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Aqui posso escrever o que quiser

por Luís Naves, em 11.06.22

Aqui posso escrever o que me apetecer. Ninguém vai ler e, se alguém vier ler, não terá qualquer surpresa. Tenho pensado muito na minha escrita. Tentarei não abandonar mais a literatura. Talvez já não consiga. As notícias são banalidades, quase sempre coisas falsas que todos repetem. O estilo perde-se naquele registo de lugares-comuns. Os diários podem ser relatos dos acontecimentos (mas isso só faz sentido se quem escreve é um dos raros alfabetizados de uma sociedade; estava a pensar nos velhos diários escritos por pessoas comuns, os quais deixam claro o que pensavam os contemporâneos de cada época). Há ainda diários íntimos, que só cada um pode escrever, mas são algo pretensiosos: ninguém é tão sincero que não minta um bocadinho sobre os seus sentimentos, ninguém é tão sincero a ponto de presumir que os seus textos jamais terão leitores e, por isso, não existe em diários íntimos a autenticidade absoluta do pensamento e devemos perdoar certas cedências à posteridade e aos amigos. Por falar nisto, em fio de ideias, estava a refletir, pouco antes, meio ensonado, sobre o carácter premonitório da arte. Os melhores livros antecipam de maneira inconsciente as grandes verdades do futuro. Não existe qualquer pista sobre o mecanismo, que devia assustar os seus dotados (Dick, Simenon, Verne, entre outros gigantes). Kafka imaginou um romance que foi vivido por muita gente apenas anos depois da escrita, durante o Holocausto e o terror estalinista, pessoas que não sabiam o crime de que eram acusadas, cheias de esperança de esclarecer o equívoco, incapazes de compreender que não era preciso terem praticado um crime para serem culpadas. Algumas destas vítimas, sem dúvida, talvez tenham recordado nos seus últimos instantes aquele estranho romance com título O Processo, que tinham lido anos antes, que afinal não era uma fantasia, mas algo muito realista, que relatava as suas próprias desgraças. Na mesma lógica, tendo em conta que o essencial da nossa arte é bizarramente pessimista, arte sombria, obcecada pela decadência da civilização, é seguro dizer que nos espera um futuro de colapso. A dissolução das democracias é já óbvia e tudo na economia parece insustentável. Na ordem intoxicada em que vivemos, o desastre está ao virar da esquina.

publicado às 18:54



Autores

João Villalobos e Luís Naves