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O país imaginário

por Luís Naves, em 26.10.17

A crise catalã parece ser um exemplo do crescente desfasamento contemporâneo entre a vida das elites e a vida dos que não têm voz, sendo que os privilegiados tendem a criar uma visão mítica da existência de todos os outros. Os independentistas catalães fantasiaram um país imaginário, que flutua cada vez mais no vazio, separado das circunstâncias factuais que vão surgindo. Perante o desenrolar dos factos, à medida que se vai impondo a cruel realidade, as pessoas que defendem a independência choram, indignam-se, emocionam-se, não compreendem o esboroar do processo. Em Portugal, está a desenvolver-se devagarinho uma idêntica ilusão fantasmagórica sobre o país real e a sua posição no mundo.

publicado às 21:42

Deixem-nos votar

por Luís Naves, em 02.10.17

Na Catalunha, ontem, houve uma espécie de pequena revolução, com as emoções independentistas a tomarem conta da rua. O referendo não teve boletins, listas, policiamento ou debate: foi uma chapelada venezuelana com contagem controlada pelos separatistas, mas os incidentes policiais foram transformados pelos demagogos em protestos legítimos e queixas antigas. Em certa medida, os separatistas já venceram. A democracia espanhola tem má imprensa e é oficial, existe o bom e o mau nacionalismo; o catalão é do bom, o espanhol é mau. Em resumo, um grupo de populistas mobilizado e manipulando raivas difusas pode vencer facilmente uma democracia madura que tente aplicar a lei. É tudo uma questão de imagem. O modelo vai propagar-se pela Europa. A teoria do ‘deixem-nos votar’ permitirá acordar todos os ressentimentos adormecidos, os rancores velhos e as feridas mal cicatrizadas dos tratados punitivos do final da Grande Guerra. A doutrina ‘deixem-nos votar’ convoca o baile dos fantasmas.

publicado às 10:45

A dúvida faz sentido?

por Luís Naves, em 27.09.17

A vingança das nações é uma reacção quixotesca a mudanças mais profundas a que assistimos com espanto e receio. Em todo o mundo avançado decorrem discussões sobre a identidade da nação, mas poucos se interrogam sobre se estas polémicas fazem sentido: ser hoje nacionalista é embrulhar-se numa bandeira ou ajoelhar em protesto quando toca o hino? ter uma nostalgia gastronómica? falar certa língua ou emocionar-se com uma vitória desportiva? Serei eu, então, bom português? Enfim, detesto cozido à portuguesa, acho a bandeira feia e há milhões de pessoas que falam a minha língua e dizem pertencer a outras nações. A Revolução Francesa abriu caminho ao florescimento de patriotas que, em certos casos, deram origem a impérios e a Estados totalitários, todos mantendo a ideia central de que um determinado povo, nação ou classe controlava o seu destino. A política a que assistimos já não tem nada a ver com esse passado, somos quase todos burgueses, veneramos o capitalismo, aceitamos sem incómodo o poder do Estado, mas sabemos que isto anda tudo ligado e interdependente. Pátria, povo e comunidade são palavras que enchem a boca dos políticos, mas tendo perdido o velho significado que tinham. O que é hoje ser patriota? Pagar impostos? ter uma visão mítica da história? citar clássicos da literatura e achar parvamente que os nossos autores são os melhores?

publicado às 19:48

Vitória amarga

por Luís Naves, em 24.09.17

As sondagens à boca das urnas apontam para uma surpresa relativa nas eleições legislativas alemãs: o resultado da grande coligação no poder é o pior de sempre; somados, os dois grandes partidos que dominaram durante mais de meio século a vida política da República Federal terão pouco mais de 52% dos votos, menos 15 pontos percentuais do que conseguiram em 2013. A extrema-direita populista entra no parlamento quase a triplicar a votação anterior, quando falhou por um triz a barreira dos 5%. A fragmentação partidária obrigará a chanceler Angela Merkel a uma coligação potencialmente instável, que exigirá longas negociações, a chamada coligação Jamaica, que incluirá cristãos-democratas, liberais e verdes. A confirmarem-se os resultados (e falta o cálculo essencial de número de deputados), a Alemanha terá um governo complicado, com dois partidos minoritários que discordam entre si em numerosos assuntos (julgo que não haverá deputados suficientes para um governo só com CDU e o FDP, mas saberemos mais logo). FDP e Verdes são próximos em muitos temas europeus, mas terão opiniões diferentes na política de imigração, nas questões económicas e na definição da futura União Europeia.
As sondagens falharam, os analistas e os políticos subestimaram o descontentamento popular, a imprensa deixou de entender os verdadeiros sentimentos da opinião pública. A bolha em que vivem as elites começa a ser perigosamente distante da realidade em que vivem os desfavorecidos. Na sondagem à boca das urnas que a BBC está a usar, a CDU terá apenas 32% e o SPD, com 20%, terá sido cilindrado. O voto de protesto (AfD e Linke) soma um em cada quatro, o que parece uma enorme proporção para um país em boa situação económica. Nos últimos meses, houve entre os comentadores uma espécie de euforia de europeísmo desenfreado. Nessa narrativa, estava tudo a correr maravilhosamente, sob a batuta da nova líder do mundo livre; e ps indicadores económicos demonstravam que era finalmente possível avançar com grandes utopias de federalismo europeu. Todos se esqueceram dos eleitores. Afinal, o descontentamento dos perdedores da globalização não desapareceu, há muitas pessoas que recusam as ideias internacionalistas e que olham com desconfiança para o que consideram ser a diluição da sua identidade. Será interessante olhar para a reacção dos mercados, amanhã, se começa ou não a instalar-se algum nervosismo.

publicado às 20:00

Mudança de modelo

por Luís Naves, em 16.09.17

A maior consequência da saída do Reino Unido da União Europeia não será um colapso do comércio ou uma recessão. Londres estava fora da moeda única e, por isso, já estava fora da união, pois a única maneira de manter a prazo a estabilidade da moeda comum europeia será aprofundar as instituições políticas que a regulam (quem paga as contas tem de ter uma maneira de controlar as decisões). O orçamento comunitário vai crescer a prazo, pelo que haverá impostos europeus; existirá um poder transnacional com capacidade para forçar um país a fazer reformas estruturais impopulares; um acordo entre franceses e alemães será imparável; um país que não cumpra as regras terá de ser afastado do euro e lançado para o patamar de comércio livre dominado por Londres (a EFTA reanimada), embora neste ponto exista um problema, pois se a saída for demasiado fácil não fica ninguém na moeda comum. Enfim, acabou a fase de bom senso, que visava criar uma aliança de nações e um mercado único, e começa a erguer-se uma federação burocrática, que pela sua natureza terá de reprimir todos os nacionalismos, menos o francês e o alemão.

publicado às 20:18

O independentismo folclórico

por Luís Naves, em 12.09.17

O processo de independência da Catalunha está a ser tratado com pinças pelos meios de comunicação nacionais, talvez pela circunstância do tema ser fracturante dentro da chamada geringonça, a aliança de poder entre esquerda radical e centro-esquerda. Muitos dos nossos comentadores olham com indisfarçada simpatia para o separatismo catalão, que é sobretudo folclórico e sentimental. E, no entanto, se a Catalunha se separasse da Espanha, isso era objectivamente péssimo para os interesses portugueses.
Para os catalães, a independência era uma calamidade: ficavam mais pobres, mais inseguros e provavelmente menos livres, pois muitos cidadãos têm raízes na Andaluzia ou na Galiza, de onde os seus pais emigraram há 40 ou 50 anos, atraídos pelo emprego industrial desta próspera região.
A independência da Catalunha, sobretudo num processo ilegal como aquele a que assistimos, implicava a imediata saída da União Europeia e da zona euro. E podia ser uma saída sem regresso. Os catalães negociariam um período de transição, mas fora do BCE e do mercado único. Passados alguns anos, a Catalunha teria imensas dificuldades em regressar à UE, pois a Espanha e todos os países com minorias separatistas tenderiam a votar contra.
Entre os nossos comentadores da esquerda avoluma-se uma tese extraordinária, de que há nacionalismos bons e nacionalismos maus; há aspirações nacionais que temos de combater e outras que podemos defender com simpatia. Há constituições que devem ser preservadas e outras que podemos rasgar. Há Estados onde os tribunais pesam e as leis se aplicam e outros onde isso não é bem assim.
O mais espantoso, nos nossos dias, não é este desejo popular de reforçar a identidade das nações, mas a tendência suicidária que se manifesta em sectores substanciais das sociedades mais ricas, neste caso entre a burguesia catalã, mas podia citar o exemplo do Brexit. É este o maior enigma: o que leva países prósperos a namorar os abismos?

publicado às 15:40

Novo sismo eleitoral

por Luís Naves, em 09.06.17

Novo sismo eleitoral no Reino Unido: em legislativas antecipadas, num erro de cálculo histórico, o Partido Conservador desbaratou a maioria que tinha no parlamento. Embora fosse o partido mais votado e a primeira-ministra Theresa May possa formar novo governo, é possível que haja uma insurreição interna ou uma situação de alta instabilidade. Na prática, existe um parlamento ‘pendurado’, ou seja, um impasse a exigir coligação. Este resultado confirma o padrão de insatisfação popular nos países desenvolvidos: o eleitorado não quer a política habitual nem os políticos do costume, os que vivem na sua bolha, alheados da realidade. Os conservadores entraram nestas eleições demasiado confiantes, não perceberam o descontentamento popular e fizeram uma péssima campanha. May queria negociar na Europa com a sua autoridade reforçada, mas vai entrar nas negociações do Brexit, dentro de dias, num calamitoso estado de fragilidade. A primeira-ministra subestimou o adversário, Jeremy Corbyn, que ganhou com o regresso ao bipartidarismo tradicional e que parece seguir com habilidade a máxima de Napoleão: ‘nunca interrompas o erro do adversário’.

Estas eleições mostram a crescente importância da gestão de expectativas. Muitos britânicos assustaram-se com a possibilidade (ainda em Maio) de um triunfo absoluto dos conservadores. As sondagens de Abril e Maio apontavam de forma unânime para uma diferença superior a cem deputados em relação aos trabalhistas (afinal, foi de apenas 57). Nos seus cálculos complacentes, os conservadores pensaram que iam garantir 80% dos votos do partido nacionalista UKIP, que praticamente desapareceu; ora, os trabalhistas atraíram uma proporção significativa destes eleitores, talvez mais de metade, garantindo com esse acréscimo de dois ou três pontos percentuais que os conservadores não ganhavam por landslide, ou derrocada do adversário. Ontem, embora fossem perdedores (ficaram em segundo lugar e não formam maioria), os trabalhistas definiram-se logo como os vencedores das eleições. Todos os eleitos repetiam a narrativa de que tinham ganho e os observadores, internos e externos, diziam o mesmo. Como se esperava o colapso do partido, a votação competitiva pareceu uma vitória. Vivemos assim numa fase estranha das democracias, em que os derrotados podem sair vencedores e os que ganham podem ser considerados ilegítimos.

publicado às 13:04

Novo atentado em Londres

por Luís Naves, em 04.06.17

Outro atentado bárbaro numa cidade europeia, desta vez em Londres, com pelo menos sete mortos e dezenas de feridos, alguns em estado crítico. Começa a ser uma banalidade e lemos os habituais relatos de horror: os terroristas vestiam coletes com latas a fingir de explosivos e esfaquearam as pessoas que antes tinham atropelado e que agonizavam no passeio; depois, atacaram numa zona popular de bares e restaurantes e mataram inocentes durante oito minutos. Parece que se instalou uma devastadora nova táctica de baixa tecnologia; agora, bastam uma carrinha e algumas facas. Os terroristas tendem a ter a nacionalidade dos países onde matam e pertencem geralmente à segunda geração de imigrantes; foram radicalizados por imãs e activistas que actuam com impunidade, em nome da liberdade religiosa, espalhando uma ideologia que despreza a nossa forma de vida, odeia as nossas liberdades, recusa a nossa democracia e visa impor-nos uma visão niilista que nega os direitos humanos. Em vários locais da Europa, com tolerância oficial, instalaram-se milícias radicais que impõem a charia, proibindo, por exemplo, que os cidadãos comprem e bebam álcool; há bairros em França onde as mulheres vestidas de forma ocidental já não podem sair à rua sem serem molestadas; há zonas onde os judeus são os alvos, mas também os cristãos, até mudarem de bairro ou venderem os seus negócios a muçulmanos. A intolerância islamita foi crescendo sob o olhar benevolente das elites bem-pensantes, nomeadamente dos meios de comunicação, que se recusam a perceber a extensão do problema e cujo contacto com as comunidades em crise é limitado. Os líderes da esquerda apoiam esta visão complacente e, por uma vez, guardam na gaveta as ideias feministas e marxistas: os pobres da antiga classe operária, que ainda vivem nos subúrbios repletos de tensão e ódio, deixaram de contar.

publicado às 17:47

Atentado de Manchester (2)

por Luís Naves, em 24.05.17

Como não acredito na explicação da doença mental do terrorista, já que todas as suas acções foram racionais e planeadas ao pormenor, então tem forçosamente de existir uma explicação mais complexa para atentados como o de Manchester. Um terrorista radicalizado a este ponto acha que os seus valores são de outro domínio, por isso está-se nas tintas para a eventual não publicidade ao seu nome em meios de comunicação que despreza, sabendo que ocupará o seu devido lugar num paraíso fora desta Terra. E se os seus valores são de outro mundo, que lhe importa a glória e a fama neste? E nós, o que fazemos perante o choque? Acendemos velas, erguemos uns altares, dizemos umas piedades, lemos uns artigos chorosos sobre algumas das vítimas, com preferência pela história de membros das minorias…

publicado às 08:11

O atentado em Manchester

por Luís Naves, em 23.05.17

Que diabo, estes malucos estão a matar as nossas crianças! A ideia de uma crise dentro do Islão não explica que um tipo se faça explodir ao pé de gente tão vulnerável, para mais sendo criado em Inglaterra. É que não existe aqui um alvo militar, caramba, uma coisa que se veja, um símbolo de opressão, uma merda qualquer que nos envergonhe, não, ele queria simplesmente matar o máximo de crianças que saíam de um inocente concerto. A crise dentro do Islão existe, podemos desenvolver explicações, o petróleo e essas merdas, a distribuição catastrófica da riqueza, os líderes corruptos e o conflito com Israel e ainda a guerra entre sunitas e xiitas, mas isso não explica que estes fanáticos estejam a conseguir infernizar a vida dos ocidentais, trazendo com eles ideias que consideramos absurdas; aliás, nem sequer trouxeram nada com eles pela razão simples de terem vivido sempre nas nossas próprias sociedades. Os autores destes atentados são indivíduos jovens, que viveram toda a sua vida em sociedades ocidentais ou cristãs, mas que se matam em nome do Islão radical e sem terem qualquer experiência da crise do mundo muçulmano. Estas pessoas pertencem à segunda ou terceira geração de comunidades imigradas, que se integraram mal nas sociedades ocidentais e que julgam ter valores superiores aos nossos, nomeadamente religiosos. O que leva estes indivíduos à radicalização? Será a crise do Islão, a ideologia, um choque civilizacional? O que leva estas pessoas a rejeitarem valores com que tiveram amplo contacto, por exemplo, a liberdade, a democracia, os direitos humanos, valores que consideramos tão essenciais?

publicado às 08:08


Autores

João Villalobos e Luís Naves