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Arte e censura

por Luís Naves, em 29.09.18

Discute-se muito se os penduricalhos de Mapplethorpe são arte ou censura. Podíamos talvez discutir o estado da arte, os teatros vazios e os teatros fechados, as livrarias a abarrotar de subprodutos, a indigência do cinema, as instituições subfinanciadas, a falência imparável dos jornais. Devíamos questionar o estado da arte, se temos uma literatura exportável, se as bibliotecas renovam as coleções, se os museus estão seguros, se os artistas nacionais trabalham de borla, se o ensino artístico melhorou ou se é melhor que os talentos procurem outros países. Podíamos discutir isto, mas mergulhámos numa espécie de sonambulismo, a debater os méritos da fotografia americana, tema que teria inegável interesse, se os bárbaros não estivessem já instalados deste lado da muralha.

publicado às 11:46

O que mudou

por Luís Naves, em 11.09.18

Os acontecimentos do dia 11 de Setembro de 2001 ficaram na memória de todos, mas o que verdadeiramente mudou as nossas vidas foi a crise financeira que começou em Setembro de 2008, com o colapso do banco americano Lehman Brothers. A partir daí, vivemos uma época da fragmentação, caracterizada pela estagnação económica (a década perdida), a aparente dissolução dos valores, a mediocridade da política, a crispação do discurso da intolerância, o estilhaçar das classes sociais, o antagonismo sem ideologia e a irrelevância das vozes moderadas. Nestes últimos dez anos, tivemos a sensação de viver numa espécie de época pantanosa, em que se acentuou a ideia do próprio declínio da cultura, como se não houvesse rumo e futuro. A grande recessão teve causas complexas e nunca li uma explicação convincente. Aliás, os académicos ainda hoje discutem as causas da Grande Depressão dos anos 30 do século passado e talvez seja preciso esperar um século para que se compreenda o fenómeno que nos atingiu. Ora, se ainda hoje não entendemos inteiramente o que aconteceu, quem nos garante que já terminou o ciclo? Podemos conceber novos espasmos do processo, em que se acentuam divisões sociais e cresce o fosso entre vencedores e vencidos, em que ocorrem novos episódios de segmentação, em que voam estilhaços das classes sociais e saltam pedaços de tribos e de clãs, acentuando choques e contradições da época. Depois da fragmentação, haverá outra tendência, talvez até a contrária, mas uma coisa é certa: o mundo que estamos a construir será muito diferente daquele de onde saímos.

publicado às 19:09

As bolhas

por Luís Naves, em 07.10.17

Um pequeno artigo em The Economist fazia referência a um estudo do Deutsche Bank sobre a acumulação do valor dos activos financeiros nas economias avançadas. A coisa é teórica, foi discutida em sites especializados com enorme excitação, mas tento resumir: nos últimos dois séculos, os activos financeiros nunca estiveram tão valorizados como agora, o que indica a possibilidade iminente de se iniciar o processo de queda de valor, ou seja, de haver nova crise financeira, porventura tão ou mais grave do que a anterior. Além da previsão de que provavelmente não haverá aviso, o que mais assusta no gráfico que o DB produziu é a coincidência entre as inversões dramáticas e as grandes calamidades da História. À euforia na constante obtenção de valor de obrigações e capitais, num período longo, segue-se uma descida que pode durar décadas. Segundo os dados do relatório do banco, o valor dos activos financeiros está em curva ascendente desde os anos 80, quando começou o longo período de forte endividamento de empresas e países. A crise de 2008, causada pelo estoiro da bolha dos subprime, não travou a ascensão desta curva, pelo contrário, ela continua a crescer, o que não pode manter-se eternamente. A bolha financeira global vai estoirar um dia, só não sabemos quando e como; então, começará a longa descida, que pode prolongar-se por uma geração. Quem, daqui a 50 anos, olhar para um gráfico actualizado deste indicador, verá um pequeno pico ou planalto, a marcar uma nova crise mundial, talvez a rebentar no início da década de 20, ou talvez por estes dias.

publicado às 21:36

Na política caseira

por Luís Naves, em 19.04.17

Na política caseira, não será possível manter por muito mais tempo a ficção de que se é contra a ortodoxia europeia, enquanto se elogia o rigor dos orçamentos e o cumprimento dessas regras. A narrativa de que vão lá bater o pé aos europeus é patética e a extrema-esquerda pode escolher o momento em que assumirá a sua oposição a uma política que considera ser a verdadeira calamidade. A táctica é efémera e muda conforme as oportunidades: se o governo de António Costa falhar como fracassou François Hollande, não terá desculpas, e o PS enfrentará uma ameaça existencial que pode ser semelhante à de um partido, o PS francês, que sempre imitou.

publicado às 14:08

E se as noivas saírem todas ao mesmo tempo?

por Luís Naves, em 04.08.16

Parece cada vez mais provável que a geringonça se rompa por um motivo exterior. O deslize orçamental ameaça as taxas de juro da dívida e pode resultar em exigências de Bruxelas de cortes na despesa, que seriam intoleráveis para os partidos da esquerda. O Governo continua a dizer que não cumprirá a recomendação da comissão feita na semana anterior, de aplicar medidas adicionais, fingindo ignorar que existe uma ameaça de suspensão dos fundos comunitários em 2017. Provavelmente, os socialistas não contam estar no Governo nessa altura. Para os comentadores políticos, o acordo entre os quatro partidos está sólido e quem romper perde imensos votos. A explicação, segundo estas versões: as sondagens indicam que o povo quer estabilidade e a penalização será dura para quem protagonizar a ruptura. Talvez tenham razão, mas as sondagens indicam a tendência de voto neste momento e só haverá eleições se o Governo cair ou no fim da legislatura, este último um cenário improvável. As sondagens serão muito diferentes após a queda, portanto, estamos a elaborar cenários sobre situações que ainda não existem. Convinha olhar para as sondagens de outra forma: nenhum dos partidos tem um motivo forte para derrubar o Governo. A situação muda quando chegar a factura dos erros anteriores, por exemplo um pacote de cortes na despesa imposto de fora. Para a esquerda do PS, será então difícil manter o acordo que suporta o Governo. Se todas as noivas saírem ao mesmo tempo, a compreensão dos convidados irá apenas para elas; quem fica ridículo é o noivo deixado no altar.

publicado às 09:45

Bater o pé

por Luís Naves, em 12.07.16

Portugal está sob ameaça de sanções da União Europeia. Negando o óbvio, entre nós prossegue a operação de mistificação da opinião pública. O actual Governo tenta culpar o anterior por não ter cumprido o défice de 2015 e afirma que não fará alterações de política, mas as autoridades europeias exigem medidas. A coligação PSD-CDS desbaratou a oportunidade de sairmos do procedimento por défice excessivo, onde nos encontramos por nunca termos cumprido o objectivo de 3% do PIB no défice orçamental, mas as sanções não resultam de duas décimas de PIB (seriam pouco mais de 300 milhões de euros), mas do afastamento continuado da trajectória de redução do défice orçamental. O Governo de António Costa adiou pagamentos, subestimou o abrandamento económico e aumentou a despesa. Portugal financia-se nos mercados e estes estão a reagir com crescente desconfiança à reversão das reformas. Perante a ameaça de sanções, Costa terá de escolher entre austeridade e bancarrota; os partidos que o apoiam podem aceitar medidas duras ou avançar para uma ruptura que cortará o PS em pedaços. Isto seria o dilema racional, mas há sempre a hipótese de querer bater o pé à Europa, que deu tão bons resultados na Grécia.

publicado às 19:38

Parecia o fim do mundo

por Luís Naves, em 25.06.16

Nas televisões nacionais, o resultado do referendo britânico parecia o fim do mundo. Os jornais e redes sociais transbordam de catastrofismo ou de indignação. Lemos comentários a celebrar o fim inevitável da UE, essa coisa horrível que acabou com as nossas vidas e encontramos toneladas de textos sobre uma Europa que nunca existiu nem vai existir. Em Portugal, à esquerda, cresce um discurso que retrata a UE como a tropa de choque do capitalismo e do poder financeiro, tendo promovido a destruição económica, o empobrecimento geral e a imposição de políticas que os povos rejeitam. Esta tese delirante sustenta que o voto britânico representou a recusa do neo-liberalismo ou das barreiras à imigração. Após o Brexit, a Europa será obrigada a reformar-se num sentido que a fará mais solidária, terminando todos os muros e a asfixia da austeridade. Há outra versão, que tem feito o seu caminho: a União Europeia é um pesadelo burocrático que não serve para nada. Quem não obedecer, leva. Os países deixaram de mandar na máquina. O criador perdeu o controlo do monstro e ele anda pelas aldeias a assustar criancinhas.

Estas duas versões ignoram os benefícios que o País obteve ao longo dos últimos 30 anos. Portugal nunca na sua História enriqueceu tão depressa, nunca se modernizou tão depressa. Recebemos uma montanha de dinheiro, transformámos a economia, a sociedade mudou em todos os sentidos, nunca fomos tão livres. Hoje, exportamos facilmente para um mercado de 500 milhões de consumidores, circulamos sem limitações por um espaço geográfico gigantesco, temos investimento externo como nunca antes vimos, para não falar na adopção de leis modernas e da necessidade fundamental da estabilidade política e da segurança. Sem Europa, o País seria muito mais pobre. O fim da UE representaria a destruição de centenas de milhares de empregos, a falência de milhares de empresas, o regresso ao caos político e ao endividamento crónico. E, apesar de tudo isto ser tão evidente, parece que uma parte do País deseja regressar aos tempos da Primeira República, outra parte aos tempos do orgulhosamente sós.

publicado às 19:10

A iminência do Brexit (3)

por Luís Naves, em 18.06.16

A Europa é hoje uma rede de interesses nacionais comuns cujo não cumprimento num caso implica a ruptura em todos os outros. Um país que resista a uma determinada política europeia condena-se ao isolamento e à perda de muitos outros interesses não contestados. Portugal ilustra bem o dilema: não quer fazer as reformas exigidas pelo princípio de contas externas e orçamentais equilibradas, previsto do Tratado Orçamental, e será obrigado a fazer essas reformas, com mais ou menos sacrifícios. Portugal não pode sequer sonhar numa saída da UE, pois perderia os fundos comunitários e o acesso ao mercado único, além de qualquer influência no seu destino. No fundo, só países ricos podem sair da UE, mas qualquer movimento nesse sentido será sempre pouco convicto. A saída do Reino Unido da UE até pode ter menos consequências do que se espera, mas a verdadeira crise existencial para os europeus será a eventual vitória de Marine Le Pen nas presidenciais francesas da próxima primavera, algo que provavelmente conduzia à ruptura do eixo franco-alemão. As sondagens sobre o referendo britânico sugerem a profunda divisão do eleitorado, pelo que o resultado final será tangencial e insatisfatório. Uma pequena vitória do Brexit iniciará uma negociação de saída em que um dos lados está em posição de fragilidade; o cenário oposto dará origem a um novo referendo dentro de alguns anos. Em ambos os casos, a dúvida obrigará a União Europeia a fortalecer a sua coesão e a tomar decisões difíceis que têm sido adiadas por falta de vontade política.

publicado às 11:39

A iminência do Brexit (2)

por Luís Naves, em 17.06.16

No caso do eleitorado britânico optar pelo Brexit, é provável que o Reino Unido tenha graves problemas: a Escócia poderá separar-se, os ingleses que vivem na UE ficam menos protegidos, a médio prazo as exportações vão sofrer, haverá turbulência financeira imediata e quebra no investimento. As dificuldades podem até ser maiores, mas ninguém sabe ao certo. A pouco e pouco, os ingleses perderão o acesso total ao mercado único europeu e terão de renegociar acordos comerciais com países terceiros. Pode não ser uma calamidade, mas não será um piquenique. O Brexit tem razões de emoção e de cálculo político, pois muitos eleitores estão a ser convencidos por argumentações pouco sólidas (queremos o nosso país de volta) e as ambições políticas de Boris Johnson foram um factor crucial da campanha. A crispação política mostra divisões sociais preocupantes.

E o que muda na Europa? Muda muita coisa. O eixo franco-alemão fica mais forte e os europeus terão de avançar com mais integração, acelerando a construção do mercado único, tentando resolver a questão migratória, reequilibrando os poderes nacionais e resolvendo de vez a crise das dívidas soberanas e os problemas da banca. A Alemanha será indiscutivelmente mais forte e até se pode admitir que a UE restante pode enfrentar de outra forma o desafio colocado pela Rússia, pois haverá menos entusiasmo pelas sanções a Moscovo. Algumas mudanças serão imediatas, outra exigem tempo, pois o Brexit, a confirmar-se, será um longo processo político, repleto de negociações delicadas.

publicado às 11:23

A iminência do Brexit (1)

por Luís Naves, em 13.06.16

Do ponto de vista político, o Brexit tem, para já, uma consequência: a Alemanha e a França serão mais fortes no contexto da UE sem o Reino Unido (Berlim já está a fortalecer-se antes do Brexit, com os investidores a pagarem para comprar dívida alemã). E o erro dos europeus não foi criar uma moeda única, teoricamente necessária para sustentar um mercado interno, mas a pressa com que se criou o euro, sem instituições, englobando países sem preparação, o que levou ao não cumprimento das regras que tinham sido definidas. Durante a crise das dívidas soberanas, a cláusula de excepção de que beneficiava o Reino Unido afastou Londres das decisões cruciais da União Europeia sobre zona euro, e era uma questão de tempo até que a corda rebentasse. Simplesmente, não era possível manter uma situação em que, chegados aos assuntos quentes, os líderes europeus convidavam o líder britânico a sair da sala. Ele queria manter-se na discussão, dizia que Londres era a praça financeira onde tudo se passava, mas era ilógico que participasse em decisões sobre a moeda única dos outros. Parece contra-intuitivo, mas se o 'sim' vencer o referendo e o Reino Unido quiser ficar na UE terá de ponderar a sua futura adesão ao euro. Enfim, o Brexit pode acabar com a União Europeia, mas não é inevitável que isso aconteça. Pelo contrário, o processo de reforma torna-se inevitável, o que termina de vez com as hesitações. No final, pode até resultar uma entidade mais integrada e coesa.

publicado às 18:04


Autores

João Villalobos e Luís Naves