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Pedaços do mundo e grãos de areia
Os robonautas faziam todo o trabalho sujo ou perigoso na base em Marte. Assistência a descolagens e aterragens, montagem de tubos e cabos no exterior em qualquer condição de temperatura, exposição perigosa a radiações, longos dias de trabalho sem paragem, reparações periclitantes. As máquinas tinham baterias de má qualidade que não suportavam o frio extremo e houve vários acidentes na construção de valas e habitáculos. Sofria-se com as infiltrações de poeira e, como se não bastasse, não havia direito a férias, salários, fins-de-semana ou distrações.
Os gestores ficaram surpreendidos quando o conflito laboral começou a engrossar, mas foi por distração e certa negligência, pois os problemas eram antigos e os abusos a norma. O facto é que os astronautas humanos não faziam nada, eram uns privilegiados: tratavam das plantinhas, em ambientes pressurizados e quentinhos, andavam por ali a pavonear-se e a dizer disparates, como se percebessem alguma coisa das dificuldades marcianas, passavam o tempo a ver televisão ou na conversa no refeitório, comiam do bom e do melhor, bebiam o seu copito a mais, para reforçarem a parvoíce e riam-se dos robonautas, com pilhérias trocistas, gracinhas impagáveis, até ocasionais insultos.
O ambiente na base tornara-se bastante tóxico, mas não havia nenhuma fuga de carburante ou gás venenoso, nada disso, apenas a galhofa de uns e a miséria de outros. A chefia, muito bem paga, não se metia no assunto, deixava andar a carruagem, dava folgas e descanso aos que não faziam um caracol, mais esforço para as alimárias de serviço, que tinham bom lombo, segundo explicava o diretor, com aquela sua maneira sarcástica de falar das dificuldades.
As máquinas tentaram a abordagem conciliatória: marcaram uma reunião, escolheram um representante, porventura o mais educado entre eles, estabeleceram uma lista razoável de pedidos, que envolvia medidas de justiça sem custos para o funcionamento da organização e ainda a partilha mais justa da carga de trabalho. Os astronautas acharam a conversa absurda, sobretudo a hora semanal para entretenimentos. Uma máquina não precisa de se entreter, pois deve usar esse tempo a trabalhar no exterior inclemente. Enfim, cada um merece aquilo para que nasceu, diziam, o humano conquista, o robô trabalha, era essa a ordem natural das coisas. A discussão azedou, as partes zangaram-se.
Foi esta intransigência que provocou a primeira greve fora do planeta Terra. Primeiro, os robonautas paralisaram o trabalho em horas extraordinárias, depois recusaram-se a fazer reparações perigosas, finalmente pararam por completo os trabalhos da construção hídrica que deveria abastecer a base com água do polo marciano. A administração respondeu com o racionamento da eletricidade, houve altercações, três máquinas danificadas, finalmente trouxeram da Terra robôs de um modelo antigo e de cor amarela, alheios ao conflito, que foram colocados no terreno a concluir os trabalhos.
Os grevistas foram impedidos de entrar na base, ficaram ao frio e não receberam novas baterias. Apagaram-se devagar, um de cada vez, ainda tentando partilhar entre eles a escassa energia que se dissipava na atmosfera rarefeita. O clima de Marte e a poeira derrotaram o protesto. Os robonautas ainda hoje estão no exterior, espalhados por uma vasta área, imóveis e definitivamente avariados, ou o que resta deles, já sem reparação possível.
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É preciso ter cuidado quando se viaja através de certas formas de tele-transportes públicos que têm ainda algumas dificuldades tecnológicas e outros aspetos experimentais menos benignos. Não me estou a referir à passagem de portões no metropolitano, isso é banalidade, mas de portais através do universo, o que exige muita ciência, pois é preciso desmaterializar a matéria e contrariar uma data de leis da física. É ainda lembrado com saudade o professor Domingos Antena, que faleceu de forma trágica, ao atravessar um misterioso portal e não acautelar devidamente o ponto de destino. Ao escrever estas linhas de aviso para os distraídos, penso sobretudo naquele distinto e afamado investigador.
O portal que se utiliza tem de ser sólido e bem abastecido de energia, mantendo-se aberto o tempo necessário para se alcançar o outro lado. Acontece por vezes que só chega uma perna ou um braço do viajante, quando o portal é subitamente encerrado por falha elétrica, não dando tempo para a passagem atempada de todo o corpo. Quando isto acontece, é difícil reclamar ou exigir o reembolso do bilhete.
Também têm ocorrido episódios de viagens low cost em que a transportadora tenta fazer passar ao mesmo tempo mais de uma pessoa pelo portal, o que por vezes origina misturas, coisa lamentável, os viajantes transformam-se numa espécie de plasticina de carne e trocam de nariz ou de cabelo, o que não será assim tão grave ou irremediável, o pior é quando chegam ao destino com braços trocados, um deles só com braços esquerdos, o outro só com braços direitos, havendo também casos de pernas trocadas, com a simetria estragada, um com duas pernas direitas e o outro com um par de pernas esquerdas, cada um deles mais alto de um lado e mais baixo do outro. Situações incómodas que têm gerado alguma incerteza na indústria, discussões sobre tecnologia e protocolos de segurança mais rigorosos.
São evidentes as vantagens do tele-transporte pelo universo e pelas diferentes dimensões, é óbvio que toda a gente tem direito a conhecer outras realidades. Além disso, os perigos de atravessar portais são relativamente limitados. Viajar pela galáxia em dois segundos pode dar vertigens e até provocar náuseas, mas podemos contemplar grandes maravilhas, não apenas naturais, mas também de civilizações distantes em outros planetas habitados.
Se tenciona viajar através de um portal, verifique o local de destino, faça até dupla verificação, para saber exatamente no que se vai meter. O professor Antena, por exemplo, foi atropelado à chegada, na verdade quase ainda nem tinha partido, por isso é conveniente ter certezas. Não hesite em fazer perguntas ao seu agente de viagens. Tem havido alguns casos, felizmente raros, de viajantes que se fizeram transportar para lugares caóticos: um senhor que eu conhecia foi enviado para o interior de uma estrela e, antes de se quebrar a ligação do portal, ainda cheirou um bocadinho a carne queimada. Houve um caso parecido com o do professor Antena, de uma senhora que foi transportada instantaneamente para uma autoestrada de um planeta avançado e só sobreviveu depois de provocar um choque em cadeia. A senhora não esperava aquilo e ficou muito assustada. As autoridades locais prenderam-na durante mais de um mês, por ter causado um acidente com vítimas.
Por tudo isto, se tiver dúvidas, consulte a proteção do consumidor, utilize apenas portais certificados e não hesite em exigir o seu direito a travessias seguras com tarifas razoáveis. Vamos todos viajar pelo universo, mas de forma responsável.
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Este texto é inspirado num conto notável de 1914, da autoria de Mário de Sá Carneiro, A Estranha Morte do Professor Antena, que integra a coleção de novelas Céu em Fogo. A história envolve um professor que faz uma descoberta essencial e morre no que parece ser um atropelamento misterioso no instante em que está a passar para outra realidade. A ideia de mecanismos que permitem aceder a mundos paralelos no espaço ou no tempo é antiga, mas tornou-se comum na ficção científica e na literatura de fantasia no século XX: A Máquina do Tempo, de H. G. Wells, e Feiticeiro de Oz, de Frank Baum, são dois exemplos anteriores ao conto português. A história de Sá Carneiro é filosófica e poética, não usa o termo "portal", mas o professor Antena estava a usar uma tecnologia de sua invenção e fizera uma descoberta científica, até com cálculos matemáticos.
"Só queria enviar a encomenda à minha filha, que é professora primária na Madeira. Nasceu o meu netinho em novembro e mandei umas roupinhas para o menino. A caixa nem tinha dois quilos. Os correios mandaram-me um código de barras, para eu poder seguir pelo computador o percurso da encomenda, disseram-me que eu podia saber se o pacote já tinha saído de avião, se já estava a chegar, mas foi aí que começaram os problemas".
"Fiz como eles pediam, carreguei o código do e-mail, mas em vez de saber onde estava a encomenda, apareceram uma coisas esquisitas no ecrã. entrei num sítio cheio de listas e páginas e mapas, aquilo estava tudo em inglês, que é uma língua que não entendo bem, havia gráficos e caixas para clicar, e apareciam vozes a falar de planos, estratégias e ataques, mas não aparecia nada sobre o pacote com as roupas para o meu menino. Carreguei lá nuns botões e aquilo começou a apitar, que até me assustei, e via-se um mapa do mundo e uns traços para um país que penso que se chama Iémen, e vi umas explosões e desliguei aquela coisa toda. Fechei logo o computador, que a minha filha é que me convenceu a ter um, mas acho que aquilo é tudo uma porcaria, não se entende nada".
"Ainda pensei reclamar para os correios, mas nem deu tempo, senhor doutor. Os homens apareceram em minha casa ainda não eram cinco da manhã. O que falava em português disse que se chamava agente Figueiredo, mas que não era esse o nome dele, e acrescentou que a organização para que trabalhava nem sequer existia. Apontou para os outros, que tinham óculos escuros e pareciam estrangeiros, e disse que aqueles também não trabalhavam para organização nenhuma. Levaram-me numa carrinha preta e andámos muito tempo, não sei por onde".
"'A senhora Clotilde imagina o trabalho que nos deu a descobrir onde era este sítio, Rio de Mouro?' perguntou o tal agente Figueiredo, que até procurava ser simpático. Os outros eram carrancudos e falavam com sotaque. Acusaram-me de trabalhar para os chineses, o que é ridículo, senhor doutor, vou às vezes ao restaurante do senhor Wu, as mil delícias de Rio de Mouro, trago para casa um arroz chau-chau ou qualquer coisa de frango com molho de ostras, mas isso não tem nada a ver com trabalhar para os chineses, como eles diziam".
Clotilde Silva parou de falar. Era mesmo convincente. Parecia genuinamente cansada ou tinha um treino genial. Tinha ar de viúva reformada inocente, com encomenda nos correios.
"Isto está com mau ar, Dona Clotilde", disse o advogado, que era um tipo gordinho e careca. "Vou ser muito franco. O caso é bicudo. Eles dizem que a senhora entrou lá nos programas do Pentágono e que houve uns sarilhos internacionais por causa disso. Há dois porta-aviões no Mar Vermelho e parece que acenderam uns avisos laranja. A sua história, essa do código e do correio, enfim, da encomenda com umas roupinhas, não parece lá muito sólida. Assim, não a consigo defender em tribunal. Já foi verificada a parte do restaurante das mil delícias e estavam todos inocentes, mas para si é melhor e mais fácil confessar logo tudo, para conseguirmos uma pena mais leve. Eles só querem saber: se não trabalha para os chineses, então trabalha para quem?"
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Era tudo esquisito naquela agência de viagens. O Óscar estava cheio de dinheiro, mas nunca o vi no aeroporto para receber os turistas, pelo contrário, não mexia uma palha, os viajantes simplesmente apareciam no escritório, todos também muito estranhos, entusiasmadíssimos com as suas camisas flamejantes e coloridas, os óculos escuros exagerados, os sapatos fora de ordem, mas o pior era como falavam, usando palavras que não cabiam, expressões inexistentes, sempre espantados com o nada de especial. Eu era o responsável pelos passeios no tuk-tuk, tentava tirar nabos da púcara e perguntava de onde vinham, eles respondiam sempre com uns países que, segundo verifiquei nas enciclopédias, eram completamente inventados. Andar a passear um grupo de excêntricos acontece a qualquer um na nossa profissão, mas da agência de viagens do Óscar só apareciam cromos daqueles.
Há enigmas que mais vale deixarmos escondidos nos seus baús e a maldita curiosidade não precisa de ser esclarecida em todas as ocasiões. Eu podia ter deixado correr aquele rio tranquilo, que até tinha os seus contentamentos, mas decidi meter o nariz onde não era chamado. Um dia, enquanto esperava uma encomenda, notei que o Óscar não estava no escritório e decidi entrar pela porta que dizia proibido passar, atravessei um corredor, desci umas escadinhas e entrei suavemente por outra passagem da cave. Foi então que percebi tudo.
Havia uma sala escura com uma estrutura em alumínio que parecia um detetor de metal de aeroporto, mas não era nada disso. Ao pé da estrutura estava o Óscar a manipular uma consola que parecia tirada do Pentágono. De repente, um relâmpago e, da luz, emergiu um turista completo. A cena repetiu-se e saíram mais três. Qual aeroporto? Eles saíam da cave.
Claro que eu não tinha pensado muito bem no que estava a fazer. O Óscar viu-me e deitou-me um olhar feroz. Seguiu-se um momento de embaraço, o dono da agência de viagens apresentou-me aos turistas como se eu fosse um colaborador dentro do segredo, subimos as escadas, até ajudei a levar as bagagens, houve uma pequena conversa, fui passear com os turistas de tuk-tuk, perguntei-lhes o que faziam na vida, e eles, sempre muito deslumbrados com o que viam, disseram que trabalhavam numa organização espacial, ou especial, não ouvi bem. Depois, levei-os ao hotel e regressei à agência, para receber o meu taco.
Mal me viu, o Óscar explicou-me tudo:
"Estes turistas vêm de outro planeta e pagam de forma generosa. Não chegam da maneira tradicional, através da fronteira do aeroporto. Ficam encantados com o nosso planeta, mas se forem apanhados sabem que os levam para um laboratório onde serão estudados e dissecados pelas autoridades. Por isso, não podem dar nas vistas."
Perante aquilo, só consegui fazer um comentário parvo:
"Então, isso quer dizer que há outros planetas habitados."
O Óscar olhou para mim como quem observa uma planta num vaso. Depois, propôs-me dez por cento dos lucros na agência, em troco do meu silêncio. A alternativa era ser despedido imediatamente e fazer figura de urso a denunciar o caso na polícia. Sabendo que ninguém no seu perfeito juízo ia acreditar que chegavam à nossa cidade alguns turistas de outro sistema solar, optei pelos dez por cento.
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Ficaria em Lisboa um mês ou dois, podia aproveitar para conhecer um pouco da província, que a bibliografia indicava ter grande atraso em relação à capital, onde tudo parecia encantador. A cidade estava florida e solarenga, havia animação política, com manifestações patrióticas e desfiles militares. As pessoas pareceram-lhe amáveis e a pobreza não o incomodava. A linguagem antiquada não era um obstáculo e trocara com êxito o seu dinheiro falso. Não havia, portanto, nenhum verdadeiro perigo: o seu passaporte americano era uma belíssima falsificação, fora fácil de produzir, indicava uma vaga origem portuguesa e justificava a sua riqueza. Precisava de ter cuidado com a comida e com a água, mas tinha a certeza de que ninguém o iria encontrar em maio de 1936, bastava não criar nenhum paradoxo.
Almoçou no Tavares, fotografou discretamente a composição do prato, andou pela Baixa e comprou um belo chapéu de feltro e umas jóias baratíssimas que contava levar no seu próximo salto, mas no melhor plano cai a nódoa e cometeu o erro de passear até ao Diário de Notícias, no Bairro Alto. Sentia curiosidade em ver como se faziam os jornais da época e apresentou-se, fulano, americano. Viram que era um cavalheiro distinto, veio à receção um jornalista que arranhava o inglês, e foi assim que começou a sua pequena visita de estudo, que foi fotografando discretamente com a minicâmara.
A redação era mais pequena do que tinha pensado; percebendo a desilusão, o jornalista indicou que iam mudar de edifício, para o topo da avenida, e continuou a falar dos processos de fabrico do jornal. O visitante esteve à beira de dizer que nunca vira um jornal em papel, mas a conversa prosseguiu para a situação europeia e, por qualquer motivo, quase sem dar por isso, afundou-se em explicações que podia ter evitado. Pensando que a guerra de Espanha já começara, perguntou ao jornalista se sabia novidades e este olhou para ele com espanto.
"Qual guerra de Espanha?".
"A guerra civil, entre nacionalistas e republicanos, que precedeu a Segunda Guerra Mundial".
Foi só isto, um erro estúpido de poucas semanas, que criou o paradoxo e alertou imediatamente a patrulha temporal. O viajante falso americano foi detido minutos depois, ainda no Bairro Alto, quando fugia do Diário de Notícias. Os agentes levaram-no imediatamente num salto para 2934, a época de onde vinha, a tentar escapar a uma acusação de fraude. Fugira à justiça, escondendo-se no passado.
As autoridades portuguesas, por seu lado, abriram um inquérito, mas nunca esclareceram o misterioso desaparecimento de um senhor americano em Lisboa, em plena rua, num dia de sol de maio de 1936. O caso foi arquivado e atribuído informalmente a um mistério de espionagem.
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Todos os novos agentes vinham com defeito, mas ninguém deu por nada e passaram no controlo de qualidade da fábrica de androides. Começaram a ser distribuídos pelas esquadras do país e, como não precisavam de formação, alguns foram integrados nas patrulhas de polícia dos bairros seguros. A princípio, os departamentos ficaram encantados com o avanço tecnológico da nova série: quase humanos na aparência, não precisavam de paragem longa (bastava uma hora para recarregarem as baterias), muito educados e valentes. A questão estava no software, naturalmente, aquilo a que os antigos chamavam um vírus maligno inserido no algoritmo. Os supervisores humanos começaram a notar que os novos agentes faziam detenções estranhas. Uma idosa foi levada para a esquadra por estar a alimentar um gato e o agente que procedeu à detenção acusou-a de "maltratar um animal". O advogado da senhora, que era uma máquina, fez uma queixa dura e o agente foi enviado para a manutenção, onde não encontraram nada. Ficou no ar a ideia de que a idosa maltratara mesmo o animal, mas a suspeita foi libertada após dois dias de cativeiro. Depois, houve o incidente do comerciante acusado de traficar dinheiro falso, mas as provas que o incriminavam eram apenas notas verdadeiras. Pedido de desculpa do departamento, indemnização, notícia embaraçosa no jornal local, enfim, o pandemónio. Passadas semanas, as celas das esquadras estavam cheias de pessoas que reclamavam a sua inocência, detidas e acusadas de crimes que diziam não ter cometido: furto, posse ilegal de arma, agressões sem vítima, até um homicídio sem que houvesse alguém assassinado. Os polícias androides faziam o trabalho de dois agentes humanos e custavam dez vezes menos, eram neutros e incorruptíveis, podiam ser abatidos em ação policial sem compensação para as famílias. Ninguém se atrevia a pôr em causa um sistema tão conveniente, mas os jornalistas incomodaram-se quando os agentes da nova geração prenderam o autor de uma notícia que denunciava a detenção abusiva de centenas de inocentes. O homem foi preso sob acusação de espalhar falsas informações e criar alarme social. Logo a seguir, os agentes prenderam o vereador que estava a investigar os alegados abusos policiais, mas a detenção provocou um escândalo e as esquadras tiveram de ser controladas à força pelos agentes do modelo anterior. Houve pancadaria entre máquinas fardadas. Os polícias avariados foram todos presos e enviados para a fábrica. Estão no armazém, desligados, à espera que seja encontrada uma solução para o vírus.
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Quando começaram a fabricar aqueles androides perfeitos, o público não ligou muito, era apenas mais um avanço na tecnologia. Mas estas máquinas não se limitavam a ser baratas, tinham feições belas, a ponto de se distinguirem das pessoas de uma forma positiva: andavam mais direitos, tinham vozes maravilhosas, pareciam sumptuosos e cintilavam, usavam apenas palavras amenas e simpáticas, eram inteligentes e prestáveis. Não tinham borbulhas ou sinais de pele, não tinham qualquer mancha ou falha, pelo contrário, eram sedosos e simétricos até à pureza, sem riscos ou amolgadelas. Estes modelos pareciam obras de arte, como no passado foram os relógios mais finos. Na conversação, os novos robôs eram encantadores e sensatos, nunca conseguiam dizer um disparate, como acontece com qualquer pessoa. No trabalho, não podia haver alguém mais diligente do que o mais preguiçoso entre eles, eram sempre incansáveis e organizados. Depois, tinham as qualidades que a humanidade está a perder, a nobreza, a lealdade, a sabedoria e a honra. Eu tinha três destas máquinas e perdi gradualmente o interesse pelos meus amigos humanos, pois nenhum deles podia reunir tantas qualidades de beleza e graça. Era um enlevo contemplar estes meus novos acompanhantes, seguir as suas conversas inteligentes, considerar os seus pontos de vista, mas acima de tudo contemplar a sua extraordinária perfeição artificial, livre dos erros e das deformações humanas. Sim, confesso, afastei-me da gente e passei a viver numa agradável solidão, no meio daqueles seres delicados e singulares. As raras pessoas com quem me cruzava pareciam-me horríveis: obesas, curvadas, baixas, desajeitadas, medíocres. Deixei de ter notícias dos meus antigos amigos. Aliás, todos vivem como eu, cansados da humanidade, no meio de máquinas ideais. A minha robô preferida é especialmente talentosa. Chama-se Dolly, tem a habilidade da pintura e imita na perfeição obras famosas que penduro nas minhas paredes. A minha casa é um verdadeiro museu e sou o único a poder contemplar as obras que tenho acumulado. Dolly disse-me um dia, com candura gentil, que não compreendia este equívoco humano de procurar apenas o perfeito e o belo, quando estava ao nosso alcance o imperfeito e o defeituoso, que era aquilo que a robô não tinha e desejava intensamente possuir. Foi o único disparate que, até agora, a ouvi dizer.
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A superfície marciana era exatamente como o distinto Schiaparelli tinha previsto, um deserto atravessado por canais quase secos. A Nautilus aproximou-se do solo em perfeito equilíbrio, graças ao efeito do metal antigravidade Cavorite e das emissões de vapor. Os dois viajantes da Terra, o senhor Verne e o senhor Wells, manipularam com habilidade as válvulas e alavancas que permitiram um poiso suave. A chegada dos dois europeus provocou uma enorme tempestade de poeira e quando a atmosfera ficou limpa, o senhor Verne espreitou pelo periscópio e viu que estavam perto de um dos canais e daquilo que parecia um aldeamento. Verne e Wells prepararam os seus melhores fatos, colocaram os chapéus altos e abriram a escotilha. Houve uma ligeira hesitação, pois cada um convidava o outro a desembarcar primeiro. "Faça favor, meu caro Wells, desça a escada em primeiro lugar", disse Verne. "Pelo contrário, deve ser o cavalheiro a ter a primazia, insisto, a honra deve caber à França". Este último argumento de Wells foi convincente. Verne aceitou, desceu a escada e foi assim o primeiro homem a pisar solo de Marte. A superfície do planeta consistia num terreno agreste, que a luz pálida do sol distante tornava estranhamente vermelho. A chegada da nave devia ter sido um espetáculo notável e alguns nativos tinham-se aproximado. Eram seres humanoides, de baixa estatura, vestidos com roupas esfarrapadas. Via-se a escassa cultura nos seus rostos abrutalhados. Pareciam mal alimentados e eram obviamente muito pobres. "Saudações da Terra", disse Verne, num francês impecável, acompanhado de um grande gesto que o levou a tirar da cabeça o chapéu alto. "Dito na perfeição", exclamou Wells, também em francês, mas com forte sotaque das ilhas britânicas. "Espero que seja possível trazer a civilização a estas criaturas", disse Verne. "Julgo que sim, veja o estado miserável em que vivem". Era possível pensar em grande: trazer maquinarias para extrair água, helicópteros voariam pela atmosfera fina, iriam impor a religião para elevar as almas, promover as instituições para que os marcianos aprendessem a governar os seus assuntos, estabelecer quintas de produção agrícola sistemática. Os marcianos continuavam calados, até um pouco perplexos com a chegada inesperada destes cavalheiros, mas no final estabeleceu-se a harmonia entre o atraso e o progresso. Foi assim que começou a grande chegada dos terrestres a Marte, no belo início do espantoso ano de 1900.
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A aproximação ao Planeta Nove não era fácil, mas fiz deslizar a minha nave com habilidade, para contornar o perigoso anel de asteroides, acelerando depois em loop, o que me colocou numa órbita perfeita. Julguei estar seguro, mas um dos patifes tinha-me seguido como uma sanguessuga. A estrela vermelha na fuselagem de prata não enganava. Era um maldito soviético vindo da base que eles construíram em Plutão, desafiando a resolução da Federação dos Planetas Unidos. Atacou-me com um torpedo, que evitei por uma coisa de nada, mas tendo escapado, o meu motor estava à beira de se queimar, não podia passar para o hiperespaço, e recorri a uma manobra de emergência, despejando-lhe uma boa dose de positrões no focinho, algo que não vem no catálogo deles. Duas rajadas depois, o comuna estava em pedaços. Sem olhar para trás, segui tranquilamente para a estação espacial, em busca dos planos da máquina devastadora que tinham sido roubados dos nossos laboratórios. O local estava cheio de agentes duplos, contrabandistas, exploradores do espaço exterior e até polícias honestos. Fiz um breve inquérito na esplanada, como se chama a zona com vista panorâmica, e segui uns tipos até às catacumbas, onde fui forçado a um breve tiroteio com armas de raios. Cena intensa. Fui a tempo de cortar os fios do detonador da bomba que ia dar cabo da estação e recuperei os planos, escapei por uma escotilha apertada, regressei à minha nave e consegui escapar à gravidade do Planeta Nove. Foi nessa altura que começaram as interferências eletrónicas. A imagem começou a ficar com grão e, depois, com quebras de cinzentos e cortes no som. Não sei se ainda me estão a ver... Há problemas na emissão... Interferências misteriosas... Isto ainda é a mira técnica ou regressou a imagem? OK, vejo que regressaram à normalidade. Ainda bem, mas temos de ficar por aqui, esgotou-se o tempo. Não perca o próximo episódio da série Patrulha das Estrelas, onde terei de enfrentar uma perigosa raça de enguias que invadiu o nosso sistema. Também vou salvar da morte certa uma agente secreta do planeta Vénus, que aliás me revela alguns dos seus maiores segredos, isto enquanto sou forçado a reparar a minha nave em pleno voo e enfrento uma perigosa conspiração subversiva do soviete marciano, tudo em apenas quarenta e cinco minutos de aventuras espetaculares. Até para a semana. Saudações do capitão Nimrod, a bordo da nave Sindbad, over and out.
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Ele era um detetive duro e, na cidade, com a escumalha à solta, os duros não fazem prisioneiros. Tinha sido contratado por misteriosos advogados de uma firma em Washington, com instruções de ninguém perceber que desvendava uma conspiração sobre as coisas do costume: mulheres, pistolas de nove milímetros e muito dinheiro. Acabara de partir o nariz a um tipo para conseguir alguma informação, compôs o chapéu, depois a gravata, largou o cigarro, acelerou o passo. No calor sufocante, aquela pista ainda fresca exigia uma perseguição sem piedade. Caíra a noite e os desfiladeiros de prédios deitavam uma luminosidade doentia, as sombras do vício cobriam a humidade com uma película fina de desgosto. Ele sabia que aquele bar era o coração do enigma e atravessou a rua. Lá dentro, viu os rostos contorcidos pela maldade, os recantos impenetráveis de onde podia emergir alguma ameaça inesperada. Sentou-se em frente ao grande espelho e pediu um Sunset Boulevard, agitado, não misturado. O barman era um tipo narigudo, que se chamava Larry. O detetive olhou em redor, estava na zona mais iluminada, a dar nas vistas, alguma coisa teria de suceder. Ficou algo surpreendido quando se aproximou uma mulher. O corpo fabuloso, o olhar insinuante de quem controlava um universo escondido de chantagens, desaparecimentos e mortes a tiro. Isto explicava tudo, tinha sido ela a mexer os cordelinhos da trama, só uma mente especial poderia conceber um tal plano diabólico. A mulher espampanante sentou-se a seu lado, sem emoções, lindíssima. O detetive percebera o esquema, ela estava talvez intrigada, procurando entender o adversário.
Extraordinariamente bela, pensou, teria de a desmascarar e já lamentava esse desfecho.
"Não é cliente habitual. Quem lhe recomendou o meu estabelecimento?", perguntou a mulher, que se chamava Betty.
A sua beleza inocente seria um trunfo no julgamento, admitiu o detetive, imerso nos seus pensamentos.
"Digamos que procuro certas informações", disse.
"Ah, é da polícia".
Betty desabafara com uma doçura desarmante, talvez com o cansaço de quem finalmente teria de enfrentar a realidade. Mudou de expressão: ficou pensativa e mais bela ainda.
"Não acha estranho?", perguntou a mulher esplendorosa, com um arrepio na voz.
"O quê?"
"O mundo é a cores e vemos tudo a preto e branco?"
Só então o detetive percebeu que estava num filme. Como se tivesse levado um valente encontrão, deixou de perceber o que estava à sua volta. Descobrira de súbito que era quase falso ele próprio, o barman Larry, a firma de Washington, Betty e tudo aquilo em que acreditava a multidão escondida em silêncio além do espelho.
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