Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]
Pedaços do mundo e grãos de areia
Ao passar duas horas no centro de emprego, vi os sinais da melancolia e do conformismo que alguns pensadores julgam ser a natureza mais profunda do povo português. A senhora que meteu conversa comigo contou-me que muitos desempregados preferiam receber de uma vez o dinheiro a que tinham direito, para abrirem um negócio. Ela sonhava em abrir uma tasca ali numa boa avenida da cidade. Não mencionei as minhas dúvidas nem lhe disse que as tascas da minha rua fecharam todas. Ela continuou a falar do seu sonho, mas não explicou o que eu já adivinhara, que não lhe restava muito dinheiro para receber, apenas mais alguns meses, a um valor diário que não dava para uma refeição normal. Mostrou-me os papéis. No ecrã da televisão, os números avançavam devagar e as pessoas mantinham-se nos lugares, como acontece nos aeroportos à espera dos voos atrasados, sem manifestações de impaciência, excepto no caso de um homem que entrou a falar alto, headphones ao pescoço, aspecto de já andar pela quinta dimensão. A senhora que meteu conversa aproveitou para me dizer que os números andavam devagar por eles serem “psicólogos”. Quem? Os que nos atendiam, respondeu. Eram psicólogos por ouvirem as pessoas. A senha dela estava a dois números do objectivo, mas aquilo ia “engasgar”, disse, sem fatalismo.
Na sala, havia o ruído de conversas em voz baixa, até certa serenidade, à excepção do homem dos headphones, que acabou por sair, a ralhar com o mundo. Lembrei-me de alguém ter dito que este povo é demasiado manso, mas ali não valia a pena fazer barulho. Qualquer perturbação só iria atrasar o avanço dos números, adiando a esperança de quem aguardava a vez. No painel electrónico prosseguia o passo lento das senhas, por vezes engasgando-se a sua boa ordem, mas ninguém se importava muito com a demora num número: cada pessoa na sala esperava também isso para si, que houvesse alguém, por uma vez, a escutar os seus problemas.