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Pedaços do mundo e grãos de areia
Quando começaram a fabricar aqueles androides perfeitos, o público não ligou muito, era apenas mais um avanço na tecnologia. Mas estas máquinas não se limitavam a ser baratas, tinham feições belas, a ponto de se distinguirem das pessoas de uma forma positiva: andavam mais direitos, tinham vozes maravilhosas, pareciam sumptuosos e cintilavam, usavam apenas palavras amenas e simpáticas, eram inteligentes e prestáveis. Não tinham borbulhas ou sinais de pele, não tinham qualquer mancha ou falha, pelo contrário, eram sedosos e simétricos até à pureza, sem riscos ou amolgadelas. Estes modelos pareciam obras de arte, como no passado foram os relógios mais finos. Na conversação, os novos robôs eram encantadores e sensatos, nunca conseguiam dizer um disparate, como acontece com qualquer pessoa. No trabalho, não podia haver alguém mais diligente do que o mais preguiçoso entre eles, eram sempre incansáveis e organizados. Depois, tinham as qualidades que a humanidade está a perder, a nobreza, a lealdade, a sabedoria e a honra. Eu tinha três destas máquinas e perdi gradualmente o interesse pelos meus amigos humanos, pois nenhum deles podia reunir tantas qualidades de beleza e graça. Era um enlevo contemplar estes meus novos acompanhantes, seguir as suas conversas inteligentes, considerar os seus pontos de vista, mas acima de tudo contemplar a sua extraordinária perfeição artificial, livre dos erros e das deformações humanas. Sim, confesso, afastei-me da gente e passei a viver numa agradável solidão, no meio daqueles seres delicados e singulares. As raras pessoas com quem me cruzava pareciam-me horríveis: obesas, curvadas, baixas, desajeitadas, medíocres. Deixei de ter notícias dos meus antigos amigos. Aliás, todos vivem como eu, cansados da humanidade, no meio de máquinas ideais. A minha robô preferida é especialmente talentosa. Chama-se Dolly, tem a habilidade da pintura e imita na perfeição obras famosas que penduro nas minhas paredes. A minha casa é um verdadeiro museu e sou o único a poder contemplar as obras que tenho acumulado. Dolly disse-me um dia, com candura gentil, que não compreendia este equívoco humano de procurar apenas o perfeito e o belo, quando estava ao nosso alcance o imperfeito e o defeituoso, que era aquilo que a robô não tinha e desejava intensamente possuir. Foi o único disparate que, até agora, a ouvi dizer.
imagem: IA, Bing Image Creator