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Pedaços do mundo e grãos de areia
Numa carta de 1932 enviada a John dos Passos, Ernest Hemingway dava conselhos ao amigo sobre a construção de personagens: “Devem ser pessoas, pessoas, pessoas, e não permitas que se transformem em símbolos”. É curioso que Hemingway tenha abordado o tema em outra ocasião quase com as mesmas palavras: “Quando escreve uma novela, um escritor tem de criar pessoas vivas; pessoas, não personagens”.
Encontrei estas citações num livro que reúne textos de Hemingway sobre escrita e fiquei intrigado com a carta a John dos Passos, pois a questão não se colocava, não era de todo um problema evidente na prosa do autor da trilogia USA. Pelo contrário, vendo bem, Hemingway mencionava na carta a sua própria limitação. Ele deu também conselhos a Scott Fitzgerald, a quem enviou comentários cruéis, tendo em consideração os múltiplos problemas pessoais e a insegurança doentia do amigo. A crítica a Terna é a Noite começa assim: “Gostei e não gostei”.
A amizade com Dos Passos (autor de origens madeirenses) foi uma das mais sólidas da chamada ‘Lost Generation’. Os dois escritores americanos conheceram-se em Paris, depois da primeira grande guerra, mas tinham vários pontos em comum: eram ambos da esquerda radical, tinham conduzido ambulâncias durante o conflito e adquiriram em conjunto uma paixão por Espanha (Dos Passos dominava bem o castelhano).
Os dois escritores estiveram também envolvidos na Guerra de Espanha, como repórteres e activistas, e foi ali que a sua amizade acabou. A questão envolveu um amigo e tradutor de John dos Passos, um académico chamado José Robles, cujo desaparecimento em 1937 levou o escritor americano a fazer demasiadas perguntas. Robles fora fuzilado em Valência, acusado pelos comunistas de ser espião fascista, e Dos Passos compreendeu parcialmente a conspiração que tinha levado ao crime. O seu amigo espanhol era poliglota, falava russo e trabalhara como intérprete de um general dos serviços militares soviéticos que entretanto caíra em desgraça em Moscovo. O tradutor espanhol fora vítima colateral de uma purga estalinista, eliminado devido aos segredos que conhecia.
John dos Passos indignou-se, mas Hemingway não se incomodou. Para ele, o importante era a causa, não o traidor. Aliás, Hemingway nunca mais falou com Dos Passos e aproveitava todas as ocasiões para insinuar que este fugira de Espanha devido à cobardia. Na realidade, fugira para evitar ser ele próprio preso e talvez fuzilado, como acontecera a Robles.
Este caso é bem contado num livro de Ignacio Martinez de Pison, Enterrar os Mortos, onde fica claro que Dos Passos era um homem de enorme dignidade e bem mais corajoso do que o seu amigo Ernest Hemingway, em relação ao qual nunca teve aliás qualquer demonstração de rancor.
Do ponto de vista literário, Hemingway tinha a obsessão de evitar personagens cheias de artifícios e sem verdadeira humanidade (usava a palavra inglesa phony, falso), talvez por saber bem que ele próprio era falso, no sentido de exibir a falsa personalidade de fanfarrão indestrutível e esconder ao mesmo tempo a verdadeira natureza de homem inseguro na sua arte.
Isto é nítido em vários dos melhores contos e, por exemplo, em Por Quem os Sinos Dobram, onde temos várias personagens, mas nenhuma pessoa * (pelo menos no critério do próprio Hemingway), sendo os guerrilheiros pouco mais do que símbolos que ilustram a luta. Podemos dizer o mesmo sobre o pescador, em O Velho e o Mar.
Hemingway era um escritor poderoso a criar ambientes e a fantasiar sobre a natureza humana, sendo que a fantasia não era de todo o terreno de John dos Passos. A objectividade cinematográfica deste produzia um realismo jornalístico, nada sentimental e ao mesmo tempo bastante rude. O inverso daquilo que fazia Hemingway, que continha as emoções dentro de um estilo muito belo, depurado e subjectivo, falsamente simples, falsamente jornalístico.
A foto em cima foi tirada na época da ruptura entre os dois amigos (Dos Passos à esquerda, Hemingway à direita), mas a separação não constitui um mero dado biográfico e teve profundo impacto na obra de ambos. Hemingway é ainda hoje um dos escritores mais influentes da literatura de língua inglesa (e não só). Dos Passos evoluiu politicamente para a direita, pelo menos assim diz a lenda. Ele não via a questão dessa forma, afirmando que apenas rompera com o radicalismo da esquerda, pois este radicalismo, na sua opinião, destruía a liberdade.
O escritor, famoso até ao incidente em Espanha, foi sendo apagado da literatura, ignorado pelos críticos, por Hollywood e pela generalidade dos académicos.
Este episódio será talvez um dos melhores exemplos do preconceito de esquerda que persiste na cultura e que se traduz, na prática, no silenciar de autores associados a ideias de direita e ao processo inverso para muitos da esquerda que podiam ser considerados menores. Este preconceito, que hoje não é exactamente de esquerda, mas também das causas politicamente correctas, tem forte impacto na circulação das ideias, sendo preferível para alguns intelectuais a adopção de uma linguagem que evite toda a polémica. Há igualmente exemplos (raros) de autores que, para darem nas vistas, escolheram a via do escândalo, mas isso não altera o essencial: os intelectuais com ideias consideradas de direita têm dificuldade em fazer ouvir a sua voz e, como foi o caso de Vargas Llosa, chegam ao Nobel sempre atrasados.
Numa entrevista à Paris Review, (aliás tardia, em 1968, apenas dois anos antes de morrer) se em John dos Passos existia amargura em relação ao esquecimento que lhe fora imposto, ela era invisível. A imagem que transparece é a de um escritor tranquilo, que tenta desculpar Hemingway, embora lamentando a crueldade deste em relação a Scott Fitzgerald. Na mesma entrevista, questionado sobre se era um escritor incompreendido na América, Dos Passos admitiu que sim e deu uma resposta lapidar, em defesa da autenticidade e nos antípodas da literatura de artifício: “Quando se lida com assuntos que tocam as pessoas, é previsível que se cause alguma dor. Em particular, se atingimos um alvo que está perto da verdade, isso causa sempre dor e agonia. Naturalmente, há quem não tolere isso”.
*Não é por acaso que na adaptação ao cinema a personagem principal é interpretada por Gary Cooper