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Pedaços do mundo e grãos de areia
Estas coisas acontecem de cem em cem anos. Ainda estávamos em janeiro e discutia-se o processo de destituição do inquilino da Casa Branca. Na mesma altura, muita gente escreveu que a morte de um general iraniano ia custar caro aos americanos, que no mínimo seriam expulsos do Médio Oriente. Tudo isto agora nos parece anterior à guerra anterior. No Irão, país comandado por gente do século XIV, morre-se à porta do hospital; já ninguém quer saber da campanha eleitoral na América, muito menos da independência da Catalunha; e já ninguém se lembra dos temas fraturantes que entre nós se discutiam com emoção (que temas eram esses, exatamente?). O mundo mudou e ainda vai mudar mais: muitos vão defender os muros que ontem criticavam, seja para migrantes sírios ou turistas espanhóis; muitos vão condenar os políticos que ontem consideravam geniais ou indispensáveis; muitos vão pedir mais segurança, mais distância em relação aos outros, mais repressão de comportamentos irrefletidos, menos tolerância para açambarcadores e outros parasitas. Depois, a grande vassoura da opinião pública vai remover os governantes que falharam e lá será reconstruída uma economia menos dependente da globalização, das fábricas chinesas e das decisões dos burocratas de Bruxelas.
Parem o planeta, que saio nesta paragem. É um salve-se quem puder, a total falta de vergonha, o delírio e a gritaria histérica. Não me recordo de nada assim, nem nos piores momentos da Guerra Fria, quando podíamos ser todos incinerados em dez minutos, nem quando entrou em colapso o bloco comunista e os perigos pareciam imensos, nem durante os momentos mais severos da última crise financeira, não me recordo de ver estas massas de gente em movimento, o drama das epidemias, a demagogia e o pânico de mãos dadas, este horror mascarado, a repugnância pelos outros e o medo da própria sombra. Sou muito jovem, sem memória daqueles séculos de que só ouvi falar, quando a civilização deslizava para o abismo sem motivo aparente. Sim, sei que tudo isto é superficial, o exagero do mundo mediático em que vivemos, sei que no fundo os humanos pertencem a uma espécie com inteligência, que o bem no fim triunfa, mas custa a acreditar, custa manter alguma crença nesta atualidade hipócrita que se olha ao espelho.
Então, por vezes, surge-nos aquela noção de que diminui a escala da humanidade a cada nova descoberta sobre o tamanho do universo. Ao mesmo tempo que o homem encolheu, por assim dizer, alongaram-se a distância e o tempo, a ponto de já não sermos mais do que um pequeníssimo grão de poeira na escuridão imensa, quase invisível dos confins do sistema para onde lançámos pequenas máquinas que permitiram observar diretamente e em termos científicos a nossa própria pequenez; assim constatámos a insignificância de um grão de rocha a rodopiar em torno de uma estrela banal, que por sua vez fazia parte de um arquipélago de corpos minúsculos capazes de brilhar por igual aos milhares de milhões. Outrora julgámos ser o centro da criação, hoje sabemos que andamos à deriva no imenso abismo, de tal forma sem-fim que, não duvidem, é um sedutor enigma o facto de nos levarmos tão a sério.
Estamos a entrar num período mais espiritual e menos materialista, uma época do mundo mais inocente e menos cínica. A sociedade futura será igualitária e menos hedonista, teremos exemplos de religião contemplativa e menos fanatismo, tolerância crescente e a rejeição do egoísmo consumista que hoje sustenta a divisão em classes. Tudo isto parece utópico, mas julgo que há cada vez mais pessoas com a consciência de que não é possível manter por muito mais tempo os atuais níveis de consumo dos nossos recursos limitados e que todas as soluções tecnológicas terão de satisfazer vidas que se contentam com menos substância e mais sabedoria, naquilo que continua a ser o objetivo de qualquer existência, a busca da felicidade.
No final de dezembro fazem-se balanços sobre o ano que passou. Na vida pessoal, confesso, foi mais do mesmo, sem nada de especial a assinalar, como poderia escrever um comandante otimista no seu livro de bordo: os ventos do costume, progressão lenta, evitámos as tempestades e perdemos algum tempo no mar picado, embora de ondulação tolerável; as coisas, apesar de tudo, parecem promissoras. O mesmo para o mundo, como poderia escrever o capitão de um daqueles grandes veleiros intercontinentais: viagem medíocre, mas sem desastres, difícil perceber o caminho no meio do nevoeiro denso, o vento empurra-nos lentamente sabe-se lá para onde, pois há nuvens carregadas em toda a volta e ameaças de tempestade que, por enquanto, conseguimos evitar. Para o ano será melhor, ou talvez pior, dizem os marinheiros, sabendo que porventura, nestas viagens, muita coisa se clarifica à medida que progredimos.
Discute-se muito se os penduricalhos de Mapplethorpe são arte ou censura. Podíamos talvez discutir o estado da arte, os teatros vazios e os teatros fechados, as livrarias a abarrotar de subprodutos, a indigência do cinema, as instituições subfinanciadas, a falência imparável dos jornais. Devíamos questionar o estado da arte, se temos uma literatura exportável, se as bibliotecas renovam as coleções, se os museus estão seguros, se os artistas nacionais trabalham de borla, se o ensino artístico melhorou ou se é melhor que os talentos procurem outros países. Podíamos discutir isto, mas mergulhámos numa espécie de sonambulismo, a debater os méritos da fotografia americana, tema que teria inegável interesse, se os bárbaros não estivessem já instalados deste lado da muralha.
Os acontecimentos do dia 11 de Setembro de 2001 ficaram na memória de todos, mas o que verdadeiramente mudou as nossas vidas foi a crise financeira que começou em Setembro de 2008, com o colapso do banco americano Lehman Brothers. A partir daí, vivemos uma época da fragmentação, caracterizada pela estagnação económica (a década perdida), a aparente dissolução dos valores, a mediocridade da política, a crispação do discurso da intolerância, o estilhaçar das classes sociais, o antagonismo sem ideologia e a irrelevância das vozes moderadas. Nestes últimos dez anos, tivemos a sensação de viver numa espécie de época pantanosa, em que se acentuou a ideia do próprio declínio da cultura, como se não houvesse rumo e futuro. A grande recessão teve causas complexas e nunca li uma explicação convincente. Aliás, os académicos ainda hoje discutem as causas da Grande Depressão dos anos 30 do século passado e talvez seja preciso esperar um século para que se compreenda o fenómeno que nos atingiu. Ora, se ainda hoje não entendemos inteiramente o que aconteceu, quem nos garante que já terminou o ciclo? Podemos conceber novos espasmos do processo, em que se acentuam divisões sociais e cresce o fosso entre vencedores e vencidos, em que ocorrem novos episódios de segmentação, em que voam estilhaços das classes sociais e saltam pedaços de tribos e de clãs, acentuando choques e contradições da época. Depois da fragmentação, haverá outra tendência, talvez até a contrária, mas uma coisa é certa: o mundo que estamos a construir será muito diferente daquele de onde saímos.
Um pequeno artigo em The Economist fazia referência a um estudo do Deutsche Bank sobre a acumulação do valor dos activos financeiros nas economias avançadas. A coisa é teórica, foi discutida em sites especializados com enorme excitação, mas tento resumir: nos últimos dois séculos, os activos financeiros nunca estiveram tão valorizados como agora, o que indica a possibilidade iminente de se iniciar o processo de queda de valor, ou seja, de haver nova crise financeira, porventura tão ou mais grave do que a anterior. Além da previsão de que provavelmente não haverá aviso, o que mais assusta no gráfico que o DB produziu é a coincidência entre as inversões dramáticas e as grandes calamidades da História. À euforia na constante obtenção de valor de obrigações e capitais, num período longo, segue-se uma descida que pode durar décadas. Segundo os dados do relatório do banco, o valor dos activos financeiros está em curva ascendente desde os anos 80, quando começou o longo período de forte endividamento de empresas e países. A crise de 2008, causada pelo estoiro da bolha dos subprime, não travou a ascensão desta curva, pelo contrário, ela continua a crescer, o que não pode manter-se eternamente. A bolha financeira global vai estoirar um dia, só não sabemos quando e como; então, começará a longa descida, que pode prolongar-se por uma geração. Quem, daqui a 50 anos, olhar para um gráfico actualizado deste indicador, verá um pequeno pico ou planalto, a marcar uma nova crise mundial, talvez a rebentar no início da década de 20, ou talvez por estes dias.
Na política caseira, não será possível manter por muito mais tempo a ficção de que se é contra a ortodoxia europeia, enquanto se elogia o rigor dos orçamentos e o cumprimento dessas regras. A narrativa de que vão lá bater o pé aos europeus é patética e a extrema-esquerda pode escolher o momento em que assumirá a sua oposição a uma política que considera ser a verdadeira calamidade. A táctica é efémera e muda conforme as oportunidades: se o governo de António Costa falhar como fracassou François Hollande, não terá desculpas, e o PS enfrentará uma ameaça existencial que pode ser semelhante à de um partido, o PS francês, que sempre imitou.
Parece cada vez mais provável que a geringonça se rompa por um motivo exterior. O deslize orçamental ameaça as taxas de juro da dívida e pode resultar em exigências de Bruxelas de cortes na despesa, que seriam intoleráveis para os partidos da esquerda. O Governo continua a dizer que não cumprirá a recomendação da comissão feita na semana anterior, de aplicar medidas adicionais, fingindo ignorar que existe uma ameaça de suspensão dos fundos comunitários em 2017. Provavelmente, os socialistas não contam estar no Governo nessa altura. Para os comentadores políticos, o acordo entre os quatro partidos está sólido e quem romper perde imensos votos. A explicação, segundo estas versões: as sondagens indicam que o povo quer estabilidade e a penalização será dura para quem protagonizar a ruptura. Talvez tenham razão, mas as sondagens indicam a tendência de voto neste momento e só haverá eleições se o Governo cair ou no fim da legislatura, este último um cenário improvável. As sondagens serão muito diferentes após a queda, portanto, estamos a elaborar cenários sobre situações que ainda não existem. Convinha olhar para as sondagens de outra forma: nenhum dos partidos tem um motivo forte para derrubar o Governo. A situação muda quando chegar a factura dos erros anteriores, por exemplo um pacote de cortes na despesa imposto de fora. Para a esquerda do PS, será então difícil manter o acordo que suporta o Governo. Se todas as noivas saírem ao mesmo tempo, a compreensão dos convidados irá apenas para elas; quem fica ridículo é o noivo deixado no altar.