísmicas que se aproximam. O nível de consumo e as dívidas, a ganância de uma minoria que acumulou riquezas incalculáveis, a corrida aos armamentos e a rivalidade entre potências, a luta pelos recursos cada vez mais escassos, as migrações e colapso de ecossistemas, a devastação da guerra europeia. As máquinas do impensável continuam a acelerar a caminho da tragédia, isto não é sentido da derrota, mas incapacidade de intervir.
O que para mim é evidente apenas provoca nos meus semelhantes um encolher de ombros. Falar nestas coisas tornou-se inútil, há quem se ria do meu pessimismo. Não é possível mudar a política que nos leva ao abismo, nem influenciar a opinião, as pessoas começaram a detestar os factos, já nem parecem capazes de os perceber, quanto mais de os aceitar. As indignações são geralmente falsas e escondem interesses, servem como distracção do essencial. Aliás, estamos rodeados de ilusionismo. O mundo caminha para um naufrágio, mas empurrado por esses falsos indignados ou pretensos oprimidos.
Os meios de comunicação tornaram-se irrelevantes, o mesmo se pode dizer da própria arte, cuja banalização anestesia os sentidos. Somos de facto sonâmbulos. Os países ricos ficavam com tudo e agora não querem partilhar nada. O resto do mundo não se conforma e contesta abertamente um sistema que considera injusto. Os conflitos são inevitáveis e, um dia, serão descontrolados. Alguma literatura tenta resistir, suponho, tenta a legibilidade em vez da retórica, procura ambientes, evita o estilo pomposo e foca-se nas ideias, no ritmo e nas personagens, procurando a forma mais simples, sem digressões ou postalinhos. Antes era a densidade da linguagem, agora é o estilo transparente.
Entre os mais lúcidos, há um sentido de urgência, uma antecipação das desgraças. Todos se querem fazer ouvir, acham que têm coisas importantes para dizer, mas há um problema de escala na realidade contemporânea. São muitos, muitos, os que desejam falar. Uma cacofonia, uma multidão a conversar na sala, e só é escutado quem falar mais alto, e quando a escala aumenta, só se ouvem os que gritam. As zonas de silêncio são solitárias. As pessoas de qualidade calam-se.
Seja perdoado o tom caótico deste texto, mas que interessa? Os raros leitores percebem.
imagem: IA, Night Café, SDLX 0.9
Na literatura portuguesa existe um preconceito contra o conto curto e nas redes sociais a imaginação não é muito compreendida. Os livros de contos tornaram-se raros, mesmo os de autores estrangeiros. Os editores, na realidade, já nem sequer querem romances, pedem outro tipo de livro. Querem biografias, ensaios ou crónicas. Neste último grupo, procuram aquilo que não tenha fantasia associada, ou seja, crónica jornalística, em que os factos são sempre o mais importante e o escritor não deve efabular. Nos jornais e revistas literárias, domina o ensaio e a crítica. Ao contrário do que vemos em outros países, a literatura nacional nunca foi adepta do conto curto, embora Camilo Castelo Branco ou Miguel Torga tenham sido contistas exemplares. Há outros autores fortes no conto, como Aquilino, Sena, Cardoso Pires, Régio, Lídia Jorge ou Mário de Carvalho, mas não existe a abundância que vemos em outras literaturas, basta citar a brasileira. A escassa tradição que existia em Portugal está a perder-se definitivamente, talvez por desistência. O conto é uma boa forma de conquistar leitores e torna mais fácil seleccionar os escritores preferidos. Devia ser um formato popular, pois as pessoas dizem que não têm tempo para ler, mas quem não tem dez minutos disponíveis para ler um conto de dez páginas? Um romance médio, pelo contrário, leva pelo menos quatro ou cinco horas. Como explicar o preconceito? Será que os leitores não gostam e não compram? Não tenho explicação, apenas sei que nos privamos de uma parte eficaz da literatura e trocamos isso por romances esticados ao máximo, que por isso se tornam monótonos e chatos. Fazer render o peixe é coisa de pobres.
As democracias têm muitas formas de entrar em declínio. Podem fossilizar, podem ser controladas por fanáticos ou oligarquias, podem não conseguir modernizar-se a tempo. Há exemplos de sistemas democráticos que não sobreviveram a desastres económicos ou quando as instituições do seu país começaram a esboroar-se por qualquer razão humana. Os regimes não são eternos e o sistema democrático pode no futuro tornar-se um anacronismo, porventura substituído por algo melhor que, por defeito de imaginação, ainda não concebemos. As democracias morrem quando não há escolha, quando nos impingem as mesmas mentiras, ditas pelas mesmas pessoas; quando os velhos partidos já não se renovam por senilidade e os novos começam a cometer os erros dos antigos. A democracia morre quando o que devia ser debatido livremente passa a ser discutido com pedras no bolso, com a intolerância a falar mais alto. As democracias morrem quando deixa de haver responsáveis e ninguém quer saber; quando se faz descaradamente o mesmo que antes se criticou aos adversários. A democracia está condenada quando há regras para os poderosos e outras regras para a maioria, quando deixa de haver escrutínio e equilíbrio, quando se instalam as realidades manipuladas, mas é sobretudo durante as crises económicas, feitas de insegurança e desespero, que crescem os piores sintomas da febre: falta de transparência, diabolização do outro e supressão de ideias.
Esta não será uma simples transformação nem foi apenas a quarentena que pôs as pessoas meio loucas. Isto vai mais fundo. O liberalismo parece condenado ou estará, no mínimo, em fase terminal. O nosso futuro inclui sobretudo a expansão das legiões da intolerância, como vemos em todos estes episódios da aplicação de uma moralidade contemporânea ao passado e, talvez ainda mais perigoso, o triunfo da intransigência na política e da mentira no pensamento. As discussões que antes pertenciam ao domínio das velhas instituições democráticas saltam para a rua e perdeu-se a transparência que ainda havia, a favor de maquinações feitas por organizações misteriosas sobre as quais sabemos muito pouco, nomeadamente sobre quem as financia e porquê. Os meios de comunicação (e era aqui que queria chegar) transformaram-se em trincheiras militantes. É ocultado tudo aquilo que possa sair da narrativa conveniente. O próximo ciclo político vai ter menos referências do jornalismo e mais aldrabices, com guerras de cultura mais aceleradas e incivilizadas. As redes sociais serão os palcos privilegiados da política, os campos de batalha que vão determinar quem passa ao nível seguinte. O caos económico global beneficia meia dúzia de homens já estupidamente ricos, como nunca houve em tempo algum, donos das empresas que venceram a grande rutura digital. São tratados como génios ou filantropos e alguns deles têm dinheiro para ir à lua. Toda esta comoção, que as suas criações amplificam, é como se não fosse nada com eles.
Tive um péssimo 2019 e sentia nas primeiras semanas deste ano uma fímbria de esperança de poder recompor a minha vida. A epidemia veio na pior altura, o que me faz pensar sobre estes acasos que governam a existência e que nos arrastam como se não fôssemos nada. Não são os abismos que nos engolem, mas uma espécie de sensação de inutilidade, algo que nos perturba em ruído de fundo, mesmo quando sabemos com nitidez que viver é um somatório de insatisfações. As ideias confortáveis e talvez fúteis da felicidade ou da sabedoria só se alcançam com aquilo a que chamamos desistência, quando vemos finalmente que tudo é igual, os supostos sucesso e fracasso, as vitórias efémeras e as derrotas amargas, a luta inglória, o bem que traz o mal e o mal que visa o bem. Na morte do universo, quando se extinguir a luz, seremos poeira de estrela dispersa na noite infinita. Talvez nem seja assim tão drástico, mas o que pode valer um simples ano na vida de um homem, perante o imenso esquecimento daquilo que ele representa? Tudo o que tão depressa me aconteceu já se evapora e foi, afinal, quase nada embrulhado em nada.
No maravilhoso mundo da nova comunicação, o futuro pede escala, fragmentação e vazio. O consumidor de informação passou a ser o produto e, em troca, nem sequer recebe informação, mas entretenimento. O poder está nas plataformas agregadoras. Os jovens deixaram de ler e já só veem vídeos; em média, as pessoas olham sete horas e meia por dia para ecrãs de todo o tipo. É aqui que está o negócio, milhões a seguirem histórias inexistentes, como o cão com a cauda na cabeça ou a irritação das massas com a vedeta que não mencionou os fogos na Amazónia do ponto de vista das alterações climáticas. Ativismo, celebridades, política light, esta é a mistura para as próximas décadas, numa espécie de revolução cultural descerebrada e pós-moderna, em que multidões em fúria vão agitar o pequenino livro vermelho das banalidades. Um cretino terá mais força do que o maior especialista. Os factos deixaram de importar, o voto deixou de contar. A internet é a verdadeira realidade.
O mundo contemporâneo? bem, isso é como a pescadinha de rabo na boca que se fechou num círculo de futilidade, a minha volta de 360 graus em torno de mim mesmo, tal como o ponteiro dos minutos, sempre às voltas e em busca de rumo, que é uma espécie de norte magnético a deslocar-se à velocidade geológica na direcção do sul, dando durante milhões de anos voltas em redor do planeta inteiro pois, lá no profundo, circulam fluidos sobre si próprios, enquanto em órbita voam estações espaciais que desenham círculos imperfeitos, como um carrossel sempre às rodas dando a ilusão de velocidade e em que as pessoas estão sentadas no mesmo sítio, ao contrário do que faz o peixe do aquário mais a sua ilusão do infinito, a apalpar paredes e a abanar barbatanas num movimento perpétuo, aventurando-se sempre em frente, e tal como estas palavras que por aqui andam às rodas, a frase a abrir a boca e a engolir as palavras seguintes, que assim formam uma fila indiana de gente em que o primeiro encontra o último e deixa de haver primeiro e de existir último.
Uma elite minúscula domesticou a sociedade civil, através do domínio de parte da comunicação social, da justiça e das universidades. Durante duas décadas, ninguém progrediu a criticar más políticas, sobretudo as do PS. Os processos eram amaciados, as notícias escondidas nas páginas pares, os intelectuais não alinhados eram mandados para o deserto das ideias e os juízes atrevidos eram transferidos para o cu-de-Judas. Estamos agora a ter os primeiros vislumbres de quanto isso nos custou; e ainda pode custar mais, se o país cair nas mãos dos populistas que vão deitar as culpas para a democracia. O certo é que este regime fabricou uma classe política míope e falhada, de onde saíram poucos que se atreveram a agir, geralmente ditando assim o fim das suas carreiras.