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Pedaços do mundo e grãos de areia
A crise catalã parece ser um exemplo do crescente desfasamento contemporâneo entre a vida das elites e a vida dos que não têm voz, sendo que os privilegiados tendem a criar uma visão mítica da existência de todos os outros. Os independentistas catalães fantasiaram um país imaginário, que flutua cada vez mais no vazio, separado das circunstâncias factuais que vão surgindo. Perante o desenrolar dos factos, à medida que se vai impondo a cruel realidade, as pessoas que defendem a independência choram, indignam-se, emocionam-se, não compreendem o esboroar do processo. Em Portugal, está a desenvolver-se devagarinho uma idêntica ilusão fantasmagórica sobre o país real e a sua posição no mundo.
As sondagens à boca das urnas apontam para uma surpresa relativa nas eleições legislativas alemãs: o resultado da grande coligação no poder é o pior de sempre; somados, os dois grandes partidos que dominaram durante mais de meio século a vida política da República Federal terão pouco mais de 52% dos votos, menos 15 pontos percentuais do que conseguiram em 2013. A extrema-direita populista entra no parlamento quase a triplicar a votação anterior, quando falhou por um triz a barreira dos 5%. A fragmentação partidária obrigará a chanceler Angela Merkel a uma coligação potencialmente instável, que exigirá longas negociações, a chamada coligação Jamaica, que incluirá cristãos-democratas, liberais e verdes. A confirmarem-se os resultados (e falta o cálculo essencial de número de deputados), a Alemanha terá um governo complicado, com dois partidos minoritários que discordam entre si em numerosos assuntos (julgo que não haverá deputados suficientes para um governo só com CDU e o FDP, mas saberemos mais logo). FDP e Verdes são próximos em muitos temas europeus, mas terão opiniões diferentes na política de imigração, nas questões económicas e na definição da futura União Europeia.
As sondagens falharam, os analistas e os políticos subestimaram o descontentamento popular, a imprensa deixou de entender os verdadeiros sentimentos da opinião pública. A bolha em que vivem as elites começa a ser perigosamente distante da realidade em que vivem os desfavorecidos. Na sondagem à boca das urnas que a BBC está a usar, a CDU terá apenas 32% e o SPD, com 20%, terá sido cilindrado. O voto de protesto (AfD e Linke) soma um em cada quatro, o que parece uma enorme proporção para um país em boa situação económica. Nos últimos meses, houve entre os comentadores uma espécie de euforia de europeísmo desenfreado. Nessa narrativa, estava tudo a correr maravilhosamente, sob a batuta da nova líder do mundo livre; e ps indicadores económicos demonstravam que era finalmente possível avançar com grandes utopias de federalismo europeu. Todos se esqueceram dos eleitores. Afinal, o descontentamento dos perdedores da globalização não desapareceu, há muitas pessoas que recusam as ideias internacionalistas e que olham com desconfiança para o que consideram ser a diluição da sua identidade. Será interessante olhar para a reacção dos mercados, amanhã, se começa ou não a instalar-se algum nervosismo.
O processo de independência da Catalunha está a ser tratado com pinças pelos meios de comunicação nacionais, talvez pela circunstância do tema ser fracturante dentro da chamada geringonça, a aliança de poder entre esquerda radical e centro-esquerda. Muitos dos nossos comentadores olham com indisfarçada simpatia para o separatismo catalão, que é sobretudo folclórico e sentimental. E, no entanto, se a Catalunha se separasse da Espanha, isso era objectivamente péssimo para os interesses portugueses.
Para os catalães, a independência era uma calamidade: ficavam mais pobres, mais inseguros e provavelmente menos livres, pois muitos cidadãos têm raízes na Andaluzia ou na Galiza, de onde os seus pais emigraram há 40 ou 50 anos, atraídos pelo emprego industrial desta próspera região.
A independência da Catalunha, sobretudo num processo ilegal como aquele a que assistimos, implicava a imediata saída da União Europeia e da zona euro. E podia ser uma saída sem regresso. Os catalães negociariam um período de transição, mas fora do BCE e do mercado único. Passados alguns anos, a Catalunha teria imensas dificuldades em regressar à UE, pois a Espanha e todos os países com minorias separatistas tenderiam a votar contra.
Entre os nossos comentadores da esquerda avoluma-se uma tese extraordinária, de que há nacionalismos bons e nacionalismos maus; há aspirações nacionais que temos de combater e outras que podemos defender com simpatia. Há constituições que devem ser preservadas e outras que podemos rasgar. Há Estados onde os tribunais pesam e as leis se aplicam e outros onde isso não é bem assim.
O mais espantoso, nos nossos dias, não é este desejo popular de reforçar a identidade das nações, mas a tendência suicidária que se manifesta em sectores substanciais das sociedades mais ricas, neste caso entre a burguesia catalã, mas podia citar o exemplo do Brexit. É este o maior enigma: o que leva países prósperos a namorar os abismos?
Novo sismo eleitoral no Reino Unido: em legislativas antecipadas, num erro de cálculo histórico, o Partido Conservador desbaratou a maioria que tinha no parlamento. Embora fosse o partido mais votado e a primeira-ministra Theresa May possa formar novo governo, é possível que haja uma insurreição interna ou uma situação de alta instabilidade. Na prática, existe um parlamento ‘pendurado’, ou seja, um impasse a exigir coligação. Este resultado confirma o padrão de insatisfação popular nos países desenvolvidos: o eleitorado não quer a política habitual nem os políticos do costume, os que vivem na sua bolha, alheados da realidade. Os conservadores entraram nestas eleições demasiado confiantes, não perceberam o descontentamento popular e fizeram uma péssima campanha. May queria negociar na Europa com a sua autoridade reforçada, mas vai entrar nas negociações do Brexit, dentro de dias, num calamitoso estado de fragilidade. A primeira-ministra subestimou o adversário, Jeremy Corbyn, que ganhou com o regresso ao bipartidarismo tradicional e que parece seguir com habilidade a máxima de Napoleão: ‘nunca interrompas o erro do adversário’.
Estas eleições mostram a crescente importância da gestão de expectativas. Muitos britânicos assustaram-se com a possibilidade (ainda em Maio) de um triunfo absoluto dos conservadores. As sondagens de Abril e Maio apontavam de forma unânime para uma diferença superior a cem deputados em relação aos trabalhistas (afinal, foi de apenas 57). Nos seus cálculos complacentes, os conservadores pensaram que iam garantir 80% dos votos do partido nacionalista UKIP, que praticamente desapareceu; ora, os trabalhistas atraíram uma proporção significativa destes eleitores, talvez mais de metade, garantindo com esse acréscimo de dois ou três pontos percentuais que os conservadores não ganhavam por landslide, ou derrocada do adversário. Ontem, embora fossem perdedores (ficaram em segundo lugar e não formam maioria), os trabalhistas definiram-se logo como os vencedores das eleições. Todos os eleitos repetiam a narrativa de que tinham ganho e os observadores, internos e externos, diziam o mesmo. Como se esperava o colapso do partido, a votação competitiva pareceu uma vitória. Vivemos assim numa fase estranha das democracias, em que os derrotados podem sair vencedores e os que ganham podem ser considerados ilegítimos.
Outro atentado bárbaro numa cidade europeia, desta vez em Londres, com pelo menos sete mortos e dezenas de feridos, alguns em estado crítico. Começa a ser uma banalidade e lemos os habituais relatos de horror: os terroristas vestiam coletes com latas a fingir de explosivos e esfaquearam as pessoas que antes tinham atropelado e que agonizavam no passeio; depois, atacaram numa zona popular de bares e restaurantes e mataram inocentes durante oito minutos. Parece que se instalou uma devastadora nova táctica de baixa tecnologia; agora, bastam uma carrinha e algumas facas. Os terroristas tendem a ter a nacionalidade dos países onde matam e pertencem geralmente à segunda geração de imigrantes; foram radicalizados por imãs e activistas que actuam com impunidade, em nome da liberdade religiosa, espalhando uma ideologia que despreza a nossa forma de vida, odeia as nossas liberdades, recusa a nossa democracia e visa impor-nos uma visão niilista que nega os direitos humanos. Em vários locais da Europa, com tolerância oficial, instalaram-se milícias radicais que impõem a charia, proibindo, por exemplo, que os cidadãos comprem e bebam álcool; há bairros em França onde as mulheres vestidas de forma ocidental já não podem sair à rua sem serem molestadas; há zonas onde os judeus são os alvos, mas também os cristãos, até mudarem de bairro ou venderem os seus negócios a muçulmanos. A intolerância islamita foi crescendo sob o olhar benevolente das elites bem-pensantes, nomeadamente dos meios de comunicação, que se recusam a perceber a extensão do problema e cujo contacto com as comunidades em crise é limitado. Os líderes da esquerda apoiam esta visão complacente e, por uma vez, guardam na gaveta as ideias feministas e marxistas: os pobres da antiga classe operária, que ainda vivem nos subúrbios repletos de tensão e ódio, deixaram de contar.
Como não acredito na explicação da doença mental do terrorista, já que todas as suas acções foram racionais e planeadas ao pormenor, então tem forçosamente de existir uma explicação mais complexa para atentados como o de Manchester. Um terrorista radicalizado a este ponto acha que os seus valores são de outro domínio, por isso está-se nas tintas para a eventual não publicidade ao seu nome em meios de comunicação que despreza, sabendo que ocupará o seu devido lugar num paraíso fora desta Terra. E se os seus valores são de outro mundo, que lhe importa a glória e a fama neste? E nós, o que fazemos perante o choque? Acendemos velas, erguemos uns altares, dizemos umas piedades, lemos uns artigos chorosos sobre algumas das vítimas, com preferência pela história de membros das minorias…
Que diabo, estes malucos estão a matar as nossas crianças! A ideia de uma crise dentro do Islão não explica que um tipo se faça explodir ao pé de gente tão vulnerável, para mais sendo criado em Inglaterra. É que não existe aqui um alvo militar, caramba, uma coisa que se veja, um símbolo de opressão, uma merda qualquer que nos envergonhe, não, ele queria simplesmente matar o máximo de crianças que saíam de um inocente concerto. A crise dentro do Islão existe, podemos desenvolver explicações, o petróleo e essas merdas, a distribuição catastrófica da riqueza, os líderes corruptos e o conflito com Israel e ainda a guerra entre sunitas e xiitas, mas isso não explica que estes fanáticos estejam a conseguir infernizar a vida dos ocidentais, trazendo com eles ideias que consideramos absurdas; aliás, nem sequer trouxeram nada com eles pela razão simples de terem vivido sempre nas nossas próprias sociedades. Os autores destes atentados são indivíduos jovens, que viveram toda a sua vida em sociedades ocidentais ou cristãs, mas que se matam em nome do Islão radical e sem terem qualquer experiência da crise do mundo muçulmano. Estas pessoas pertencem à segunda ou terceira geração de comunidades imigradas, que se integraram mal nas sociedades ocidentais e que julgam ter valores superiores aos nossos, nomeadamente religiosos. O que leva estes indivíduos à radicalização? Será a crise do Islão, a ideologia, um choque civilizacional? O que leva estas pessoas a rejeitarem valores com que tiveram amplo contacto, por exemplo, a liberdade, a democracia, os direitos humanos, valores que consideramos tão essenciais?
Donald Trump aceitou a nomeação do Partido Republicano para concorrer à Casa Branca, numa convenção cheia de momentos folclóricos. Trump continua a ser subestimado pelos críticos e fez um discurso tremendo, que um comentador na CNN definiu como a descrição de uma América Mad Max. O Partido Republicano está estilhaçado (talvez moribundo) e a direita americana mergulhou num populismo repleto de raiva. As pessoas estão fartas dos políticos do sistema e isto pode reflectir-se de forma inesperada nas urnas, como aconteceu com o Brexit, onde a irritação das massas obrigou o Reino Unido a uma má escolha. Será que Hillary Clinton consegue sobreviver à insurreição populista? Esta é a grande questão das presidenciais de Novembro. As sondagens nacionais pouco dizem. Analisando o mapa eleitoral, vemos que a candidata democrata tem vantagem segura em mais estados do que Trump, o que somado às vantagens ligeiras, lhe poderia dar 209 votos eleitorais, contra 164 do candidato republicano, (é isto que conta). São precisos 270 votos e há incerteza em estados que deviam ser seguros para Clinton, por exemplo no sul (Carolina do Norte, Virgínia, Geórgia) onde votam muitos afro-americanos e hispânicos. Ohio, Pensilvânia e Flórida parecem ser os principais campos da batalha presidencial de Novembro. Tirando o folclore, se Trump for eleito, a América torna-se proteccionista e isolacionista. O que o candidato disse ao New York Times sobre a NATO é um susto: quem não pagar a sua quota (ele diz quem não pagar a protecção das forças americanas) ficará por sua conta. Delírio, paranóia, realidade paralela, Donald J. Trump parece uma personagem arrancada à ficção de Philip K. Dick.
Se a esquerda parece surda à realidade, a direita não é pior a desviar o assunto. Alguns consideram que a solução seria um partido liberal, recusando a social-democracia, embora isso contrarie todas as recentes eleições, onde o tema nunca foi referido. É uma ideia ao lado. Na Europa não há nenhum país que dispense a social-democracia, nem sequer a Grécia, onde o Syriza ensaiou uma tentativa de governo da esquerda radical. Os padrões são claros: a social-democracia europeia é uma questão de dose e as privatizações dos serviços públicos são limitadas, mesmo em Inglaterra; nenhum político será eleito a dizer que vai acabar com pensões públicas, rendimento mínimo, serviço nacional de saúde, assistência aos pobres. Ninguém deseja isso. Nenhum partido ganhará eleições a dizer que pretende um Estado fraco e o fim da banca nacional ou dos campeões da economia. Há diferentes modelos de Estado social na Europa, mas todos têm órgãos públicos de comunicação, educação gratuita, hospitais estatais, blindagem do sistema de pensões. Há também limitações à liberdade aceites por toda a gente, por exemplo, na compra e porte de armas ou nas leis do trabalho. Os europeus não querem mais liberalismo económico, aliás atribuem a crise aos excessos do liberalismo; os europeus querem mais segurança no trabalho e ruas tranquilas, querem prosperidade sem excesso de desigualdade, querem ter comunidades fortes com boas oportunidades para todos. E é assim que votam em todo o lado.
As eleições americanas baseiam-se num mecanismo arcaico do século XIX que convive mal com a sociedade mediatizada do século XXI. Este paradoxo favorece um sistema oligárquico, dependente de quantidades impressionantes de dinheiro, e produz campanhas que afunilam os temas, discutidos com extrema demagogia. A política americana está a tornar-se mais populista e virada para dentro, incapaz de ter um olhar sobre o mundo. Os candidatos precisam de ter cuidado com temas tóxicos (imigração, armas, aborto) e nunca perdem tempo com assuntos complexos, que não interessem à televisão. A América é um império relutante, que ao longo da sua História manteve frequentes políticas isolacionistas, sobretudo após intervenções militares externas. Na pré-campanha, o partido republicano radicalizou-se e parece ter entrado numa fase de isolacionismo patológico. Do lado democrata, surge uma insurreição anti-sistema que pode produzir o mesmo efeito. Com a política externa submetida a discussões de política interna, a América tenderá a desinteressar-se pelos conflitos mundiais, o que implicará eventual abandono de aliados, acções a meio-gás, paralisação institucional, hesitação ou até incapacidade de agir.