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por Luís Naves, em 01.11.18

Hoje havia na minha rua uma revoada de pássaros zangados, mas não fiquei para ver a geografia nacional dos periquitos enfurecidos que andavam a assediar os pobres dos pombos. Com os seus bicos duros, os invasores voavam em formações de bombardeio picado e as pombinhas da paz fugiam numa aflição, batendo fragilmente as asas no ar frio. Percebia-se na perfeição quem eram os agressores, com os seus chilreios e gritos, as tangentes, os mergulhos, os assobios, súbitas mudanças de direcção e ataques quase perfeitos. Os pombos, coitados, arrulhavam e gemiam, submetiam-se como pássaros obedientes, sussurravam, dando à sola, por assim dizer depenados, perante o palreio das gargalhadas da passarada triunfante e, claro, sob o olhar distraído dos transeuntes que passavam no chão, com leve interesse na farfalhuda guerra das alturas e alguma simpatia pelos periquitos vencedor

publicado às 11:09

A intolerância portuguesa

por Luís Naves, em 30.10.18

Por todo o lado, sobre os assuntos mais corriqueiros, é possível observar a tendência para a irrelevância, para o pensamento mágico, para a reflexão de sacristia. As pessoas repetem ideias feitas e recitam argumentos moles. Nas redes sociais, ninguém quer destoar das boas intenções, o que não teria mal algum, se não fosse a imposição de uma mentalidade dogmática, quase feroz, que não tolera o mínimo desvio da ortodoxia. Se calhar, Portugal nunca deixou de ter uma sociedade incapaz de suportar a dissidência, o espírito inconformado e a percepção inquieta, tal como vemos nos velhos romances de Camilo, onde as personagens muitas vezes esbarram com hipócritas, pregadores de banalidades ou estreitas visões fradescas. Não tenho boas explicações para a intolerância portuguesa: talvez seja o nosso provincianismo, o atraso, o pouco hábito que temos de pensar pela nossa cabeça, ou antes, o desincentivo que existe para que cada um pense pela sua cabeça, pois que a independência é sempre olhada com desconfiança.

publicado às 12:01

Os ciclos do poder

por Luís Naves, em 29.10.18

O poder tem regularmente grandes viragens, ou inversões de ciclo, quando os eleitores rejeitam a ordem vigente e escolhem, no meio de grande resistência, uma nova geração de políticos que reflecte a nova geração de pessoas. Estamos a assistir a uma dessas viragens regulares, muito semelhante à que ocorreu no final dos anos 70, inícios dos anos 80, quando os governos do mundo industrializado foram varridos pela vaga liberal, na altura chefiada por Margaret Thatcher e Ronald Reagan. Tudo o que recordo desse tempo é semelhante ao que vemos agora. A simples intenção de tentar perceber os factos suscita reacções de grande violência retórica por parte daqueles que não aceitam qualquer mudança e que tentam defender o mundo anterior. E, no entanto, as sociedades viram as páginas que querem virar, e não vale a pena tentarmos negar o óbvio. Em várias democracias avançadas, (o movimento começou no Reino Unido, alastrou aos Estados Unidos) significativas franjas do eleitorado rejeitaram a ordem instituída e votaram a favor de projectos nacionalistas, que defendem o recuo da globalização, a limitação das migrações, o regresso daquilo a que chamam os valores tradicionais, além do reforço da soberania, incluindo no plano económico. Esta é, de alguma forma, a inversão do ciclo liberal da era de Reagan e Thatcher, mas há também a recusa veemente dos avanços sociais ligados ao maio de 68, os quais visavam contestar as estruturas da autoridade e negar a moral dominante. A ordem instituída (jornalismo, mercados, partidos) tenta travar a enxurrada diabolizando o adversário emergente. Foi o que aconteceu nos anos 80, quando o tsunami liberal era classificado abaixo de fascismo. A definição era errada e o novo poder alastrou um pouco por todo o lado, tornou-se a ortodoxia, acelerou a globalização, derrubou o Muro de Berlim e, agora, depois de mostrar os seus limites na Grande Recessão, é a velha ordem que ameaça ser substituída.

publicado às 19:33

Anacleta

por Luís Naves, em 18.10.18

O romance Mistérios de Lisboa contém uma deliciosa novela de 50 páginas entre os capítulos VIII e XV do segundo livro, uma história autónoma sem título, enfiada a meio (estou a ignorar o epílogo nos capítulos XVI e XVII, que faz a ligação às narrativas seguintes). Trata-se de um crime perfeito, devidamente castigado pelas forças do destino na pessoa de uma inocente, mas o que mais me interessou foi a personagem principal, Anacleta, figura rara em Camilo, a contrariar a tendência do escritor de criar mulheres mais parecidas com jarrões chineses, vítimas inocentes ou loucas. Sensual e determinada, inteligente e corajosa, Anacleta também é maléfica, mas toda a maldade vem das suas violentas paixões. A novela é quase policial, podia ter sido o primeiro exemplo do género na literatura portuguesa, caso CCB tivesse explorado a investigação do crime, apenas aflorada.

publicado às 19:01

Incapazes de explicar a desordem...

por Luís Naves, em 15.10.18

Entre muitas leituras caóticas, encontro textos de opinião que revelam a crescente perplexidade dos seus autores em relação à mudança política em curso, que alguns identificam como a crise da ordem liberal. Esta mudança é generalizada, pois um pouco por todo o mundo democrático surgem votações surpreendentes, viragens à direita, derrotas inexplicáveis de progressistas, crispações políticas inesperadas, cenas de histeria, candidatos extremistas, discursos sem precedentes. Da Baviera à Suécia, do Brasil à Polónia, dos Estados Unidos à Itália, os cenários baralham-se de forma rápida. A opinião publicada tem duas teses principais: a alucinação dos eleitores e a perversidade das redes sociais. Ambas levam ao mesmo corolário: se as pessoas não sabem votar, suspendam-se os processos eleitorais. Fico sempre surpreendido com estas opiniões, que estão a generalizar-se na discussão nacional. Custa-me ver liberais que, em nome da defesa da democracia, criticam a livre opinião dos cidadãos e as suas escolhas livres. Incapazes de explicar a desordem e o grau de descontentamento dos eleitores, os progressistas estão a banalizar conceitos, acusando cada novo adversário de ser fascista, como se o fascismo pudesse ser banalizado.

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publicado às 12:03

Outros tempos

por Luís Naves, em 14.10.18

Acabaram os tempos em que os jornalistas eram senhores apaparicados pelos poderosos, tratados com salamaleques, cuidados, sorrisos e simpatias. Agora, trabalha-se à jorna, entra-se pela porta do fundo, os jornalistas não são respeitados e espera-se deles muito pouco. O jornalismo é semelhante ao que foi no tempo do anterior regime (segundo os relatos da velha geração) feito por “colaboradores” mal pagos e obedientes, que vivem no receio de perder o emprego, ao cometerem algum erro que irrite as sumidades. Claro que não estou a falar das vedetas.

publicado às 18:46

Os museus do futuro

por Luís Naves, em 12.10.18

Não existe notoriedade artística sem o cumprimento de certas regras de sobriedade política, toda a gente percebe isso, mas há certa tristeza inútil no exercício: ao longo das respectivas vidas profissionais, 200 artistas produzem qualquer coisa como 100 mil objectos. Quantos destes objectos contemporâneos vão caber nos museus do futuro? Uma centena? Se for calculada uma média de 40 anos de actividade para cada um destes artistas, teremos 2500 obras de arte produzidas anualmente, sendo que destas, talvez dez consigam quebrar a barreira do tempo. De cada época, na geração seguinte, sobrevive menos de um por cento da arte nacional produzida. Na geração posterior à seguinte, um décimo disso, e por aí fora, até à depuração secular, onde restam cinco ou seis livros e uma dúzia de pinturas por cada século, fora o que possa ser considerado antiguidade ou velharia.

publicado às 12:25

Insatisfação

por Luís Naves, em 03.10.18

Continuo adiado, a vida suspensa, a espera interminável, a meio do labirinto. Acumulam-se as páginas por publicar e vou sonhando com textos que não chegarei a escrever, enquanto escrevo outros que parecem sofríveis ou inúteis. Vou mantendo a cabeça fria. Nem sei bem como cheguei aqui, mas deve ser um fado qualquer, algum mal terei feito para merecer o castigo, pois não me parece justa a explicação habitual de que o país é assim e maltrata os seus melhores, ou talvez não deva ter a veleidade de me incluir entre esses que a pátria rejeita, lá está, é o excesso de orgulho que me persegue, essa constante que, vendo bem, me definiu, resultando em que falhei em quase tudo o que fiz, fiquei sempre distante, muito longe até, do que podia ter sido. A história da minha vida, esse intransponível abismo que vai do homem à realidade que ele sonha.

publicado às 09:43

A captura das instituições

por Luís Naves, em 02.10.18

O maior problema da democracia não está em reconhecer a vontade popular. Essa questão sempre existiu e os políticos que a ignoram estão por sua conta e risco, condenados à inevitável punição eleitoral. O maior problema das democracias contemporâneas está na captura das instituições por interesses especiais. Todos os conflitos importantes a que assistimos têm a ver com este fenómeno: minorias mobilizadas, com influência nos meios de comunicação, nos partidos, nos mercados ou nas academias, tentam conquistar posições de controlo nas instituições que regulam a sociedade, manipulam nomeações ou travam políticos emergentes, ignorando todas as opiniões contrárias. A política transformou-se numa luta permanente, onde grupos diferentes tentam impor as respectivas agendas a todas as instituições, pequenas e grandes, sejam órgãos políticos ou associações, escolas ou empresas, júris de concursos ou cargos de liderança, espaços de comentário e até nas organizações que nada representam, mas que podem tornar-se úteis para a causa.

publicado às 11:48

Arte e censura

por Luís Naves, em 29.09.18

Discute-se muito se os penduricalhos de Mapplethorpe são arte ou censura. Podíamos talvez discutir o estado da arte, os teatros vazios e os teatros fechados, as livrarias a abarrotar de subprodutos, a indigência do cinema, as instituições subfinanciadas, a falência imparável dos jornais. Devíamos questionar o estado da arte, se temos uma literatura exportável, se as bibliotecas renovam as coleções, se os museus estão seguros, se os artistas nacionais trabalham de borla, se o ensino artístico melhorou ou se é melhor que os talentos procurem outros países. Podíamos discutir isto, mas mergulhámos numa espécie de sonambulismo, a debater os méritos da fotografia americana, tema que teria inegável interesse, se os bárbaros não estivessem já instalados deste lado da muralha.

publicado às 11:46



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