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Falsos raptos

por Luís Naves, em 11.04.25

A escrita é cada vez mais uma acumulação lenta de elementos imaginários, que o autor procura juntar o melhor que pode. Vem tudo da errância de ideias e da constante contaminação da realidade. Na vida contemporânea, já não conseguimos distinguir bem o que é ficção e o que aconteceu de facto. Um dia, talvez não seja possível separar a verdade das histórias mal contadas. Por exemplo, certos bandidos começaram a usar inteligência artificial para enviar a vítimas de extorsão gravações com as vozes falsificadas de seus familiares supostamente raptados. Quem não reagirá em pânico a um pedido de auxílio de um ente querido? Quem pode ter dúvidas sobre a autenticidade da voz manipulada? A imaginação humana é muito vulnerável a mentiras. O crime baseia-se talvez numa ilusão da nossa memória: a voz que se ouve parece perfeita e toda a gente já experimentou raptos de ficção no cinema, por isso torna-se fácil acreditar nesta fraude tão autêntica. Estamos a viver na era da manipulação e da incerteza da realidade, floresce a matéria-prima do engano, a permanente reinvenção do mundo, a reconstrução da memória, ou melhor, a reconstrução do esquecimento.

publicado às 18:21

Revolução silenciosa

por Luís Naves, em 04.04.25

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Muita gente viveu catorze anos de sacrifícios, perturbações e empobrecimento: primeiro, foi a grande recessão e a crise das dívidas soberanas; depois veio a pandemia, que as autoridades tornaram mais difícil de suportar; finalmente, os efeitos económicos da guerra da Ucrânia e da intervenção ocidental fracassada. Agora, estamos a entrar numa época de rutura tecnológica, que promete ter um profundo impacto social, com milhões de empregos em risco. Podíamos dizer que o poder político acompanhou todas estas transformações, mas não foi o caso. A ordem dita liberal, que nunca foi liberal, não cedeu um único milímetro, pelo contrário, tornou-se ainda mais favorável às velhas elites e procurou sufocar os descontentamentos. As desigualdades aumentaram e, em toda a Europa, os governos são minoritários, impopulares e controlados por interesses antigos, que se agarram ao poder. O jornalismo e as artes são medíocres e refletem esta estagnação, instalou-se o descrédito dos peritos, as instituições vão apodrecendo e a opinião pública desliza para o cinismo. Vem aí uma revolução silenciosa. Não será como as outras da História, com barricadas, mas vai derrubar muitos muros que se ergueram nestes catorze anos.

imagem gerada por IA, Microsoft Image Creator

publicado às 13:20

Impunidade

por Luís Naves, em 29.12.24

Gaza saiu das manchetes e o assunto deixou de interessar à consciência dos líderes ocidentais. Vão saindo notícias envergonhadas sobre os mais recentes ataques, mas é como a estatística de um dia de caça à raposa. Será difícil lavar os crimes que a hipocrisia do poder tem desculpado e de que a comunicação social foi cúmplice, apesar da ocasional lágrima furtiva. Pelo menos 45 mil mortos diretos das atrocidades, na maioria pessoas inocentes. O número de vítimas é bem mais elevado, embora desconhecido, pois morreu muita gente de doenças, falta de medicamentos, insalubridade e até de subnutrição induzida pelas autoridades israelitas, que conseguiram desumanizar a população de dois milhões de pessoas naquele território e aproveitaram para alargar o espaço de segurança, que é na realidade um pequeno império regional. Na Cisjordânia, prossegue a campanha de opressão e limpeza étnica, enquanto o exército israelita aproveitou a queda do regime sírio para estender o controlo nos Montes Golã. O Estado de Israel testa as melhores armas americanas e é invencível, mas também ultrapassou os limites da decência. O que faz aos palestinianos não é autodefesa, mas superioridade racial com impunidade.

publicado às 12:46

Santo Natal

por Luís Naves, em 24.12.24

Com aspeto abatido e triste, o Papa Francisco usou a palavra "crueldade" para definir aquilo que se passa em Gaza e que neste Natal terá de ser escondido das pessoas decentes. Olhar para o presépio já aflige, não há esperança de tréguas ou de simples humanidade. Os reféns israelitas foram abandonados pelo seu próprio governo, que recusa negociar, para não perder a vitória, ou seja, o esmagamento de dois milhões, isto sem apelo, de gente que não tem para onde ir e que não poderá viver em segurança no inferno em que se transformou a sua terra. Pelo menos 45 mil mortos, metade mulheres e crianças, milhares de feridos e estropiados, milhares de cadáveres debaixo dos escombros, ajuda humanitária a entrar em quantidades insuficientes, a guerra sem travão, Israel a transformar-se num pequeno império regional. O Papa estava zangado, mas haverá cristãos a discordar dele. Em Israel, também são minoritárias as críticas à violência: uma notícia citava soldados que não distinguiam os seus próprios crimes de guerra, pois sentiam-se como deuses quando combatiam em Gaza. Os hospitais que ainda não estão em ruínas são encerrados. É difícil pensar nisto e acreditar nas lindas expressões da Terra Santa e do Santo Natal.

publicado às 10:26

Teoria insuficiente

por Luís Naves, em 11.12.24

A teoria da guerra das civilizações não explica a atual mudança no mundo. A Rússia é tão europeia como a Ucrânia; a crise política da Coreia do Sul tem na sua origem um partido nacionalista de oposição que contesta o comando americano das forças militares coreanas; os islamitas da Síria são apoiados por americanos, turcos e israelitas e derrubaram um regime nacionalista árabe secular e ocidentalizado, que tinha apoio do Irão. Um quinto do planeta é constituído por nações falhadas, em vários continentes, idênticas na desgraça, sobretudo pela exploração implacável dos seus recursos. A teoria de que existe um choque de civilizações é útil para disfarçar os conflitos entre impérios, que não são diferentes das rivalidades que existiram na primeira fase da civilização global. As potências modernas querem uma ordem mundial estável, terão de organizar zonas de influência. O conflito do futuro será económico, pelo domínio de tecnologias e dos minerais do patamar mais elevado de uso de energia. Terá vantagem o país que controlar a inteligência artificial e assegurar os recursos para a energia que esta gasta.

publicado às 13:09

A realidade? Qual delas?

por Luís Naves, em 01.12.24

Os escritores costumam dizer que se baseiam na realidade, mas ninguém lhes pergunta em qual delas. Um dos problemas do mundo contemporâneo está na extrema dificuldade em estabelecer a simples hierarquia dos factos ou distinguir o que pode ser palpável no meio da neblina das narrativas. A escolha da realidade é um problema sério da literatura: existe a opção simpática do conformismo, que dá acesso aos privilégios do mercado, ou a leitura subversiva que, pondo em causa as verdades da época, condena o escritor ao silêncio mediático. Estará o autor disposto a ver tudo ao contrário do que lhe exigem a busca da fama e o mínimo denominador comum da medíocre cultura popular? A incerteza do real é incompatível com as modas da literatura que desprezam a imaginação. O que mais vende é o realismo sem ambiguidade, por exemplo, a chamada auto-ficção, ou seja, a autobiografia à maneira de um repórter sem distanciamento, que é a impostura máxima, cheia de bons sentimentos. Também está na moda o fogo de artifício, frequentemente sem ideias, como se não houvesse técnica literária além do fluxo de consciência e da existência interior, as únicas que podem resolver sem esforço o problema da multiplicidade de realidades.

publicado às 12:51

Escritor de província

por Luís Naves, em 29.11.24

Sou agora escritor de província. Isolado, desconhecido, livre. Tudo aquilo que escrever será ignorado e não tenho ilusões sobre isso. Talvez publique, mas serei invisível, exterior ao sistema do negócio, das entrevistas e do reconhecimento público. Escrevo fora dos temas da moda, longe da intenção de agradar a críticos ou elites intelectuais, que na melhor das hipóteses poderão deitar um olhar complacente sobre os meus livros (embora isso seja improvável). O escritor provinciano tem vantagens: usa melhor o tempo, não se distrai com a fama, vive tanto quanto escreve, não necessita de horários nem de comparecer em tertúlias e de conhecer gente importante, não precisa de rede de contactos ou agentes, pode explorar o lado espontâneo, ignorar convenções, academias, o mundo, as linguagens que não são as suas, esquecer as mágoas citadinas. O artífice distante pode privilegiar as personagens familiares e concentrar-se na fantasia e nas paisagens interiores, que na sua imaginação se transformam em serras e campos, regatos de água límpida, bosques e montanhas com neve, habitados por camponeses bisonhos e talvez extintos, quem sabe?

publicado às 21:23

Condescendência

por Luís Naves, em 22.11.24

A condescendência ocidental impede-nos de perceber a nossa hipocrisia e a forma como os outros nos desprezam. Somos mais puros, os nossos valores são melhores, e como alguém dizia, até somos mais belos. Com esta superioridade instintiva, os ocidentais têm dificuldade em aceitar que a sua ordem mundial está comprometida, que a hegemonia americana já não existe e que emerge um sistema multipolar de potências. A mentalidade colonial não nos deixou inteiramente: é evidente para os ocidentais que, tendo dominado o mundo durante meio milénio, as respetivas culturas são superiores. Tornou-se natural e lógico explorar os recursos de geografias distantes, é o direito do mais forte, chamem-lhe cinismo. Os colonialistas já não existem, mas os impérios ficaram nas mentes. O ocidente abandonou a face cruel que hoje nos repugna, mas continua a extrair os recursos de que necessita usando elites nativas corruptas, exercendo um poder indireto que não tolera rebeliões. Na anarquia que deixámos para trás, existe um vasto arco planetário de estados falhados e guerras civis de que ninguém fala. Exploração de recursos, cinzas imperiais.

publicado às 18:48

Velhos filmes

por Luís Naves, em 19.11.24

Filmes antigos restaurados por IA circulam com abundância nas redes sociais. Vemos cenas urbanas, com cem anos, oitenta anos: pessoas com vestes estranhas e chapéus bizarros olham para a câmara, andam pelas ruas com tranquilidade, alheias ao trovão da história que se aproxima delas. É comovente ver aqueles inocentes, felizes da vida, à beira de catástrofes, prosseguindo os seus afazeres. E penso: estas pessoas viveram até à velhice ou foram atropeladas pelos acontecimentos que não podiam antecipar, mas que estão a poucos meses de distância, ou poucos anos, destas imagens pacatas? Dias antes de um conflito rebentar sem remédio, multidões pacíficas cantavam em coros e vendiam nos mercados, iam à missa ou à sinagoga, amavam, estudavam e trabalhavam, escutavam o sermão e liam em casa, passeavam de comboio e andavam pelos parques. O mundo ia mudar, mas eles não sabiam que a civilização era frágil. Alguns tinham meses para viver e não podiam imaginar que em breve aquelas praças, aqueles edifícios, tudo estaria em ruínas. Seremos talvez como eles, cantamos em concertos de Natal sem sabermos que será porventura o último, circulamos serenamente nas ruas ameaçadas por bombas atómicas.

publicado às 11:46

Sinais da tempestade

por Luís Naves, em 13.11.24

A escrita diária tem flutuações, ao sabor das leituras, das impressões e das peripécias da atualidade. É difícil escapar à espuma das controvérsias, aos rumores dos perigos do mundo, ao folclore político. Difícil também escapar às tolices que se encontram por todo o lado, sobretudo as bazófias dos guerreiros de sofá. Vivemos tempos difíceis e é irritante ler a ligeireza de tantos irresponsáveis, aqueles que tiram satisfação das desgraças e parecem felizes com os sinais de desvario da humanidade e com a atual aproximação ao abismo. Há pessoas que estiveram sempre do lado errado, a defenderem as punições ocidentais contra camponeses rebeldes indefesos, os mesmos que agora não conseguem disfarçar o sorriso quando se agravam os conflitos do presente, estes bem mais perigosos. Os globalistas estão num tremendo pânico, com receio das potências emergentes, das barreiras de comércio, do fim iminente da velha ordem mundial. Não conseguem aceitar que o ciclo político está a virar e que o sistema glorificado entrou na fase terminal, para grande espanto das elites que achavam tudo confortável e eterno. Mas não perceberam os sinais da tempestade que se aproximava?

publicado às 19:38


Autores

João Villalobos e Luís Naves