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Pedaços do mundo e grãos de areia
Eram escusados aqueles velhos anúncios dos jornais com a foto de um desgraçado de ar infeliz a dizer que não tinha cometido o crime que a maledicência do povo lhe atribuía. “Eu, fulano, declaro para todos os efeitos legais que não sou um perigoso comunista”. Imaginem um alemão que publicasse no Volkischer Beobachter “eu, fulano, declaro para todos os efeitos legais que não tenho origem judaica e mais declaro que sempre fui de raça ariana pura”. Também não deveria ser muito eficaz o anúncio no Pravda a dizer “eu, fulano, declaro para todos os efeitos legais que nunca pertenci à clique trotskista e nunca fui espião ao serviço da burguesia e do capitalismo”.
Uma pessoa honesta não precisa de se justificar. A justificação cheira sempre a esturro, sobretudo onde falta a liberdade.
Ando pouco informado e escrevo cada vez menos sobre política e cada vez mais ficção. E, mesmo assim, o meu nome arrasta-se pela lama e surge ligado a uma suposta manipulação blogosférica, a propósito de uma entrevista de Fernando Moreira de Sá.
Alguns frequentadores das redes sociais estão a interpretar as afirmações do entrevistado da seguinte forma: Luís Naves, entre outros, fez parte de uma conspiração para eleger Passos Coelho primeiro-ministro, manipulando redes sociais e a blogosfera, dizendo mentiras. Foi membro de um sinistro polvo e devidamente recompensado. Manipulou, foi ao pote e isso é uma vergonha. Dois outros amigos meus são alvos particulares destas acusações, sendo igualmente culpados do exercício do seu direito à opinião assinada.
A história, tal como vem contada por comentadores apressados, impede a minha defesa, pois se digo que é mentira, lá está ele a manipular. Sempre defendi que política é “convencer os outros”, não enganá-los, mas esta afirmação parecerá cinismo.
Podia escrever “declaro para todos os efeitos legais que nunca manipulei notícias, que sempre assinei os meus textos de opinião, que tenho convicções e nunca defendi ideias em que não acreditasse”, mas esta declaração torna-se inútil. Os leitores convencidos verão sempre o judeu que tenta fugir às leis raciais ou o trostkista manhoso ou o anti-salazarista finório. Não há inocentes que precisem de reclamar a sua inocência.
Esses leitores informados saberão que estou a dissimular, pois a história de que manipulei é a conveniente, parece autêntica, é contada pelo próprio especialista (esqueçam o pormenor de estarem ali misturadas questões diferentes).
Os intérpretes da entrevista acreditam que Passos foi eleito por uma conspiração, não pelo voto livre de dois milhões de portugueses. Fomos todos ao engano, agora é que está explicado. Trata-se de confirmar aquilo que alguns teóricos da conspiração dizem desde o momento da eleição: a legitimidade do primeiro-ministro é duvidosa, por resultar de manipulação. Certos votos não contam e eu não sou mais do que um pequeno figurante nesta imbecilidade.
Dois milhões de votos não contam. Quem elegeu Passos foi um jornalista do DN que escrevia sobre a Síria.
O país enlouqueceu, não é verdade?
Os blogues em que participei e que são referidos na entrevista (Forte Apache, Albergue Espanhol) defendiam Passos Coelho, atacavam o governo socialista da altura, mas todos os textos eram assinados pelos autores (suponho que houve uma excepção muito temporária). Os dois blogues tiveram audiências importantes, da ordem de 2 ou 3 mil diários. Nenhum era monocórdico ou faccioso. Havia autores pró-passos e outros que não se reviam nessa possibilidade de poder.
Eu revia-me e servi muitas vezes de carregador de piano, mas nunca recebi instruções e sempre escrevi com inteira liberdade, como aliás toda a gente. Nunca insultei autores de outros blogues e fui insultado por muitos. Fui atacado de forma feroz por figuras que hoje são ornamentos do chamado ‘passismo’, aliás, passistas desde pequeninos. Os meus textos entre 2009 e 2012 revelam a defesa de uma causa que, na altura, produzia fortes anticorpos.
Há uns tontos que descobrem nisto uma perigosa promiscuidade, pois eu era jornalista na altura. “Declaro para todos os efeitos legais que no jornal onde trabalhei só escrevia sobre revolução árabe e questões europeias e eleições americanas e o mesmo se pode dizer de outros perigosos manipuladores”, mas é inútil referir este detalhe, pois virão os puristas do silêncio dizer que jornalista não tem opinião, jornalista não tem convicções, jornalista é eunuco, que está tudo explicado, o ovo da serpente.
O meu problema, julgo, foi o de acreditar na existência de liberdade de expressão, embora isso seja apenas para quem quiser chamar nomes muito feios aos detentores de órgãos de soberania e deputados da República.
Sim, fui jornalista, passei por um gabinete ministerial e não voltei ao jornal de origem. Deixo aqui uma nota: nunca trabalhei ‘para o relvas’, como alguns referem, trabalhei no Governo de Portugal, no gabinete do ministro-adjunto e dos Assuntos Parlamentares Miguel Relvas. É um pouco diferente, embora para alguns maliciosos este “declaro para todos os efeitos” esconda o triplo homicida: não escrevia sobre política, entrou na política e não regressou ao jornalismo político activo. Percurso muito esquisito.
Enfim, não tendo regressado ao jornal, estou desempregado, e só menciono essa questão pessoal porque nas redes sociais estou a gozar o mel do pote e sou o braço armado do polvo. É um pouco irritante, mas recuso apesar de tudo o estatuto de coitadinho, pois os desempregados não têm lepra.
Não mudei de ideias, não sou troca-tintas, isto nem sequer é teimosia. Quem leia o Fragmentário saberá que continuo a defender o que defendi no passado, com argumentos e no exercício da minha liberdade, da qual não abdico, por mais abruptos que sejam os ataques dos políticos profissionais.
Podia dizer tudo isto, mas sei que não vale a pena. Há pessoas que ficam queimadas pelo que não fizeram. É o meu caso. A destruição do meu carácter e da minha reputação condena-me ao desemprego e ao silêncio. Seja, conheço histórias piores.
Podia calar-me e talvez não me importunassem, mas não está na minha natureza. Acrescento apenas que não mudaria o essencial do que escrevi no passado, embora saiba que também esta frase vai ser interpretada como mais um “declaro para todos os efeitos legais que não mudo as minhas convicções e que continuarei a dizer aquilo que penso”. Enfim, carpe diem.