
"Falei por falar, na brincadeira", disse o desconhecido, "felizmente, a perfeição não existe e a felicidade também não".
Olhou para mim com expressão que desmentia o tom de ironia. Pareceu-me que ele apenas tentava corrigir a primeira afirmação, que eu ouvira correctamente. O desconhecido afirmara com enorme convicção que naquele pátio e naquelas ruas não havia ninguém feliz, o tipo de frase pedante de quem quer desabafar sobre os seus próprios estados de alma. Não posso garantir que as pessoas que exibiam euforia naquela rua estivessem todas mesmo alegres, por vezes era evidente que alguns foliões tentavam fingir, para poderem acompanhar o movimento da multidão, da massa de gente que pulava e cantava, entre pares a dançar no meio do arraial, luzes penduradas entre as casas, numa algazarra de cores e de cheiro a sardinha assada. Sim, era provável que houvesse por ali máscaras de felicidade, como acontece nos carnavais, onde cada um pode ser alguém diferente e simular por momentos que não está agarrado a si próprio.
A afirmação do desconhecido, apesar de tudo, era exagerada. Via-se felicidade, beleza, o melhor da humanidade.
"No fundo, tudo isto é falso", gritou ele, na minha direcção, a gesticular.
O barulho era intenso, o homem estava visivelmente bêbado, sentara-se na mesa que eu ocupara com os meus amigos e onde havia um lugar vazio. Ninguém se importava com essas familiaridades, típicas das festas de santos populares, nem me lembrei de dizer que o lugar estava ocupado, o que era evidente mentira, mas podia ter funcionado e ele iria chatear outra mesa. Não conhecia o intruso, até julguei que fosse amigo de um dos meus acompanhantes, mas todos eles o ignoraram, porventura pensaram que quem assim se sentava connosco, com tal familiaridade, era meu conhecido. Para mim, era apenas um tipo sem nada de especial, com olhar meio turvo, que podia conter algum ressentimento pela alegria geral do baile ou talvez o ligeiro desprezo de quem se sentia acima do mundo. Teria pouco mais de quarenta anos, mas podia ser envelhecimento precoce, mantinha sorriso hesitante, daqueles em que apenas metade da boca vai para cima; meio sorriso, digamos assim.
"Você, que é uma pessoa que compreende as coisas, deve saber que fingir a alegria que não se tem é uma coisa cansativa", disse ele. “Estamos todos entretidos nessa fadiga”.
Só então reparei nas mãos finas, as unhas limpas, talvez de trabalhador de escritório.
Não lhe respondi. Olhei em volta, como quem estudava o acerto da explicação. A multidão não se cansava, havia uma corrente eléctrica, uma exaltação de dança, o movimento de onda grossa, de mar encapelado, alguma excitação a crescer, como se fosse a maré.
"Foi quando a vi no vestido branco", continuou o intruso, "que me dei conta do vazio na minha existência e de tudo aquilo que me passa ao lado e que não posso sequer tocar, do imenso infinito de tudo o resto que completa a minha insignificância".
Devo ter fechado os meus olhos por um instante, para poder apreciar o ruído da rua da alegria e ponderar naquilo que o desconhecido me dissera. Pensei que podia concordar com ele, perguntar-lhe o nome, saber o que fazia na vida, porventura acrescentar uma ideia simpática que não soasse demasiado condescendente e que o consolasse de alguma maneira, embora sabendo à partida que não haveria esperança de conseguir dizer algo que pudesse aliviar mágoas tão profundas.
E quando abri os olhos, o lugar à minha frente estava vazio, nem tive tempo para pensar nisso, foi instantâneo, lembro-me que foi então que começou toda a barafunda, as pessoas pegavam-se, havia empurrões e insultos, gritos, a alegria cintilante transformou-se num motim e, quando eu e os meus amigos procurávamos sair dos atropelos, caí por terra e devo ter batido com a cabeça numa das mesas improvisadas na rua, ou numa cadeira, não sei se cheguei a perder os sentidos, houve pessoas que me pisaram, alguém me reergueu do chão, e foi então que vi aquela mulher no seu vestido branco, muito tranquila junto à parede de uma casa, aconteceu num breve instante, vi a beleza inacessível que as luzes coloridas da rua banhavam de felicidade e bem-aventurança que não eram deste mundo, ou antes, talvez fossem deste, embora não daquele. Ela estava imperturbável, enquanto as pessoas corriam à sua volta, uma estátua de rainha.
Empurrado por uns e outros, perdi-a de vista. Os meus amigos tentavam arrastar-me para segurança, estavam alarmados com o sangue que me corria da cabeça. Só tive noção disso mais tarde, corremos pelo labirinto das ruas estreitas, outras pessoas saltitavam ao nosso lado, todas aos gritos, até chegarmos a uma praça mais calma, e aí já não havia a mesma confusão.
Pareceu-me então ver o intruso e estiquei o braço, apontei o dedo, pedi aos meus amigos que o trouxessem:
"O fulano que se sentou à nossa mesa, preciso de falar com ele, chamem-no".
"Qual fulano?", perguntou um dos meus amigos.
À nossa volta estavam dezenas de pessoas.
"Ninguém se sentou à nossa mesa", disse outro dos meus amigos.
"Chamem-no, preciso de saber..."
O meu apelo foi inútil. Olharam para mim, preocupados, não fizeram nada do que eu pedia. Ou antes, pensaram que havia algum trauma grave e levaram-me para o hospital. Passámos lá o resto da noite. Os meus amigos foram espectaculares, esperaram que eu tivesse alta e ainda me ampararam até casa. Garantiam que não tinham visto ninguém desconhecido sentado na nossa mesa. O lugar na minha frente ficara todo o tempo vazio. Era número ímpar. Não sei se me lembrei disto tudo depois de bater com a cabeça, ou se foi antes.