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Teoria insuficiente

por Luís Naves, em 11.12.24

A teoria da guerra das civilizações não explica a atual mudança no mundo. A Rússia é tão europeia como a Ucrânia; a crise política da Coreia do Sul tem na sua origem um partido nacionalista de oposição que contesta o comando americano das forças militares coreanas; os islamitas da Síria são apoiados por americanos, turcos e israelitas e derrubaram um regime nacionalista árabe secular e ocidentalizado, que tinha apoio do Irão. Um quinto do planeta é constituído por nações falhadas, em vários continentes, idênticas na desgraça, sobretudo pela exploração implacável dos seus recursos. A teoria de que existe um choque de civilizações é útil para disfarçar os conflitos entre impérios, que não são diferentes das rivalidades que existiram na primeira fase da civilização global. As potências modernas querem uma ordem mundial estável, terão de organizar zonas de influência. O conflito do futuro será económico, pelo domínio de tecnologias e dos minerais do patamar mais elevado de uso de energia. Terá vantagem o país que controlar a inteligência artificial e assegurar os recursos para a energia que esta gasta.

publicado às 13:09

Novo ciclo

por Luís Naves, em 08.12.24

A vida deu mais uma volta, entro em novo ciclo, acaba a incerteza e recomeça a estabilidade. Vou gerir melhor o tempo que me resta e, enquanto a cabeça deixar, tentarei apenas escrever. Tenho planos para conto, romance, crónicas, mas nunca se sabe até onde irá a vontade de prosseguir. Este ano teve um resultado contraditório: o romance deixado a meio, outro publicado, revisões de textos antigos, a coleção de contos incompleta, estes dispersos, muita palavra para o arquivo do esquecimento. Não me cansa, irritam-me as interrupções quotidianas, os assuntos burocráticos, as distrações. Parece que a escrita tem de ser uma atividade talibã. Sou do artesanato, gosto da sujidade da oficina, ocupo o tempo a acumular estes objetos, sem me inquietar com a sua eventual leitura. Agora, que temos toneladas de informações à nossa volta, tornou-se demasiado complicado separar as futilidades daquilo que interessa. Também acontece aos predadores, que ficam paralisados a olhar a agitação do cardume e não sabem por onde começar. Vivemos na cultura da dispersão, da quantidade, da fragmentação. Escrever exige silêncio, reflexão, o apagamento do autor. Não é fácil conciliar tudo e o seu contrário.

publicado às 12:28

Ninguém pode ser otimista

por Luís Naves, em 05.12.24

Ninguém pode ser otimista quando há uma guerra violenta às nossas portas e assistimos a cenas de barbárie no Médio Oriente (ali, está tudo a partir-se). Não é bom sinal ver sociedades perigosamente fragmentadas, exibindo divisões internas que não se viam há décadas ou as feridas de embriões de conflito civil. As tecnologias do futuro foram sempre olhadas com preocupação, mas esta época parece diferente, pois a inteligência artificial não é apenas audaciosa, mas sobretudo temerária. Pela primeira vez, a humanidade não controla completamente o desenvolvimento de uma tecnologia. O mundo contemporâneo tem outros sinais inquietantes, como a proliferação de estados falhados, a bolha de dívida, a degradação da educação, existe também aquilo a que podemos chamar a cultura vazia do espetáculo, que talvez não seja mais do que a febre elevada de uma civilização em decadência. Estamos a terminar um tempo e a começar outro, talvez os historiadores de amanhã possam compreender melhor estes processos, mas não me atrevo a dizer que venha aí um período de prosperidade e paz. Talvez até seja o nascimento perturbado de uma nova Era Dourada, mas por agora não tem aspeto disso.

publicado às 12:42

A realidade? Qual delas?

por Luís Naves, em 01.12.24

Os escritores costumam dizer que se baseiam na realidade, mas ninguém lhes pergunta em qual delas. Um dos problemas do mundo contemporâneo está na extrema dificuldade em estabelecer a simples hierarquia dos factos ou distinguir o que pode ser palpável no meio da neblina das narrativas. A escolha da realidade é um problema sério da literatura: existe a opção simpática do conformismo, que dá acesso aos privilégios do mercado, ou a leitura subversiva que, pondo em causa as verdades da época, condena o escritor ao silêncio mediático. Estará o autor disposto a ver tudo ao contrário do que lhe exigem a busca da fama e o mínimo denominador comum da medíocre cultura popular? A incerteza do real é incompatível com as modas da literatura que desprezam a imaginação. O que mais vende é o realismo sem ambiguidade, por exemplo, a chamada auto-ficção, ou seja, a autobiografia à maneira de um repórter sem distanciamento, que é a impostura máxima, cheia de bons sentimentos. Também está na moda o fogo de artifício, frequentemente sem ideias, como se não houvesse técnica literária além do fluxo de consciência e da existência interior, as únicas que podem resolver sem esforço o problema da multiplicidade de realidades.

publicado às 12:51

Escritor de província

por Luís Naves, em 29.11.24

Sou agora escritor de província. Isolado, desconhecido, livre. Tudo aquilo que escrever será ignorado e não tenho ilusões sobre isso. Talvez publique, mas serei invisível, exterior ao sistema do negócio, das entrevistas e do reconhecimento público. Escrevo fora dos temas da moda, longe da intenção de agradar a críticos ou elites intelectuais, que na melhor das hipóteses poderão deitar um olhar complacente sobre os meus livros (embora isso seja improvável). O escritor provinciano tem vantagens: usa melhor o tempo, não se distrai com a fama, vive tanto quanto escreve, não necessita de horários nem de comparecer em tertúlias e de conhecer gente importante, não precisa de rede de contactos ou agentes, pode explorar o lado espontâneo, ignorar convenções, academias, o mundo, as linguagens que não são as suas, esquecer as mágoas citadinas. O artífice distante pode privilegiar as personagens familiares e concentrar-se na fantasia e nas paisagens interiores, que na sua imaginação se transformam em serras e campos, regatos de água límpida, bosques e montanhas com neve, habitados por camponeses bisonhos e talvez extintos, quem sabe?

publicado às 21:23

O mau leitor

por Luís Naves, em 28.11.24

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A leitura do romance foi deixada a meio e as personagens não gostaram. A vingança atingiu com malícia o despreocupado leitor, que nem nos piores pesadelos poderia ter imaginado os efeitos da sua leviandade. Ninguém com domínio do juízo se iria meter com um dos maiores facínoras da ficção, o arrepiante e perverso fidalgo de Caparães, falso marquês e traidor da pátria a partir da página 55. Esta marcante criatura literária ficou muito ofendida com o desplante de ser vítima da preguiça e urdiu uma conspiração com a bela Angélica, personagem bondosa no romance deixado a meio, mas terrível quando desprezada. Ela revelou-se uma autêntica bruxa, ganhando subitamente o apoio de personagens secundárias do enredo, nomeadamente a criança impertinente, uns frades hipócritas, uma singela Luísa e alguns burgueses madraços que atuaram em coligação com o feroz bando de camponeses do relambório, que vinham armados com foices e ancinhos. Por esta altura, o leitor, coitado, andava desprevenido, nem sequer ainda substituíra o livro da leitura interrompida, o que foi mal pensado, pois podia ter arranjado novos aliados, mas andava distraído com outras preocupações mundanas. Para arredondar a história, digamos que as coisas lhe começaram a correr francamente mal. Houve um incêndio misterioso na cozinha, uma omelete que se incendiou no fogão, depois começaram os rumores insidiosos, indiscreta má-língua, a Luisinha pôs a circular uma notícia de que a tinham abandonado (o que não era mentira), as redes sociais comoveram-se, incendiaram-se de solidariedade, até familiares próximos começaram a criticar o leitor incompetente, ele próprio a fazer subitamente parte do enredo. O assédio só acabou quando o leitor, já mais manso, pegou de novo no romance e terminou aquelas páginas, interessado na parte final, da redenção do falso marquês, onde não conseguiu evitar uma breve lágrima que fez sorrir todas as personagens. Foi isso que o salvou de maiores retaliações. Enfim, o leitor diz que aprendeu a sua lição e não tenciona deixar mais nenhum livro a meio.

imagem gerada por IA, night Café

publicado às 19:44

A Europa surda e fraca

por Luís Naves, em 27.11.24

A nova Comissão Europeia de Ursula von der Leyen foi aprovada e o que mais chocou nos discursos foi a parte bélica. Bruxelas tem novas ambições na defesa e, se dependesse do palavreado, estávamos em guerra com a Rússia. A comissão devia obedecer aos países membros, mas corre em pista própria. Ninguém a elegeu, não tem legitimidade democrática e não devia falar em nome dos povos europeus, mas considera-se o pináculo do poder. A extensão da influência deste órgão só foi possível devido às divisões entre os líderes eleitos e à fraqueza de governos que se confrontam com o descontentamento interno. Os eurocratas empurraram a agenda climática que comprometeu a competitividade, mas essas elites acham que as trapalhadas que criaram justificam ainda mais influência. A coligação de derrotados continua a dominar o parlamento, como se as recentes eleições não contassem. "Vamos trabalhar com as forças democratas pró-europeias nesta câmara", disse von der Leyen, que tenciona ignorar os partidos ditos extremistas, estes fortalecidos em cada nova eleição, mas que não contam. Insiste-se no centrismo amorfo, na exclusão de uns quantos, a Europa condena-se à paralisia, ignora os seus descontentamentos, é surda e fraca, mas sempre a falar forte.

publicado às 18:49

Condescendência

por Luís Naves, em 22.11.24

A condescendência ocidental impede-nos de perceber a nossa hipocrisia e a forma como os outros nos desprezam. Somos mais puros, os nossos valores são melhores, e como alguém dizia, até somos mais belos. Com esta superioridade instintiva, os ocidentais têm dificuldade em aceitar que a sua ordem mundial está comprometida, que a hegemonia americana já não existe e que emerge um sistema multipolar de potências. A mentalidade colonial não nos deixou inteiramente: é evidente para os ocidentais que, tendo dominado o mundo durante meio milénio, as respetivas culturas são superiores. Tornou-se natural e lógico explorar os recursos de geografias distantes, é o direito do mais forte, chamem-lhe cinismo. Os colonialistas já não existem, mas os impérios ficaram nas mentes. O ocidente abandonou a face cruel que hoje nos repugna, mas continua a extrair os recursos de que necessita usando elites nativas corruptas, exercendo um poder indireto que não tolera rebeliões. Na anarquia que deixámos para trás, existe um vasto arco planetário de estados falhados e guerras civis de que ninguém fala. Exploração de recursos, cinzas imperiais.

publicado às 18:48

Velhos filmes

por Luís Naves, em 19.11.24

Filmes antigos restaurados por IA circulam com abundância nas redes sociais. Vemos cenas urbanas, com cem anos, oitenta anos: pessoas com vestes estranhas e chapéus bizarros olham para a câmara, andam pelas ruas com tranquilidade, alheias ao trovão da história que se aproxima delas. É comovente ver aqueles inocentes, felizes da vida, à beira de catástrofes, prosseguindo os seus afazeres. E penso: estas pessoas viveram até à velhice ou foram atropeladas pelos acontecimentos que não podiam antecipar, mas que estão a poucos meses de distância, ou poucos anos, destas imagens pacatas? Dias antes de um conflito rebentar sem remédio, multidões pacíficas cantavam em coros e vendiam nos mercados, iam à missa ou à sinagoga, amavam, estudavam e trabalhavam, escutavam o sermão e liam em casa, passeavam de comboio e andavam pelos parques. O mundo ia mudar, mas eles não sabiam que a civilização era frágil. Alguns tinham meses para viver e não podiam imaginar que em breve aquelas praças, aqueles edifícios, tudo estaria em ruínas. Seremos talvez como eles, cantamos em concertos de Natal sem sabermos que será porventura o último, circulamos serenamente nas ruas ameaçadas por bombas atómicas.

publicado às 11:46

A guerra está perdida

por Luís Naves, em 18.11.24

Parte da opinião pública continua a aceitar tranquilamente que o complexo militar-industrial americano leve o mundo para o desastre. De peito cheio, muitas pessoas parecem dispostas a morrer por causa da Crimeia. Três anos de condicionamento mediático deram nisto: aceita-se o fim da civilização em nome dos interesses disfarçados das Blackrock da vida. Ao autorizar o uso de armas de longo alcance, Biden deixou uma gigantesca armadilha para o seu sucessor, cujas promessas eleitorais de acabar depressa com a guerra na Ucrânia serão mais difíceis de cumprir. Nos jornais globalistas surgem os primeiros textos a comparar a vontade de Trump com o inevitável Neville Chamberlain. A comparação obriga-nos à guerra e não permite abertura negocial ou qualquer razoabilidade diplomática. A guerra está perdida, a estratégia ocidental de cortar a Rússia em três fragmentos (Rússia europeia, Sibéria e Extremo Oriente) fracassou de forma clamorosa. Está na altura de sair disto, pois morrem centenas de pessoas por dia. A Ucrânia terá estatuto de neutralidade e a perspetiva de adesão à UE, a Crimeia fica território russo. É preciso parar, mas o estado profundo quer ter a última palavra.

publicado às 10:55


Autores

João Villalobos e Luís Naves