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Impunidade

por Luís Naves, em 29.12.24

Gaza saiu das manchetes e o assunto deixou de interessar à consciência dos líderes ocidentais. Vão saindo notícias envergonhadas sobre os mais recentes ataques, mas é como a estatística de um dia de caça à raposa. Será difícil lavar os crimes que a hipocrisia do poder tem desculpado e de que a comunicação social foi cúmplice, apesar da ocasional lágrima furtiva. Pelo menos 45 mil mortos diretos das atrocidades, na maioria pessoas inocentes. O número de vítimas é bem mais elevado, embora desconhecido, pois morreu muita gente de doenças, falta de medicamentos, insalubridade e até de subnutrição induzida pelas autoridades israelitas, que conseguiram desumanizar a população de dois milhões de pessoas naquele território e aproveitaram para alargar o espaço de segurança, que é na realidade um pequeno império regional. Na Cisjordânia, prossegue a campanha de opressão e limpeza étnica, enquanto o exército israelita aproveitou a queda do regime sírio para estender o controlo nos Montes Golã. O Estado de Israel testa as melhores armas americanas e é invencível, mas também ultrapassou os limites da decência. O que faz aos palestinianos não é autodefesa, mas superioridade racial com impunidade.

publicado às 12:46

Santo Natal

por Luís Naves, em 24.12.24

Com aspeto abatido e triste, o Papa Francisco usou a palavra "crueldade" para definir aquilo que se passa em Gaza e que neste Natal terá de ser escondido das pessoas decentes. Olhar para o presépio já aflige, não há esperança de tréguas ou de simples humanidade. Os reféns israelitas foram abandonados pelo seu próprio governo, que recusa negociar, para não perder a vitória, ou seja, o esmagamento de dois milhões, isto sem apelo, de gente que não tem para onde ir e que não poderá viver em segurança no inferno em que se transformou a sua terra. Pelo menos 45 mil mortos, metade mulheres e crianças, milhares de feridos e estropiados, milhares de cadáveres debaixo dos escombros, ajuda humanitária a entrar em quantidades insuficientes, a guerra sem travão, Israel a transformar-se num pequeno império regional. O Papa estava zangado, mas haverá cristãos a discordar dele. Em Israel, também são minoritárias as críticas à violência: uma notícia citava soldados que não distinguiam os seus próprios crimes de guerra, pois sentiam-se como deuses quando combatiam em Gaza. Os hospitais que ainda não estão em ruínas são encerrados. É difícil pensar nisto e acreditar nas lindas expressões da Terra Santa e do Santo Natal.

publicado às 10:26

Alfarrabistas

por Luís Naves, em 18.12.24

As livrarias de novidades estão repletas de livros de autoajuda, conceitos giros, receitas, cultura instantânea, estilos de vida ou histórias de superação dos fracos heróis da época, salsicharia fina para consumidores entediados. Também há clássicos sem direitos de autor ou os mais recentes êxitos estrangeiros de literatura para as massas. Convém fugir para os alfarrabistas que vão proliferando, com a sua oferta de livros velhos onde se encontram pechinchas. Há grande oferta em francês, pois estas empresas compram bibliotecas particulares, que metem em sacos de supermercado. Os idosos que falavam francês vão morrendo e os descendentes despacham a livralhada que não querem ou já não conseguem entender. A língua das pessoas cultas é agora o inglês. Nas livrarias de novidades, em capas sempre no mesmo estilo, só se vende literatura estrangeira ou literatura nacional ao estilo estrangeiro. Muita futilidade. Os escritores já não refletem sobre o mundo, a vida autêntica tornou-se invisível e a fantasia é um defeito. Os melhores artistas das gerações anteriores não tinham lugar neste mercado e certamente o mesmo acontece aos melhores escritores do presente.

publicado às 13:03

Os abismos da memória

por Luís Naves, em 15.12.24

Vivi muita coisa, mas preciso de esforço para me lembrar dos principais momentos. Tenho péssima vocação para recordar coisas e nomes, o que tento compensar com certa fantasia, a ponto de não saber se vivi aquilo que tento memorizar ou se embelezo os factos. Devia talvez ter registado tudo. Os livros que me passaram pelas mãos e as aventuras em que estive metido, algumas coisas que li e, entretanto, se evaporaram, pois retenho apenas farrapos daquilo que aprendo. Sempre gostei de notícias, mas um bom jornalista não se pode esquecer de informação importante nem baralhar cronologias, um escritor pode. Não sei ao certo o que pensar disto, estou farto de política e da minha pequena coleção de recordações anacrónicas, que vou juntando nos baús da memória, ou do tom tão factual destes apontamentos diários, onde raramente me encontro. Devia porventura escrever mais sobre mim, mudar um pouco o registo destas observações, colocar mais gente aqui dentro, registar vivências. Falar do tempo, do Natal que se aproxima, das ilusões dos meus contemporâneos e das minhas deambulações em pensamento, das quais não haverá rasto.

publicado às 17:52

Teoria insuficiente

por Luís Naves, em 11.12.24

A teoria da guerra das civilizações não explica a atual mudança no mundo. A Rússia é tão europeia como a Ucrânia; a crise política da Coreia do Sul tem na sua origem um partido nacionalista de oposição que contesta o comando americano das forças militares coreanas; os islamitas da Síria são apoiados por americanos, turcos e israelitas e derrubaram um regime nacionalista árabe secular e ocidentalizado, que tinha apoio do Irão. Um quinto do planeta é constituído por nações falhadas, em vários continentes, idênticas na desgraça, sobretudo pela exploração implacável dos seus recursos. A teoria de que existe um choque de civilizações é útil para disfarçar os conflitos entre impérios, que não são diferentes das rivalidades que existiram na primeira fase da civilização global. As potências modernas querem uma ordem mundial estável, terão de organizar zonas de influência. O conflito do futuro será económico, pelo domínio de tecnologias e dos minerais do patamar mais elevado de uso de energia. Terá vantagem o país que controlar a inteligência artificial e assegurar os recursos para a energia que esta gasta.

publicado às 13:09

Novo ciclo

por Luís Naves, em 08.12.24

A vida deu mais uma volta, entro em novo ciclo, acaba a incerteza e recomeça a estabilidade. Vou gerir melhor o tempo que me resta e, enquanto a cabeça deixar, tentarei apenas escrever. Tenho planos para conto, romance, crónicas, mas nunca se sabe até onde irá a vontade de prosseguir. Este ano teve um resultado contraditório: o romance deixado a meio, outro publicado, revisões de textos antigos, a coleção de contos incompleta, estes dispersos, muita palavra para o arquivo do esquecimento. Não me cansa, irritam-me as interrupções quotidianas, os assuntos burocráticos, as distrações. Parece que a escrita tem de ser uma atividade talibã. Sou do artesanato, gosto da sujidade da oficina, ocupo o tempo a acumular estes objetos, sem me inquietar com a sua eventual leitura. Agora, que temos toneladas de informações à nossa volta, tornou-se demasiado complicado separar as futilidades daquilo que interessa. Também acontece aos predadores, que ficam paralisados a olhar a agitação do cardume e não sabem por onde começar. Vivemos na cultura da dispersão, da quantidade, da fragmentação. Escrever exige silêncio, reflexão, o apagamento do autor. Não é fácil conciliar tudo e o seu contrário.

publicado às 12:28

Ninguém pode ser otimista

por Luís Naves, em 05.12.24

Ninguém pode ser otimista quando há uma guerra violenta às nossas portas e assistimos a cenas de barbárie no Médio Oriente (ali, está tudo a partir-se). Não é bom sinal ver sociedades perigosamente fragmentadas, exibindo divisões internas que não se viam há décadas ou as feridas de embriões de conflito civil. As tecnologias do futuro foram sempre olhadas com preocupação, mas esta época parece diferente, pois a inteligência artificial não é apenas audaciosa, mas sobretudo temerária. Pela primeira vez, a humanidade não controla completamente o desenvolvimento de uma tecnologia. O mundo contemporâneo tem outros sinais inquietantes, como a proliferação de estados falhados, a bolha de dívida, a degradação da educação, existe também aquilo a que podemos chamar a cultura vazia do espetáculo, que talvez não seja mais do que a febre elevada de uma civilização em decadência. Estamos a terminar um tempo e a começar outro, talvez os historiadores de amanhã possam compreender melhor estes processos, mas não me atrevo a dizer que venha aí um período de prosperidade e paz. Talvez até seja o nascimento perturbado de uma nova Era Dourada, mas por agora não tem aspeto disso.

publicado às 12:42

A realidade? Qual delas?

por Luís Naves, em 01.12.24

Os escritores costumam dizer que se baseiam na realidade, mas ninguém lhes pergunta em qual delas. Um dos problemas do mundo contemporâneo está na extrema dificuldade em estabelecer a simples hierarquia dos factos ou distinguir o que pode ser palpável no meio da neblina das narrativas. A escolha da realidade é um problema sério da literatura: existe a opção simpática do conformismo, que dá acesso aos privilégios do mercado, ou a leitura subversiva que, pondo em causa as verdades da época, condena o escritor ao silêncio mediático. Estará o autor disposto a ver tudo ao contrário do que lhe exigem a busca da fama e o mínimo denominador comum da medíocre cultura popular? A incerteza do real é incompatível com as modas da literatura que desprezam a imaginação. O que mais vende é o realismo sem ambiguidade, por exemplo, a chamada auto-ficção, ou seja, a autobiografia à maneira de um repórter sem distanciamento, que é a impostura máxima, cheia de bons sentimentos. Também está na moda o fogo de artifício, frequentemente sem ideias, como se não houvesse técnica literária além do fluxo de consciência e da existência interior, as únicas que podem resolver sem esforço o problema da multiplicidade de realidades.

publicado às 12:51

Escritor de província

por Luís Naves, em 29.11.24

Sou agora escritor de província. Isolado, desconhecido, livre. Tudo aquilo que escrever será ignorado e não tenho ilusões sobre isso. Talvez publique, mas serei invisível, exterior ao sistema do negócio, das entrevistas e do reconhecimento público. Escrevo fora dos temas da moda, longe da intenção de agradar a críticos ou elites intelectuais, que na melhor das hipóteses poderão deitar um olhar complacente sobre os meus livros (embora isso seja improvável). O escritor provinciano tem vantagens: usa melhor o tempo, não se distrai com a fama, vive tanto quanto escreve, não necessita de horários nem de comparecer em tertúlias e de conhecer gente importante, não precisa de rede de contactos ou agentes, pode explorar o lado espontâneo, ignorar convenções, academias, o mundo, as linguagens que não são as suas, esquecer as mágoas citadinas. O artífice distante pode privilegiar as personagens familiares e concentrar-se na fantasia e nas paisagens interiores, que na sua imaginação se transformam em serras e campos, regatos de água límpida, bosques e montanhas com neve, habitados por camponeses bisonhos e talvez extintos, quem sabe?

publicado às 21:23

A Europa surda e fraca

por Luís Naves, em 27.11.24

A nova Comissão Europeia de Ursula von der Leyen foi aprovada e o que mais chocou nos discursos foi a parte bélica. Bruxelas tem novas ambições na defesa e, se dependesse do palavreado, estávamos em guerra com a Rússia. A comissão devia obedecer aos países membros, mas corre em pista própria. Ninguém a elegeu, não tem legitimidade democrática e não devia falar em nome dos povos europeus, mas considera-se o pináculo do poder. A extensão da influência deste órgão só foi possível devido às divisões entre os líderes eleitos e à fraqueza de governos que se confrontam com o descontentamento interno. Os eurocratas empurraram a agenda climática que comprometeu a competitividade, mas essas elites acham que as trapalhadas que criaram justificam ainda mais influência. A coligação de derrotados continua a dominar o parlamento, como se as recentes eleições não contassem. "Vamos trabalhar com as forças democratas pró-europeias nesta câmara", disse von der Leyen, que tenciona ignorar os partidos ditos extremistas, estes fortalecidos em cada nova eleição, mas que não contam. Insiste-se no centrismo amorfo, na exclusão de uns quantos, a Europa condena-se à paralisia, ignora os seus descontentamentos, é surda e fraca, mas sempre a falar forte.

publicado às 18:49


Autores

João Villalobos e Luís Naves