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Pedaços do mundo e grãos de areia
Percebo um pouco melhor o que significa viver na concha. Tenho uma existência de molusco bivalve, com curtos vislumbres da vida exterior e gasto o meu tempo nestas escritas, que se destinam ao inútil, e em longas reflexões sobre os farrapos da realidade que me chegam através dos filtros da mediação televisiva. Sei cada vez menos sobre o que se passa nos meios onde se tomam decisões, desconheço as discussões das elites e ouço com crescente cepticismo os poucos debates tolerados, onde os políticos do costume repetem as banalidades que se esperam deles. Gasto demasiado tempo a ver notícias na internet, a tentar descortinar para além da agreste paisagem do meu aquário, do qual aliás só vejo uma parte ínfima, pois da minha concha tenho um ângulo de visão limitado. Em compensação, há mais tempo para pensar: ninguém me telefona (este texto foi interrompido pelo telefonema de alguém que se enganou no número e assustei-me com a chamada), posso ler ou passear, entretenho-me com tarefas domésticas, vou anotando o que escrevi em cada dia numas tabelas estatísticas que revelam ritmos um pouco absurdos de trabalho; muitos dos meus amigos desertaram. A vida na concha tem os seus momentos de conforto e os seus problemas. Posso fechar completamente as valvas do exoesqueleto, até não ouvir nada do que venha do exterior, posso abrir ligeiramente e olhar, sempre com receio, a agitação incompreensível lá fora. Oscilo entre esta vontade de viver protegido e a necessidade de sair da casca.