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Saudades da nostalgia

por Luís Naves, em 12.12.21

Tenho saudades da nostalgia e já não me interessa o que possa parecer antiquado. Envelheci e sonho com a juventude eterna, sem espaço para transportar na velhice a tralha acumulada durante a vida. Os objetos tornaram-se baratos, acessíveis e triviais. Parece que não tenho lugar para as memórias: elas não cabem na mala, não cabem na casa. As mensagens duram quinze segundos ou duzentos e quarenta caracteres, exigem pouca atenção; leio tantas de uma vez, que as esqueço todas. A arte também é efémera e decorativa: as instalações são desmontadas depois da exposição, as ideias provisórias vão passando, os livros ficam duas semanas na livraria e ninguém os compra; ou melhor, são comprados se os escritores fizerem o pino para atrair a atenção do público, dizendo uma banalidade memorável por mais de um dia. Tenho memória de periquito e voo fascinado por coisas fúteis. A mediatização excessiva implica que em todo o tempo surgem variações da mesma novidade, como variantes do mesmo vírus a causar exatamente a mesma excitação que a anterior variante. Estou mergulhado na repetição monótona e incessante de temas sempre idênticos. Por exemplo, se durante duas semanas não ouvir nada sobre os assuntos do dia, terei no regresso a sensação de que nunca saí do sítio. Uma sociedade sem nostalgias pensa a curto prazo; é tudo estruturado, mas sem rasgo; é tudo defensivo e sem risco. Por isso, as canções na rádio parecem-me todas iguais, formatadas e sem defeitos; é por isso que os protestos me parecem um ritual sem alma, com emoções falsas; é por isso que me atrai o entretenimento desistente, com jogos de futebol decalcados uns dos outros, com simples variações das mesmas peripécias. A sociedade contemporânea é como um carro atascado na lama: lá dentro, para passageiros como eu, há imenso barulho, sensação de poder e de movimento; na realidade, o veículo já está condenado à estagnação.

publicado às 11:01

Daqui a vinte anos

por Luís Naves, em 19.11.21

Como será o mundo daqui a vinte anos? O exercício de imaginação tem elevado grau de incerteza, mas é provável que o Ocidente ainda esteja a discutir a sua decadência, embora já sem grandes ilusões. A China será o país mais rico do mundo, um colosso criado pela segunda globalização, a dominar as subtilezas do poder no século XXI. Os Estados Unidos talvez ainda possuam a maior força militar, mas o talvez é necessário, pois não sabemos os efeitos da próxima crise financeira, da qual estaremos a recuperar com dificuldade. A federação europeia, como de costume, estará a iniciar a sua enésima cimeira decisiva. Daqui a vinte anos, ainda estaremos a falar da ameaça iminente das alterações climáticas, das desigualdades e das migrações, do custo da alimentação e do desemprego, da pandemia. Falaremos de estados falhados, do terrorismo extremista, da ruína nos paraísos socialistas, das expedições a Marte, de literatura pós-moderna e do noticiário superficial; haverá banalidades e coisas sérias, sonhos e pesadelos, ideias novas e imitações, recuos e avanços; as pessoas vão continuar a divertir-se e a chorar, distraídas com os seus telemóveis de bolso de oitava geração; os saberes velhos serão esquecidos e os novos terão o seu momento de glória. Como será o mundo daqui a vinte anos? Enfim, bastante parecido com o mundo de hoje, embora com outros facínoras e heróis, suficientemente reconhecível para que seja também assustador e desmedido.

publicado às 10:59

O grande cansaço

por Luís Naves, em 11.06.21

Do que sucede nas nossas vidas, quase tudo se perde no esquecimento, como se um grande cansaço nos forçasse a apagar da memória aquilo que vivemos. Estive a tentar arrumar os textos deste confuso memorando e, de repente, com surpresa, dei-me conta de que já passou muito mais de um ano e ainda estamos na pandemia. Assustados, de máscaras, à espera do que se vai seguir. Há como que uma decomposição social à nossa volta, vemos na rua pessoas que já não aguentam mais, que parecem alucinadas, a falar sozinhas, a gesticular, com pressa de ir a lado nenhum. A vacinação ainda vai a meio, os números de infetados voltam a subir, há umas euforias, depois toda a gente regressa à depressão, os jovens andam pelas esplanadas em estado de exuberância, as ambulâncias não se calam, nas suas gritarias, muitas empresas vão falir em breve. Entretanto, arranjei trabalho num jornal, estava nas lonas, a conta bancária a zero, posso respirar um pouco, aliviar as aflições. O jornalinho vai na nona edição, mas não me parece que avance muito além da trigésima. Projetos políticos em contexto de incerteza, incógnitas. O regime apodrece: já não há dinheiro para manter os tachos dos avençados; todos os dias há um escândalo de amiguismo, nepotismo ou incompetência; o governo minoritário fala grosso; acumulam-se sinais de que vem aí uma crise financeira. Como é que depois disto tudo ainda será possível dizer que chegam os tempos difíceis?

publicado às 12:57

Memórias soltas

por Luís Naves, em 02.06.21

Mesmo numa vida cheia e feliz, a infância tem sempre um lugar especial na memória. Eu tive sorte, para mim foi um tempo ingénuo e simples, repleto de afetos doces. Confesso que não me lembro bem dos invernos longos na cidade cinzenta e guardo com nostalgia as recordações das férias grandes, em casa da minha avó, que era professora primária numa aldeia. Isto foi uns anos antes do 25 de Abril e Portugal era um país diferente. As distorções da imaginação iluminam todas essas lembranças. Nos bosques e campos pairava uma resplandecência exagerada; a água corria despreocupada pelos regatos e a brisa acariciava os pinhais frescos. A aldeia era uma espécie de pintura viva, cheia de cores. Nesse tempo, não se falava de outra coisa: havia a espantosa novidade dos astronautas americanos que tinham chegado à Lua, o que muita gente não acreditava ser possível; numa noite, vínhamos a pé da casa de uma família que tinha televisor, tínhamos visto o programa sobre essas explorações incríveis, e lembro-me da surpresa que senti, ao ver lá em cima, no teto da noite, o imenso luar que iluminava a estrada de macadame. Ali longe, estavam homens de cabeça para baixo. Aliás, quando os astronautas olhavam para a Terra, olhavam para cima, para me verem a mim, também de cabeça para baixo; para eles, eu estava lá no topo, onde me sentia na base do fundo do universo. Esta impressão do mundo ao contrário deve ter sido três ou quatro anos depois do verão em que a minha avó me levou com os seus alunos para o exame da primeira classe, numa outra aldeia a quatro quilómetros. Ainda era de noite quando nos levantámos, fomos buscar os estudantes, um a um, todos com os seus seis anitos, e seguimos em fila até à escola onde tinham juntado as turmas da zona. Um dos rapazinhos não queria ir ao exame, fez birra e levou um tabefe do pai. Lá teve de nos acompanhar, mas mostrou que aprendera a lição e passou para a segunda classe, toda a gente passou. Regressámos felizes, ensonados. Essas aldeias foram assim durante séculos. Agora, têm poucos habitantes, quase só pessoas idosas. Muitos campos estão abandonados, os tanques de rega destruídos, os bosques que não arderam ficaram cheios de mato. Seria difícil juntar outra vez uma turma de seis ou sete gaiatos. Quando a minha avó foi viver para uma vila próxima, passei muitas férias grandes nessa vila. Já era mais crescido. Havia uma biblioteca da Gulbenkian e ia lá buscar livros de Jules Verne, volumes lindos com ilustrações, que lia com entusiasmo juvenil. Essa também é uma boa recordação. Ao ler as histórias, fugia-me a imaginação para os pequenos homens poisados na superfície lunar. Sabia do atraso sonolento do meu próprio mundo, mas a vida parecia-me extensa e podia sonhar com a Lua, enquanto terminava a infância.

publicado às 16:49

No consultório veterinário

por Luís Naves, em 18.05.21

Na janela da clínica veterinária estava um curioso cartaz com imagens de gatos felizes. O Farrusco, a Serena, a Lulu ou o Faísca. Todos sorridentes, saudáveis, só um deles destoava, tristonho, até um pouco zangado com a vida: era o Mickey. Quem é que se foi lembrar de chamar Mickey a um gato? Não era de admirar que o animal tivesse um problema de autoestima. Sim, vivemos num mundo estranho, fora de pé, e há quem se esforce por nos tornar ainda mais inseguros. A pandemia isolou toda a gente, amarfanhou as almas, não vemos a família, não falamos com os amigos, evitamos conviver com os colegas de trabalho. Isto dura há um ano. Também se instalou neste período uma tareia suplementar, que consiste mais ou menos em destruir tudo o que resta da nossa autoestima, como alguém fez ao pobre do gato Mickey. Somos gordos e estamos a destruir o planeta, somos perversos e racistas. A culpa é coletiva. Os leitores, por exemplo, não distinguem as baboseiras e as notícias falsas das prosas superiores, logo, convém criar entidades de iluminados que vão tratar do assunto; isso nunca será fazer censura, não, será apenas uma condução necessária das massas ignorantes; são como as crianças, têm de ser levadas pela mão. Os peritos não dizem apenas que o povo não sabe pensar, eles afirmam que a literatura está cheia de interpretações coloniais, por isso é urgente retirar os clássicos das prateleiras. Os monumentos são um insulto, devem ser demolidos, e a nossa História tem de ser revista; nunca houve descobrimentos, as coisas já existiam antes de serem por assim dizer descobertas, e tudo o que fizeram os nossos antepassados foi simplesmente mau. Eles não criaram a medicina moderna nem a arte, nem os direitos humanos. Aliás, a grande arte do ocidente é inaceitável, a própria linguagem da música faz parte deste complexo genocida. Bach e Beethoven devem ser apagados. Agora, no início dos jogos de futebol, os atletas ajoelham, num gesto antirracista. Há qualquer coisa de estranho nisto, não sabemos exatamente o quê, a seleção polaca questionou o tema quando se recusou a ajoelhar antes de um jogo com a Inglaterra, diziam os polacos que só ajoelhavam perante Deus e foram criticados. Mas será que o ministro ajoelha antes de entrar no ministério? E o funcionário das finanças, antes de entrar na repartição? O jornalista antes de entrar na redação? Quem ajoelha antes de começar a trabalhar? Para que serve ajoelhar antes de um jogo? Estarão a dizer que quem não o faz é racista? O que tem uma coisa a ver com a outra? Um pouco por todo o lado, empurram a nossa autoestima para o fundo e reduzem a nossa liberdade. Já não nos basta a pandemia, querem impor-nos uma culpa que não temos, mudar à força aquilo que somos, pois está tudo errado com a nossa identidade, com o que nos distingue, com o que somos. Começa assim, não sabemos como acaba.

publicado às 16:47

Velhos tempos

por Luís Naves, em 08.05.21

Como é que as gerações anteriores à nossa podiam viver sem novidades como o telemóvel ou a internet? É difícil imaginar. Desse tempo de há cinquenta anos, sendo eu ainda pequeno, não recordo tudo e a minha memória mistura-se com a imaginação. Não garanto total rigor nesta crónica, mas vale o esforço. Os telefones funcionavam através de linhas fixas, juro, e era preciso dar a uma manivela para chamar a menina do PBX, que não sei ao certo onde estava ou qual o motivo de se chamar PBX. Aí pedia-se uma linha, menina dê-me uma linha. Não estou a mentir, não se carregava nas teclas do ecrã para compor o número, até porque não existia ecrã, usava-se o indicador da mão direita para fazer rodar um mecanismo, a maquineta fazia um barulho apropriado e os números maiores demoravam mais tempo a rodar até ao fim. Antes disso, era preciso levantar o auscultador e esperar por um som agudo e contínuo. Depois, gritava-se ao telefone, para se ouvir do outro lado. Se houvesse urgência em telefonar, por exemplo numa perseguição policial (e havia muitas dessas na época), era fundamental chegar primeiro a uma cabina telefónica e ter moedas no bolso, pois a engenhoca funcionava a moedas, que se introduziam numa ranhura, no meio de cliques e sons agudos. Hoje, vemos toda a gente a falar ao telemóvel enquanto caminha na rua, chocando com quem passa; estão todos ao telefone, portanto, todos a falar uns com os outros e sem máscara, para se ouvir melhor. Em 1971 não era assim, estava toda a gente a correr para chegar primeiro à cabina telefónica pública. Mistério: estando uma única pessoa a telefonar de cada vez, para quem telefonava? Nesse tempo, a televisão era a preto e branco e só tinha um programa de cada vez. Sei que esta informação é difícil de digerir, mas garanto que é rigorosamente verídica. Na televisão a preto e branco passavam filmes de cobóis e, no resto da programação, havia pessoas sentadas a falar. No dia seguinte, toda a gente tinha visto a mesma coisa, por isso a conversação era fácil. Também toda a gente ia aos cinemas, que eram salas grandes onde passavam filmes a cores projetados numa grande tela de pano, e estes filmes tinham histórias bonitas. No fim, os heróis casavam e o público na sala chorava. Isto chamava-se melodrama. Mas o pior desses tempos das trevas era mesmo a ausência de internet. Já não me lembro bem, as pessoas lá iam vivendo, mas persiste o mistério. Se não havia redes sociais, onde se indignavam? Andariam nas tabernas a insultar os outros cidadãos? Como é que se conseguia um táxi ou uma refeição? Onde é que se encontravam as notícias falsas e as teorias de conspiração? Como é que o senso comum hiperventilava as frustrações sociais? Onde estavam os tudólogos e os tagarelas? As virgens ofendidas? O mal-estar da época devia ser pior do que uma comichão ou uma insónia, não era como agora, nestes novos tempos, em que as pessoas se levam mesmo a sério.

publicado às 14:48

Deficiência de imunidade

por Luís Naves, em 06.12.20

Num texto lido algures estava a ideia de que em cada geração se instala uma profunda desilusão com a evolução dos tempos. À medida que envelhecem, as pessoas começam a olhar para o passado com nostalgia e tornam-se céticas em relação à sua atualidade, pois o mundo é para os jovens e, na sua perspetiva, vai perdendo o encanto. Talvez seja assim, talvez eu esteja simplesmente a envelhecer e não me dou conta de que toda a minha crítica é, na realidade, a perspetiva errada de alguém que já não consegue encontrar motivos de espanto no mundo em que habita. Tenho pena de que neste tempo as pessoas pareçam cada vez mais indiferentes e julgo ter alguma razão quando me parece que os dias de hoje são medíocres. A arte perdeu o rasgo e não há grandes ideias, apenas pequenas melhorias. A obsessão progressista é conservadora, o excesso de virtude quase sempre hipócrita, os políticos vivem no pânico da contestação e perdem imenso tempo a construir consensos, como dizem, que são invariavelmente formas de adiar as soluções para países estagnados em quase pântanos. Não posso dizer que no tempo da minha mocidade é que era bom, não posso de todo, e seria disparatado pensar que as novas gerações não têm competências e, no entanto, sinto que há algo de errado com este nosso mundo, uma debilidade qualquer, talvez deficiência de imunidade, não sei, ou perda de vigor, complacência, há pequenos sinais de miopia que se traduzem numa geral falta de visão sobre o futuro. Não há paz eterna, nunca houve, e julgo distinguir à distância o som de um trovão que se aproxima. É um tsunami do tempo ou eco da minha velhice.

publicado às 18:19

A busca do tesouro

por Luís Naves, em 19.07.20

A nossa época precisa de embrulho e decoração, não vale a pena contrariar. Sabendo isso, o meu defeito na escrita é mais visível quando procuro fazer estilo e transformo ideias espontâneas em frases demasiado arrumadas. Perde-se a relevância e o que resta até soa mal. Em literatura é hoje muito valorizado o parágrafo vistoso, de preferência com profundidade enganadora, ou seja, que procure exibir mais a inteligência do autor e de alguma forma disfarçar a inteligência daquilo que é escrito. Evitar seguir o gosto do tempo, fintar a necessidade da admiração e do aplauso, fugir à imitação: estas são as lutas desiguais. A escrita devia ser como a busca do tesouro, uma tragédia solitária, geralmente praticada por gente com fixação por maquinarias estranhas que detetam objetos enterrados. O caçador persegue a fama de descobertas anteriores, mas não procura nos sítios que já foram vasculhados. Os verdadeiros caçadores raramente encontram alguma coisa de jeito, mas alguns chegam a encontrar a sua pequena moeda romana. A busca de tesouros é geralmente tarefa inglória, como a escrita, a perseguir quimeras de originalidade, aquela ideia que nos vai libertar da morte ou o texto exato que nunca escreveremos. Quase dá para rir de tanto esforço inútil e da persistência dos sonhos inatingíveis, mas também é verdade que não parece justo dizer a alguém que desperdiçou a sua vida em caçadas improdutivas, só por nunca ter encontrado em vida a sua pequena moeda antiga.

publicado às 12:13

Zapping

por Luís Naves, em 20.02.20

É de tal forma fragmentada a nossa vida, que mais parece um incessante zapping, sendo esta uma palavra em inglês técnico que designa a relação íntima que os contemporâneos têm com as suas televisões: ao tocar-se num botão, muda-se de canal, para se encontrar um programa em tudo semelhante ao primeiro, depois outro ainda muito parecido, a ponto de já nem nas notícias ou na publicidade ser útil fazer este exercício, pois diferentes noticiários dão a mesma notícia à mesma hora e, maravilha das maravilhas, podemos passar num só instante do anúncio de detergente para outro anúncio de detergente. "Zapping" é uma palavra sem equivalente em português, difícil de traduzir, pois "mudança" não chega. Julgo que representa um relâmpago capaz de solucionar todos os impasses, mas que se pode repetir de forma indefinida, como se fosse uma tarefa que não se concretiza. Já deu origem ao verbo "zapar", que significa carregar à toa nos botões do comando da TV, provocando discussões familiares. É algo que nos confere a sensação de poder, mas que na realidade apenas reflete o nosso tédio perante o espetáculo do mundo. Portanto, temos nos dias que correm fragmentação e aborrecimento no mesmo conceito, dois estados de alma que resumem a moderna frustração. Podemos estender esta observação ao pensamento, quando navegamos nas redes sociais através de cinquenta lugares em simultâneo, a bordo dos nossos telefones inteligentes, ao mesmo tempo que nos equilibramos em trotinetas elétricas; não se trata de um simples mudar de ideia para ideia, mas de um arrastão na balbúrdia, que nos deixa atolados no mesmo exato conteúdo. Podemos fintar algo enfadonho, mas permanecemos no sítio, a brincar na areia; enganamos o cansaço e adormecemos no esforço; detestamos alguma coisa, para cair em algo igualmente detestável; evitamos a monotonia, mas encontramos o simples enfado. Enfim, o zapping mental é complexo, merecia uma palavra, algo que fundisse saltitar, pirueta e libertinagem, mas admitindo o privilégio, com boa dose de negligência e um terço de farsa; enfim, a arte de chegar a lado algum, partindo de coisa nenhuma. Seria saboroso dizer em uma ou duas sílabas que somos menos lineares e andamos aos pulos pelas realidades.

publicado às 17:53

Chapéus havia muitos

por Luís Naves, em 11.01.20

Este assunto é pouco discutido nos círculos políticos, mas teve enormes consequências nas nossas vidas: de forma misteriosa, há cerca de meio século, os homens deixaram subitamente de usar chapéu. Os crânios tinham andado tapados em público durante milénios, para assinalar classes sociais e fidelidades identitárias, mas bastou uma breve brisa da história para os despir. Alguns leitores pensarão que não há aqui nada para ver, outros dirão filosoficamente que as coisas mudam e que a humanidade também deixou recentemente de fumar, mas o facto é que as coisas se alteram sempre por uma razão qualquer e, ao contrário dos cigarros, os chapéus nunca fizeram mal à saúde, pelo contrário, protegem da insolação e dos pombos. Entretanto, as consequências económicas da quase extinção do chapéu foram tremendas: todo o sector de chapelaria se dissipou, nem sequer se deslocando em massa para países asiáticos com mão-de-obra acessível, nada disso, simplesmente desapareceu toda uma cultura e ninguém lucrou com isso. Tirando a resistência dos turbantes, o efeito foi verdadeiramente global. Hoje, nas nossas ruas, o cenário das cabeças vazias é geralmente triste. Quando faz frio, os homens andam de cocurutos ao léu, muito vulneráveis, excetuando nas raríssimas ocasiões em que colocam um boné parvo ou um gorro em lã mais adequado para os alpes suíços. Com o empobrecimento da moda, perdemos parte da nossa identidade e só se avistam daqueles barretes de basebol (jogo do qual nem conhecemos as regras), que são enfeites com a elegância de um vulgar quico contra mosquitos. O chapéu tornou-se sobretudo um adereço profissional, apesar do esforço das instituições na aplicação de algum bom gosto às novas formas das toucas ou boinas usadas por forças de segurança, laboratórios ou cozinhas. A sociedade civil não acompanhou esse progresso, perderam-se tradições, ninguém investe na inovação, o que ajuda a explicar a ausência de classe nos raros adornos de cabeça que se avistam nas cidades. Imaginem o nosso mundo se os modernos banqueiros centrais pudessem usar o modelo da evolução natural do chapéu alto, em vez de terem os grandes calotes a descoberto. Conceba-se o súbito júbilo de um golo feliz que obriga todo o estádio a lançar para o ar os seus chapéus; não seria mais bonito do que a ola mexicana? De certa forma, esticando o argumento como se fosse massa de bolos, as novas gerações têm a sua infância comprometida. Por défice de imaginação, tornou-se impossível ler um livro clássico, pois não conseguimos visualizar o Fedora de feltro de Philip Marlowe a rebolar pelo chão poeirento quando o detetive leva uma murraça. E surgem questões prosaicas, por exemplo: como é que se cumprimenta uma senhora, se não se pode levantar ligeiramente o chapéu à sua passagem? Que poderosas transformações sociais levaram a esta calamidade? Deixámos de saber identificar um Deerstalker, que Sherlock Holmes nunca usou fora das ilustrações, tal como nunca disse «É elementar, meu caro Watson». A contemporânea distinção social baseada no corte de cabelo tem uma pobreza atroz. Não mais usaremos panamás para ir ao jardim zoológico com as tias da província. Este mundo palerma mudou com demasiada pressa e já não há chapéus, nem muitos nem poucos.

publicado às 12:37


Autores

João Villalobos e Luís Naves