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Pedaços do mundo e grãos de areia
Pequena reflexão sobre a escrita de diários: em primeiro lugar, este género de texto serve sobretudo os interesses de um único leitor, o próprio autor, que pode conferir aquilo que escreveu antes sobre um certo tema ou sobre um período da sua vida. As intimidades são inúteis. As memórias embaraçosas não têm aqui lugar. Remoer ideias não serve para nada. Publicar um diário teria apenas interesse se houvesse poucos leitores, se o autor dissesse alguma coisa de especial, se fosse um bom testemunho da época. Um diário com muitos leitores tem o interesse de uma vida excecional ou dos mexericos, sendo que estes envelhecem mal. Opiniões literárias sobre escritores esquecidos? Qual o interesse? Conta-Corrente (que é um dos modelos do Fragmentário), tem muitas destas coisas e uma extensão excessiva. Vergílio Ferreira podia ter cortado "as farófias", as picadelas do meio literário e as historietas íntimas difíceis de entender. Ao Diário de Torga falta a observação da época (talvez não pudesse publicar o que pensava). Enfim, editar e cortar este diário parece desnecessário. Escrevo para mim e já só leio uma em cada três entradas. O resto é palha até para o autor.
Publico neste blog um quinto daquilo que escrevo diariamente.
Para que servem as opiniões? Agora, é igual ao litro, como se diz. As conversas inteligentes estão a extinguir-se e isso faz parte da nossa época de extremos, uma época em que não se termina um raciocínio, sendo tudo reduzido a fragmentos consumidos fora do contexto, transformados pela maldade da interpretação abusiva. Triunfa a ideia defensiva embrulhada em papel colorido, o pensamento fácil e superficial para consumo das massas. Não queremos dificuldades, que alguém nos lembre que isto não começou no vácuo e que deviam ser consideradas subtilezas. As opiniões deixaram de ser respeitadas, a conversa civilizada desapareceu, todos querem ouvir o eco dos seus pensamentos, a confirmação das suas visões, por mais estreitas que sejam. As opiniões que mais contam, agora, são aquelas que limitam o pensamento dos outros, que condenam e encontram defeitos. Para mais, fala-se para encher tempo de antena, atiram-se coisas para o ar. O que não é memorável perde inércia e é devidamente esquecido. Ficam apenas as impressões, não vale a pena dizer o que se pensa, é como falar na rádio, mas na frequência errada, onde ninguém está a escutar.
Leio textos anteriores deste Fragmentário e, em muitos casos, não entendo bem o assunto que me preocupou. A política envelhece depressa: aquilo que nos surpreendeu era afinal uma brisa a passar levemente. Escrever todos os dias cansa imenso e pode ser inútil. Muitas vezes, caímos na tentação dos factos diversos, da maionese. Podia escrever mais vezes num tom de repórter, mas a minha vida é um filme monótono. As observações seriam triviais, mencionando a gentileza de uma tarde ou o bulício da cidade, a viagem saloia, a reflexão superficial sobre um livro. Podia explicar encontros com os meus contemporâneos, mas sou um eremita e conheço pouca gente. Podia falar das minhas intimidades, mas era um pouco ridículo (quem poderia interessar-se?). Era possível incluir memórias, mas não tenho biografia de jeito e, de resto, a minha memória é péssima. Por isso, escrevo muitas vezes sobre acontecimentos que me pareciam dramáticos na altura, mas que se revelam apenas efémeros. As eleições, o episódio parlamentar, a crise inesperada, as ameaças mundiais, tudo fácil de esquecer. Fascinante nesse dia, mas muita parra para pouca uva.
A ideia de que a Rússia pode ser vencida não se extingue. Foi política oficial dos EUA até Trump vencer as eleições, com a promessa de acabar com o conflito da Ucrânia. Estão agora no poder novos estrategas, segundo os quais "os EUA não têm qualquer interesse vital na Ucrânia", mas o mundo já não é controlado por agentes racionais: as pressões sobre Trump para punir a Rússia intensificam-se. Há políticos a insistir na ideia de que a Federação Russa deve ser derrotada, basta para isso reforçar a estratégia que até agora não funcionou. Fala-se em "sanções devastadoras" contra Moscovo, que podem ser interpretadas do outro lado como declaração de guerra. Os americanos saem do conflito e os europeus assumem a liderança, tudo indica que vem aí um desastre. Deixei de tentar entender os irresponsáveis, mais aqueles que nas televisões aplaudem estas loucuras. Há uma ideia provocatória de Giuliano Da Empoli, segundo a qual vivemos na Hora dos Predadores; parece-me que estamos, sim, no tempo dos perdedores, de uma elite de rara incompetência. A liderança está cega e tonta, é incentivada por patetas. Como os alucinados de 1914, esta gente defende o indefensável, de que uma guerra geral é a melhor coisa que nos pode acontecer.
O Ocidente foi anestesiado com a infinita repetição da hipocrisia. A guerra da Ucrânia é até ao último ucraniano (isto é um lugar-comum, mas infelizmente verdadeiro). No entanto, o massacre continua, já na sua forma desesperada, com o firme apoio dos ocidentais, que chamam resistência à obstinação cega de uma guerra por procuração que pode, a todo o momento, transformar-se em guerra nuclear. Uma das frases contemporâneas mais irritantes é a defesa "dos valores europeus", cuja tradução é na realidade "a defesa dos nossos interesses". Israel ataca em Gaza pontos de distribuição de comida e mata dezenas de pessoas, a população está a ser assassinada à fome ou cai em emboscadas nos santuários humanitários que Israel controla, após impedir todos os que não controla. Onde estão os valores ocidentais? Isto não é em nada diferente do Gueto de Varsóvia, até no silêncio da comunidade internacional. Ao menos, no caso do Holocausto, o mundo podia dizer que não sabia, não o pode fazer neste caso. Sabemos perfeitamente, mas temos as mãos atadas. Ministros israelitas dizem com clareza que até as crianças de Gaza devem ser exterminadas, para que não haja amanhã terroristas. Isto não gera indignações, nem sanções, nem nada. O silêncio, a notícia envergonhada, o encolher de ombros. É assim, já estamos habituados à repetição infinita da hipocrisia.
Ernesto Rodrigues, professor de Literatura e autor, com vasta obra de ficção e de ensaio, publicou aqui uma crítica ao meu livro Almas Artificiais. A leitura do texto poderá interessar a quem frequenta este blog ou a quem conhece os meus livros. Almas Artificiais é a minha primeira colecção de contos. A obra pode ser adquirida na Livraria Martins do espaço Time Out ou neste endereço.

Convido os leitores a participarem no lançamento do meu novo livro, esta quinta-feira, dia 29, às 18 e 30, na Casa da Imprensa, em Lisboa, rua da Horta Seca, 20, junto ao Largo de Camões. A apresentação da obra será feita pelo escritor Ernesto Rodrigues. Fora do circuito das editoras tradicionais e do sistema literário, não poderei proporcionar o evento mediático que todos esperam. Trata-se igualmente de um livro de contos, formato que não é apreciado no chamado mercado da literatura. Havendo grandes autores portugueses que escreveram excelentes histórias de curta dimensão, o facto é que em Portugal o conto continua a ser subestimado. Os editores dizem que não vende e os autores evitam escrever prosas pequenas, dada a reduzida probabilidade de publicação. Para piorar o cenário, este meu livro, Almas Artificiais, inclui várias histórias de fantasia, género pouco popular na nossa literatura, que tem o gosto do realismo, do floreado e do delico-doce. Com toda a franqueza, a situação é ainda pior, pois neste livro não se encontram ideias piedosas politicamente corretas nem são defendidas grandes causas humanitárias. Haverá certamente leitores perplexos, que se vão interrogar sobre os motivos do autor. Qual era a intenção? O que pretendeu dizer? Lamento, mas não tenho resposta.
Revejo-me cada vez mais nos valores que a igreja moderna defende: a rejeição do materialismo, a ideia da paz, a crítica do vazio. O mundo contemporâneo está a produzir demasiadas almas infelizes, tem maior número de gente desorientada, e os meios de comunicação participam ativamente na destruição niilista. A desordem parece ser conveniente para alguns interesses insaciáveis. Por todo o lado, cresce a rejeição das tradições, vemos a ridicularização das crenças e surge uma triste ideologia sem conteúdo que procura impor a desumanização e a anestesia dos prazeres. De que nos serve ter uma vida desfocada? As novas bandeiras são a miséria moral e o desprezo pelo outro. Tudo isto é feito em nome da liberdade, mas emerge das cinzas da destruição do passado uma sociedade feia e agressiva. Vivemos hoje no salve-se-quem-puder. Os vulneráveis serão ainda mais vulneráveis e os poderosos terão mais poder. A dívida insustentável aprisionou os povos e as clivagens sociais aumentam. A sabedoria e a coragem perderam-se, substituídas pela estagnação medíocre, a banalidade espetacular e o declínio da civilização.

Era quase impossível não gostar das histórias que ele inventava, sobretudo quando começava a falar de princesas, sabres de luz, batalhas espaciais grandiosas, cavaleiros místicos e outras maravilhas. As pessoas acreditavam, talvez por terem alguma esperança de que o império seria um dia derrotado e acabaria a ocupação. Toda a gente sonha com a liberdade e ninguém aceita esperar uma geração pelas suas promessas. No que lhe dizia respeito, pensava que a desobediência era inútil, por isso preferira desertar, ao contrário do amigo, que acabara mobilizado para combater nas guerras da periferia. Um ficou no planeta pobre, o outro partiu rumo à glória. O que se passava na galáxia era distante, talvez por isso o seu amigo tenha inventado a destruição da estrela da morte e os combates desesperados na base abandonada e o duelo com o próprio imperador e todas as outras lendas que, narradas durante as noites frias, faziam brilhar os olhos dos miúdos. Às tantas, naquelas alucinações da imaginação, Obi Wan já era o mestre que transformara o aprendiz em herói eterno, talvez por ser uns anos mais velho. E, no entanto, nunca o repreendeu, nunca o interrompeu para dizer que os acontecimentos tinham sido diferentes. Obi Wan escapara uma noite do quartel, o amigo recusara fugir e foi levado no dia seguinte num transporte imperial. Não chegou a combater com a resistência nem conheceu princesas. Aliás, a resistência nunca existiu. Os imperiais lutaram contra a Primeira Ordem e o amigo foi gravemente ferido na segunda batalha em que participou. Sobreviveu dois anos em hospitais militares, recebeu implantes, cicatrizou lentamente as feridas, foi desmobilizado e regressou a Tatooine, um pouco louco. "Somos camponeses", dizia-lhe Obi Wan, "temos tempo para que tudo mude", mas Luke Skywalker não queria ouvir, mantinha-se fiel às suas fantasias. "Temos de continuar a lutar", dizia, quando se separava de Obi Wan e se afastava pelas ruas estreitas do mercado, mergulhado nos seus delírios, a coxear muito, cheio de dores das profundas feridas que recebera em guerras alheias.
imagem gerada por IA, Night Café
Israel decidiu expandir a operação militar em Gaza e está a mobilizar dezenas de milhares de reservistas. A situação no território é desesperada, a infraestrutura reduzida a ruínas e a ajuda humanitária bloqueada há mais de oito semanas. Dois milhões de pessoas estão literalmente a morrer de fome e sede, perante o silêncio da chamada comunidade internacional. O horror é total e os desalmados dirigentes israelitas vão aumentar a violência. Não há comida, combustível, água potável, medicamentos. Os bombardeamentos continuam, sem que se vislumbre algum esforço para negociar a entrega dos reféns ainda vivos, pouco mais de vinte. A única estratégia é matar o máximo de palestinianos. Se assistimos a um crime no século XXI, pois ele aí está, o mundo a encolher os ombros, o massacre ao vivo e a cores, a teoria racial triunfante e o desprezo pelos desumanizados. Os cristãos queixam-se, mas não serve de nada. Os ativistas queixam-se, mas não serve de nada. Os palestinianos nem sequer têm voz para se queixar, vivem num gueto e são bombardeados; mulheres, crianças e velhos iguais aos combatentes, simples alvos. Isto já não é uma limpeza étnica, é muito mais.