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Epidemia

por Luís Naves, em 27.12.23

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A estranha epidemia tomou conta da cidade em menos de dois dias. As pessoas dançavam, riam sem motivo, tornavam-se subitamente bondosas e falavam de maneira estranha. A reação dependia de fatores que a ciência não explicou, mas pelo menos as autoridades perceberam que as multidões infetadas tinham o comportamento inverso da normalidade anterior à pandemia. Os que, antes da doença, não sabiam dançar punham-se aos pulos; os tristes desatavam numa hilaridade sem limites; as pessoas mais perversas tornavam-se de repente boazinhas. A maior parte das vítimas pertencia à terceira categoria. Como eu não tive sintomas, juntei-me às equipas de voluntários assintomáticos que tentavam repor o controlo da sociedade. A loucura coletiva exigiu auxílio externo e verificou-se que a causa estava na contaminação da água de distribuição pública, o que explicava a minha situação, pois antes das alucinações tinha bebido apenas água engarrafada. O leitor inteligente está agora a pensar que uma tal epidemia foi algo de positivo e que as autoridades podiam ter deixado andar. Afinal, tratava-se de rir, mostrar boa disposição, agitar o corpo e espalhar a bondade, mas o facto é que esta estranha condição causou importantes estragos: os dançarinos não sabiam dançar e cansavam-se, alguns tiveram até problemas musculares e pisavam por acidente quem se metesse na sua frente; os hilários riam sem critério, de forma parva, faziam péssima figura e começaram a ser afetados pela falta de ar, tendo a mudança de humor causado devastação mental em numerosas destes vítimas desabituadas do riso, para mais expostas à alegria constante e obrigatória. Enfim, reconheço que o caso dos bondosos é mais difícil de argumentar, mas eles começaram a impor a generosidade a toda a gente, exigiram leis que proibiam as faltas de cortesia e mandaram prender quem perdesse as estribeiras. Naquelas cinco semanas da crise, os fariseus foram os piores, andavam pelas ruas em procissões humanitárias, a proibir todas as conversas profanas. Chegaram a espancar dançarinos e joviais, acusando-os de incorreção compassiva. Foi com alívio que vimos estas pessoas recuperarem o seu mau-feitio, regressando às maldades que praticavam no respetivo estado de normalidade nervosa. Pode parecer uma conclusão bizarra, mas a crueldade tem o seu lugar entre nós.

imagem, IA, Bing Image Creator

publicado às 11:24


Autores

João Villalobos e Luís Naves