Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]




Desespero

por Luís Naves, em 15.12.23

desespero.jpg

Não fui ouvida por nenhum procurador ou juiz de instrução, nada sei sobre os crimes que cometi, ou melhor, sei que não pratiquei qualquer crime, pelo menos a pessoa que agora sou, pois pelas mulheres que fui em outras vidas não devia ter de responder sem acusação formal e sustentada. Alguns chamam a isto o carma, mas tem outros nomes, eu digo que não passa de injustiça do destino. Não consigo orientar a minha vida e as contrariedades sucedem-se, umas atrás das outras: hipóteses de emprego que se esfumam, dívidas que surgem do vazio, conflitos que não desejo, casamentos falhados, amigos perdidos, a falência bateu-me à porta. Estou no fio de um desespero sem medida. À noite tenho sempre o mesmo sonho estranho, como se o passado me quisesse comunicar os termos da acusação. É algo difuso, mas vejo-me na pele de uma rainha poderosa que fez mal a muita gente. São imagens demasiado violentas e não as quero recordar nesta confissão. Elas repetem-se sem mudanças e implicam ódios infinitos. Os pormenores são pouco claros, não chego a entender o contexto. Será este sonho recorrente uma simples fição da minha cabeça ou aquelas imagens soltas e confusas correspondem a coisas vividas por alguém que fui eu numa existência anterior? Teríamos então de admitir que compreendemos mal a natureza da consciência humana, que a nossa energia não se extingue inteiramente com o desaparecimento do corpo, que há sucessivos ciclos de vida e de morte, que parte da consciência passa para o ciclo seguinte e que esse movimento transfere também um pedaço da responsabilidade e da culpa. Não sei quem fui nesse passado atormentado de um mundo em guerra, mas pago o preço e tenho a inocente esperança de que toda esta especulação seja pura invenção minha. Como explicar, então, os insucessos da vida presente? Os azares que não controlo, a insónia e o desprezo, a solidão? Pois se não fiz nenhum mal, como explicar as minhas desgraças? Preferia ser ouvida por um juiz severo a viver em tal desespero. Entretanto, apenas uma ideia me pode confortar: expiando nesta vida os crimes da minha consciência passada, talvez me liberte para uma futura existência feliz. Não me recordarei disto, mas poderei talvez ter sonhos imprecisos sobre este meu presente, que em dia mais agradável será apenas passado.

imagem, IA, Night Café

publicado às 12:28


Autores

João Villalobos e Luís Naves