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Pedaços do mundo e grãos de areia
Escrevi num livro de apontamentos algo que não cheguei a usar: “Vivemos numa farsa, as pessoas ficam muito contentes com as pequenas alegrias da satisfação imediata, com aquilo a que chamam felicidade”. Não tem data, mas aplica-se a um filme que vi pela primeira vez, A Ultrapassagem, de Dino Risi, italiano, dos anos 60, que pega neste tema. O filme funcionava como antecipação do mundo que aí vinha, superficial e irresponsável. O Ocidente mergulhou, entretanto, numa realidade virada para a satisfação de impulsos, com uma espécie de crónico défice de atenção, como o daquelas pessoas que estão sempre à procura de novas sensações e não conseguem parar essa busca transformada em droga; pessoas incapazes de se focar no essencial, aliás, como o protagonista, interpretado por um extraordinário Vittorio Gassman. Estão-se nas tintas para o resto, para a sociedade, para a família, para tudo o que esteja fora do seu umbigo, a única coisa que lhes interessa. Impossível não pensar na forma aparentemente fácil como tudo aquilo flui, ao contrário do que acontece com as xaropadas contemporâneas, mais a sua inaturável tendência para a moralidade (a série da Amazon que segue o senhor dos anéis tem heróis de ação femininos, elfos negros e hobbits com pronúncia irlandesa; vi um episódio e fugi). O mundo velho é como as canetas de tinta permanente, que já não servem para nada: objetos estéticos para colecionadores, mas ninguém escreve com peças de museu. Um eletricista veio aqui a casa reparar umas coisas e comentou a qualidade dos interruptores: “Isto era muito bom, mas já não se faz. Deixaram de fazer o que era bom”. Não é só nos interruptores: deixaram de fazer bons filmes e já não sabem ir à Lua. Já ninguém escreve com canetas a sério, podia ter dito o bom eletricista.