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Acidente

por Luís Naves, em 05.11.17

Recordei com dificuldade o episódio do acidente de 1975, a pensar nos detalhes quase milagrosos e até improváveis da minha sobrevivência, e então passou-me pela cabeça que não existe qualquer prova de que eu esteja mesmo a viver este instante, o qual pode ser o sonho de alguém que ficou em coma em 1975: posso existir apenas um pouco depois, por hipótese um mês depois, e tudo o que vivi após o acidente não foi mais do que a ilusão e o sonho em fragmentos de um jovem adolescente inanimado na cama de um hospital. Nem sequer este relato prova a minha existência na forma em que julgo existir, pois quando releio o que escrevi pareço notar subtis discrepâncias entre aquilo que julgo ter escrito e aquilo que efectivamente vejo escrito. As duas coisas nunca coincidem: ou a minha memória me prega constantes partidas ou então é a realidade que está alterada e deixou de ser autêntica. As hipóteses de acontecimentos paralelos nestas memórias do acidente são intrigantes, pois se o meu peso fosse apenas ligeiramente maior ou a velocidade do carro um pouco diferente, se os ziguezagues tivessem sido um tudo de nada invertidos ou mais alargados, se em vez de batermos na barreira tivéssemos caído na ravina, se não houvesse por ali pessoas para ajudar, então tudo teria sido diferente, e o que por vezes permite distinguir duas alternativas é quase nada, mais dez quilómetros por hora no momento do choque e estaria morto; e foi decisiva a trajectória daquele pedacinho de vidro, que não teve força suficiente para me tirar uma vista ou que foi desviado num milissegundo por uma colisão com outro fragmento, isto no meio do caos anárquico à minha volta. Enfim, o que aconteceu tinha forçosamente de acontecer daquela forma; e a fronteira entre nada e quarenta anos de consciência é acima de tudo um limite intransponível, talvez o mistério da desordem, ou porventura sou uma alma sem corpo, a flutuar no limbo, ou sou um ser inanimado, estendido numa cama e ligado à máquina, e em certo momento posso despertar e estarei de volta à minha realidade, a verdadeira, e tudo o que entretanto vivi não terá sido mais do que um fio de pequenas mentiras que nunca me aconteceram, de simples farrapos que sonhei e me preencheram a vida inteira.

publicado às 21:50



Autores

João Villalobos e Luís Naves