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Pedaços do mundo e grãos de areia
A princípio, foram coisas que pareciam insignificantes, mas que apesar de tudo mexiam nos delicados equilíbrios entre o acaso e a fatalidade. Ele percebeu que podia manipular o tempo, embora não soubesse a extensão destes seus poderes. Um dia, evitou um acidente, pressentindo o perigo, e isso deu-lhe matéria para refletir, pois algo de semelhante acontecera várias vezes ao longo da sua vida, como se tivesse um sexto sentido na cabeça. O episódio desencadeou um processo de pesquisa interior e começou a dominar aquela sua faculdade. Descobriu que, além de adivinhar o futuro muito próximo, também podia controlar os fios do passado e, nesse recuo, conseguia ir bem mais longe. Foi assim que arriscou mudar os números de um jogo de sorte. Ficou milionário pela simples alteração do talão que tinha na sua posse, como se tivesse escrito números que nunca escrevera. Acho que foi aqui que começou o seu infortúnio, pois a pessoa que seria única vencedora do prémio teve de partilhar o dinheiro. Ao pensar nesse problema, limitou-se a encolher os ombros. Que diabo, a vítima ficara igualmente rica, embora com metade do muito a que tinha direito. Compreenda que este meu amigo, cujo nome não lhe direi por pudor, percebeu que estava a mexer com uma força universal que o ultrapassava, mas não resistiu à tentação de usar a inércia do tempo em seu proveito. Chame-lhe orgulho, que é um dos piores pecados. Ele sempre pensara que tinha um corpo defeituoso, queria ser outra pessoa e quase conseguiu: usou a fortuna em cirurgias plásticas, mas ficou sempre insatisfeito com o resultado. Um dia explicou-me que ia tentar alterar a sua própria composição genética, interferindo nos momentos iniciais da existência. Seria uma pequena manipulação, tudo insignificante e baseado em ciência sólida, que tinha estudado ao pormenor. Dois ou três genes, no máximo, para ser mais alto, ter olhos azuis, maior inteligência, músculos fortes e esqueleto mais sólido. Disse-lhe que não o fizesse, que cada pessoa devia aceitar a sua sorte e ele pareceu convencido com a minha argumentação e disse-me que não ia tentar mudar o corpo. Soube depois que ficou muito doente. A lenta implosão das células, nunca vi nada assim, até a cor dos olhos mudou, explicou-me um dos médicos. Estive no funeral, o corpo foi fechado num caixão metálico, pois temia-se contaminação por agente desconhecido. Nunca acreditei nessa teoria. Vim do cemitério a pensar que quando tentamos esticar a corda do universo pelo lado do livre-arbítrio, o destino consegue sempre repor a sua lei.
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