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Anacleta

por Luís Naves, em 18.10.18

O romance Mistérios de Lisboa contém uma deliciosa novela de 50 páginas entre os capítulos VIII e XV do segundo livro, uma história autónoma sem título, enfiada a meio (estou a ignorar o epílogo nos capítulos XVI e XVII, que faz a ligação às narrativas seguintes). Trata-se de um crime perfeito, devidamente castigado pelas forças do destino na pessoa de uma inocente, mas o que mais me interessou foi a personagem principal, Anacleta, figura rara em Camilo, a contrariar a tendência do escritor de criar mulheres mais parecidas com jarrões chineses, vítimas inocentes ou loucas. Sensual e determinada, inteligente e corajosa, Anacleta também é maléfica, mas toda a maldade vem das suas violentas paixões. A novela é quase policial, podia ter sido o primeiro exemplo do género na literatura portuguesa, caso CCB tivesse explorado a investigação do crime, apenas aflorada.

publicado às 19:01

Autenticidade

por Luís Naves, em 22.09.18

Se a literatura deve ser autêntica, então devíamos escrever sobre aquilo que sabemos. A autenticidade é um dos pontos, em oposição às rodinhas do meu bairro e outras tretas sentimentais. E, no entanto, a realidade não chega. Um livro de ficção, pelo menos no meu conceito (que é o melhor para mim), deve explorar a fantasia tanto quanto a memória, num equilíbrio que só cada um pode calcular. Julgo que este é o sentido da explicação incluída num diálogo de A Doida do Candal: o narrador (sempre o autor, CCB) explica o livro que acabámos de ler a uma das suas próprias personagens, a qual lhe pergunta se as histórias dos seus romances aconteceram mesmo. «É tudo verdadeiro, minha senhora», responde o escritor, «uns casos aconteceram, outros podiam acontecer; e logo que podiam, é quase evidente que aconteceram».

publicado às 19:13

Telescópios imprecisos

por Luís Naves, em 03.09.18

Os escritores são solicitados para falar sobre tudo e um par de botas, mas normalmente nem sabem o que os faz escrever e desconhecem o mecanismo que os leva, por vezes, a conseguir tocar ao de leve em alguns dos mistérios essenciais do seu mundo. Isto funciona um pouco como os telescópios. Há telescópios ópticos que captam a luz visível, há outros aparelhos que detectam infravermelhos ou radiação ultravioleta. Cada um destes equipamentos permite ver uma versão da realidade, mas apenas parte limitada do universo. Assim funcionam as ciências sociais e a filosofia, cada uma a captar determinado espectro da luz. E, no entanto, sabe-se que no universo existe matéria escura, que continua invisível para a tecnologia. Ora, a literatura pode explorar o que as ciências não atingem. Perguntar aos autores pela matéria visível não tem grande lógica, pois eles são melhores a detectar matéria escura, ou seja, a parte enigmática da humanidade, e piores a pensar sobre aquilo que já é conhecido. Sem perceberem ao certo como o fazem, os ficcionistas podem entender uma parcela da essência do seu tempo, mas sempre no território do enigma e do que se oculta nos interstícios da realidade. Quando os interrogam sobre matéria que possa ser estudada, como a explicação de um país ou a descrição da sociedade, têm geralmente telescópios imprecisos.

publicado às 17:56

Coisas ultra-modernas

por Luís Naves, em 21.07.18

Vladimir Nabokov antecipou o triunfo geral da banalidade e do mau gosto, do moralismo e do lugar comum. Estes eram alguns dos elementos que ele detestava na literatura do seu tempo e que encontramos de maneira abundante na nossa época: a simplificação excessiva, o pedantismo, numa palavra o «fake» (uso a expressão inglesa por ser melhor do que falso, com sentido mais subtil, que tem a ver com a falta de sinceridade e a aparência enganadora das coisas). Os nossos tempos são como a literatura que Nabokov detestava: tudo bonitinho, com falsa poesia, sem autenticidade, embrulhado em belas frases. Gostamos de coisas moralistas, politicamente corretas e suficientemente hipócritas para manterem sempre certa leveza inócua. Somos pela verborreia sentenciosa, a pompa vazia, a ignorância atrevida. Raramente encontramos alguém que diga mesmo aquilo que pensa. Sebastian Knight, em particular, tem muitas pistas sobre a arte da literatura, no conceito de Nabokov, veja-se esta passagem, em que o narrador se refere a um poeta modernista russo: «o grosso da sua obra parece hoje tão fútil, tão falso, tão antiquado (as coisas ultra-modernas têm a estranha característica de envelhecerem muito mais depressa do que as outras)».

publicado às 19:59

Uma frase de Agustina e outra de Torga

por Luís Naves, em 12.07.18

Li mais crónicas de Agustina, de um de três volumes onde se reúnem centenas de textos geralmente muito bons, e a certo ponto encontrei uma crónica (parvamente não anotei a data, mas julgo que era do DN) onde a escritora falava de uma visita da famosa actriz Cicciolina ao parlamento nacional (sem necessitar de explicar que a coisa correra mal) e a prosa rematava com uma frase que cito de cor, qualquer coisa como: até a pornografia tem de ter carácter. Lembro-me de uma segunda visita de Cicciolina a Portugal (devo ter escrito alguma coisa para o Tempo) e ocorreu-me a abordagem que o artista plástico Jeff Koons fez do seu matrimónio com a actriz, com imagens pornográficas onde imperava o kitsch, o exagerado, grotesco, fantasista, voyeur, banal e até ordinário, mas com sentido de humor e sem filosofia ou pretensões poéticas. No Diário de Miguel Torga, encontrei uma entrada em que o autor se insurgia contra o que considerava ser o exagero erótico da literatura da sua época, com a excessiva exposição da intimidade — julgo que ele estava a referir-se a livros que hoje nos parecem inocentes ou pudicos, mas o essencial desta entrada de Janeiro de 1950 é bem interessante: segundo Torga, havia quem escrevesse «palavrões» e descrevesse «cenas sexuais com toda a pornografia». E rematava: «Deixá-los! Os livros não têm força, nem verdade. Em medicina, o órgão que se sente, é um órgão doente. Estes escritores sentem demais o pénis”. O Diário — um caderno de apontamentos que não pretende entrar na intimidade do autor ou em críticas individualizadas, «não sou delator, nem meu, nem dos outros», por isso não sabemos que livros lhe despertaram a crítica — tem reflexões úteis sobre literatura e várias entradas sobre o romance português, que o escritor considera pobre, devido ao atraso nacional e à falta de imaginação.

publicado às 10:33

Literatura photoshop

por Luís Naves, em 08.07.18

Escrever ficção é difícil devido às escolhas que o autor deve fazer em nome do compromisso que procura a verosimilhança e o imediatamente inteligível. Devemos pensar excessivamente nas deficiências do leitor, que não tem culpa de ser subestimado. Além disso, vivemos numa época medíocre e fútil, auto-centrada em excesso, que aprecia ideias mastigadas — que a doutrina afirma serem meramente «ideias depuradas». Em resumo, temos de escolher a dose certa de pureza nos conceitos, retirando o que possa pesar, como se a matéria magra fosse a única possível. Procuramos a imagem idealizada do humano, do excessivamente belo, já que tudo o resto incomoda. Detestamos imperfeições e fazemos literatura Photoshop, a suavizar arestas e sombras, a embelezar ou a retirar os defeitos da espontaneidade das coisas vivas, deixando apenas a juventude eterna, de preferência devidamente cómoda e adocicada.

publicado às 12:02

Boa definição

por Luís Naves, em 07.07.18

Experimentei testar uma ideia de Agustina Bessa-Luís, que li ontem num dos magníficos volumes que reúnem centenas de crónicas da escritora: «Um bom livro tem de agarrar o leitor numa qualquer página, ao acaso». Há naqueles textos muitas outras pérolas semelhantes, a desmentir quem afirma que a crónica é um género menor.

publicado às 10:18

Sobre a mediania

por Luís Naves, em 12.06.18

O romance está muito avançado, falta a ponta final e as emendas, a parte mais difícil. Entretanto, mergulho na impaciência, com a crescente sensação de vazio e cansaço, pois todo o meu esforço se revela desnecessário e até ridículo. É bastante evidente que este livro não será publicado ou, se sair à luz do dia, parece-me óbvio que poucos o lerão e que ninguém se irá incomodar com ele. Posso estar a escrever para outra época, mas é duvidoso (isso é para uns raros), o mais certo é não estar a escrever para época nenhuma, como aqueles artistas que se esforçaram sempre imenso, mas jamais se distinguiram da mediania, que em arte é a zona insuficiente. Sim, na arte, na ciência, a mediania é menos que medíocre, não acrescenta coisa alguma, de nada serve, é apenas mais um bocadinho de ruído no imenso concerto do inútil.

publicado às 11:57

Não somos diferentes

por Luís Naves, em 21.03.18

Os homens primitivos precisavam de saber o que estava para lá da montanha mais alta ou do rio caudaloso e, para isso, ouviam histórias daqueles que tinham explorado essas fronteiras. Não eram relatos factuais, mas exageros distorcidos pela imaginação, e só assim funcionavam. Não somos tão diferentes dos nossos antepassados, só mais organizados em rede, por isso, também gostamos de coboiadas, de histórias de aventuras e crimes, por isso necessitamos de ler, ou seremos apenas formiguinhas embaladas em caixas. E, no entanto, a ambição provocada pelos exercícios da imaginação vai desaparecendo da arte contemporânea, sobretudo devido à domesticação imposta pelo dinheiro. Estão a matar aquele um por cento de literatura que a humanidade ainda possuía. Ou talvez não, de vez em quando ouvimos pequenos testemunhos daqueles tios que ainda vão escrevendo: esforçam-se por explicar que a arte é uma ilusão em movimento e tentam extrair das realidades toda a essência que não se consegue dizer por palavras, tudo o que na experiência humana possa ser mais obscuro, indomável e desmedido.

publicado às 14:08

Excesso de estilo

por Luís Naves, em 10.01.18

A literatura pode ser tudo aquilo que resta depois de ser retirado o que não adianta. Convém não confundir pintura com decoração, música com melodia de acalmar nervos. O fato serve para vestir alguém e, quando não leva em conta as dimensões do corpo, torna ridículo quem o veste. O excesso de estilo é como o fato demasiado longo que não obedece à personalidade de quem escreve. Certo jogador famoso nunca fazia um passe, corria com a bola nos pés como se ela fosse sua e ornamentava cada movimento com dribles adicionais. Nesse tempo, o excesso de estilo era muito apreciado e choviam os aplausos enquanto ele fintava um, dois, três adversários, até finalmente perder a bola. A imprensa dizia que ele era capaz de sair de uma cabina telefónica a jogar, mas funcionava ao contrário, era capaz de se enfiar inutilmente numa cabina telefónica, rodeado de adversários, e ficava lá a dar toques infinitos, até perder a bola e cair no relvado com grandes gestos de protesto a quem ninguém ligava. Um dia, as pessoas fartaram-se, achavam aquilo monótono, e dizia-se que o grande campeão nunca tivera verdadeira noção da baliza. Depois, foi esquecido, mas isso acontece a todos. Se percebemos isto no futebol, devíamos perceber na arte, mas depois lemos Proust e não é nada disto.

publicado às 19:29


Autores

João Villalobos e Luís Naves