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Conto da semana: Nas vilas pequenas

por Luís Naves, em 13.12.13

 

Fazia tudo para que os outros o vissem como pessoa de grandes qualidades pois, no fundo, tinha medo que pensassem mal dele. Em certa ocasião, metera-se na política, mas se procurou ali o conforto do respeito, enganou-se redondamente. Escolhera mal o partido e isso valeu-lhe dissabores, quando se viu na oposição e, sobretudo, com menos clientela. A mulher, Leonete, convenceu-o a deixar-se dessas parvoíces, mas ele ficara com o bichinho da ambição, ideia que lhe fazia constante comichão na cabeça e que não conseguia de todo afastar do núcleo dos pensamentos íntimos: Figueiró era demasiado pequena para ele.
   Como é que eu sei disso? Sei porque fui seu confidente. Um dia, contou-me tudo sobre os fantasmas que o atormentavam. Tínhamos bebido em demasia; ele tinha, certamente, eu estaria mais sóbrio. Nessa noite, revelou-me o coração frustrado, mas só nessa ocasião. Em Joel, era como se houvesse uma mágoa mais profunda a dirigir as coisas.
   − Falhei em tudo, − disse-me ele.
   Embora a nossa amizade tenha sobrevivido àquela confissão, Joel nunca mais falou comigo com a mesma franqueza. Não podia ser de outra forma. É assim nos lugares mais pequenos: convém guardar tudo bem aferrolhado na alma ou um dia o mundo saberá das nossas mazelas.
   Quem venha de fora e passeie um bocado por Figueiró, ao fim de dez minutos estará a repetir ruas. A vila tem um jardim, a escola secundária nova e sem alunos, os correios, uma igreja com torre de sino e a câmara municipal. As casas são baixas, no máximo com dois andares, algumas com loja. As ruas mais compridas são as que acompanham as estradas de saída; uma delas desce para o vale e as casas andam coladas à estrada. Em Figueiró não há muito para fazer, excepto a missa de domingo, as horas passadas no café a ver a bola, a feira às sextas, os passeios no jardim.
   Joel fazia esta vida, arrependido de ter ficado na terra onde nascera. Havia meses em que ninguém aparecia no escritório de advocacia. Felizmente, não pagava renda e tinha as propriedades para gerir. Ao todo, oito nas redondezas, mais as quintas em outras duas aldeias, o que lhe dava rendimento suficiente. Embora se considerasse advogado, era na realidade um agricultor. Chegara a pensar lançar-se no comércio, mas desistira. Aliás, desistira de muitos entusiasmos anteriores.
   Algumas pessoas viam nele apenas o tipo fracassado, que prometera muito e fizera pouco. Quando não estava presente, aproveitavam para o desdenhar, pois havia também alguma inveja, ou antes, satisfação, pois a promessa esfumara-se e agora parecia mais um igual aos outros, a voar baixinho. Adivinhava-se esta sentença também na maneira como o calavam quando se lançava numa explicação qualquer. No passado, sobretudo na universidade, em Coimbra, ofendia-se facilmente com estas interrupções: ainda não tinha acabado a frase e já ouvia a objecção do interlocutor. Mal abria a boca, mal explicava a sua ideia, e já o contradiziam, quase sempre antes de poder explanar completamente o seu ponto.
   Na famosa confissão, com uns copos a mais, queixou-se muito disso: antes de casar com Leonete nunca se apercebera que a rapariga o interrompesse nas conversas. Talvez fosse cegueira temporária ou má avaliação, algo assim, mas o que verificou depois de casarem foi a incapacidade de terminar uma frase. Não houve transformação súbita, nada disso, apenas um daqueles processos lentos que ocorrem por vezes nos casamentos e que mudam as pessoas sem que elas possam sequer aperceber-se da mudança. No seu caso, Leonete perdeu devagarinho a beleza fulgurante que tivera antes da boda e ficou faladora e petulante. Joel tornou-se ensimesmado e deixou de se ofender quando alguém, desvalorizando a sua opinião, o interrompia.
   Agora, que tinha dois filhos, um rapaz de oito anos e uma menina de seis, a sua vida era tranquila e passava devagar. E, no entanto, Joel nunca deixou de se preocupar com aquilo que os outros pensavam dele. Era a sua principal fraqueza, ao lado da solidão pachorrenta e da insatisfação nas tardes frouxas, entre os muros limitados de Figueiró. Ele sentia ali o tempo desperdiçado em pequenos nadas e sonhos vagarosos, como se fosse água a correr na fonte.


 

O tribunal da comarca ficava a 30 quilómetros, numa cidade de certa dimensão, bem situada já na planície, na estrada de Aveiro. Numa altura em que estava bom tempo, Joel começou a dar a desculpa de que tinha de ir ao tribunal. Isto durou uns meses; a princípio, ia uma vez por semana, depois já o fazia quase todos os dias. Saía às oito, de carro, e chegava ao fim da tarde. Se alguém lhe perguntava qual era o assunto tão importante, ele fazia ar sério e refugiava-se no segredo profissional. Um dia, Leonete questionou-o se o assunto avançava e ele respondeu:
   − Assim, assim. Sabes como é a burocracia judicial…
   Um dia, foi visto por alguém que também tinha ido à sede da comarca, um tal Marques, que era um inútil. Joel estava no jardim. Parecia estar ali à espera, enquanto lia um livro. E, quando o vizinho já se dispunha a aproximar-se, para o cumprimentar, surgiu uma mulher, ele levantou-se e os dois abraçaram-se. Foi um gesto rápido, que a testemunha ia contando com detalhes cada vez mais picantes. Às tantas, já era um beijo na boca, como nos filmes.
   − Beijaram-se no jardim e ela era um mulheraço. O doutor Joel anda consolado, é o que vos digo, − afirmou Marques, para quem quis ouvir, que era toda a gente.
   Como não tinha clientela, Joel não notou alterações na sua prática de advocacia, mas o mesmo não sucedeu nos negócios agrícolas. Quis vender uns animais e toda a gente lhe torceu o nariz, depois foi o rendeiro de uma propriedade que pediu desconto, usando maus modos e até um sorriso sobranceiro. Os rumores tornaram-se insistentes e depressa chegaram aos ouvidos de Leonete, mas ao contrário do previsto, ela não armou nenhum escândalo.
   O episódio foi amplamente discutido na praça pública e Joel deixou de ser cumprimentado na rua. O filho mais velho veio uma vez da escola a sangrar do nariz, mas não explicou o que acontecera. A menina chorava por tudo e por nada. E Leonete deixou de lhe falar e ele não se atrevia a perguntar-lhe o que se passava.
   Escolheu-me para fazer a pergunta fatal. Veio cheio de rodeios, com medo daquilo que eu poderia pensar dele. Nas traseiras da escola, o recreio prolongava-se num arroio encantador, com arvoredo e vazio de gente; fomos por ali a conversar, enquanto caminhávamos. E foi nesse local que lhe contei tudo sobre as suspeitas da população, que alguém o vira a beijar uma mulher no jardim da sede da comarca e ninguém acreditava que tivesse assuntos a tratar no tribunal.
   Para meu espanto, ele não tentou negar, nem sequer tentou explicar. Agradeceu-me a honestidade e ficou calado. Voltámos à escola, recomecei as aulas e Joel foi à sua vida.
   Nos meses seguintes, houve uma pequena transformação. Acabaram as visitas do advogado à sede da comarca e as coisas acalmaram na casa. A vila foi esquecendo o episódio e, de alguma forma, Joel foi perdoado de todas as suas faltas. Nas conversas de café tornou-se claro que ele se livrara da amante, antes assim, o mundo está cheio de desavergonhadas a perseguir maridos alheios.
   No verão seguinte, Joel pensou em voltar à política e quis a minha opinião. Pedindo permissão para falar com franqueza, disse-lhe que tentariam reanimar aquela situação entretanto esquecida, usei mesmo a expressão “a tua escapadela”. Foi o eufemismo que me ocorreu.
   − É o que pensas? Que eu tinha uma amante?
   Acenei com a cabeça. Era o que eu pensava.
   Joel ficou em silêncio. Estranhei o sorriso enigmático. Podia ser de censura ou de alívio. Era como se tudo aquilo fosse uma farsa e só ele soubesse. De súbito, passou-me pela cabeça que aquela história podia ser contada de muitas formas. Tudo se baseava numa única testemunha e não sabíamos o que Marques vira de facto. Podia ser um abraço ou um beijo, o homem podia ter inventado tudo. E se o testemunho fosse combinado? Não era impossível. Um simples equívoco, uma pista falsa, poeira para esconder a verdade?
   Tudo isto me ocorreu, como num relâmpago que, de repente, ilumina e, depois, desaparece.
   Joel não me deu mais explicações e, após hesitação de semanas, optou por se candidatar às eleições municipais. Nunca percebi as razões de não ter negado o boato, se é que se tratou de boato. Talvez considerasse que ninguém ia acreditar numa versão inocente. As pessoas pareciam preferir um homem capaz de ter amantes e, nos sítios pequenos, o que pensam de nós é sempre demasiado importante para ser deixado ao acaso. Assim, a pairar aquela estranha dúvida sobre a sua biografia, era porventura mais confortável para ele e o facto é que passou a andar mais contente com a vida obscura que tinha. Não venceu as eleições, mas teve alguns votos e ganhou até clientela. Nas conversas de café já não diziam tanto mal dele e juro que vi o Joel por várias vezes a passar na rua com ar feliz. 
 

publicado às 18:58



Autores

João Villalobos e Luís Naves