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Pedaços do mundo e grãos de areia
Rodou o corpo e tentou adormecer inclinado para a direita, mas não sentiu qualquer efeito. Procurou pensar em quantidades e números, o esforço pareceu funcionar num primeiro período, pois percebeu o túnel do sono a aproximar-se. Imaginou camponeses, muitos, caminhando numa estrada de terra batida. A que propósito? A mente ocupou-se com esse problema, porquê camponeses? e o sono perdeu-se na escuridão. Que horas seriam? Acendeu a luz, olhou o relógio, três e trinta da madrugada, estivera cinco horas naquele estado, a virar-se na cama, a escutar cada ruído do quarto, a sentir o silêncio fora da casa, a flutuar na imaginação, nos problemas, em cenários da vida embrulhada, do mundo em dissolução, sob o peso dos pecados da humanidade. Foi outro erro pensar em pecados, pois tinha muitos. Valeu essa digressão mais 45 minutos de especulações complicadas. Tentou de novo envolver-se em números, ia contando, desta vez porta-aviões japoneses, que disparate (japoneses?), de súbito desencadeava-se uma tempestade de imagens em polaroid, cores profundas, quimonos de seda e flamingos, era claramente o embrião de um sonho erótico, valeu mais meia hora de observações inquietas que o mantinham desperto, o tecido dos quimonos tendia a deslizar na pele suave das mulheres de porcelana e, assim, era impossível dormir. Inútil continuar, sentiu fome, levantou-se e foi até à cozinha, encontrou um pedaço de queijo, mordeu pensativamente um papo-seco, até enfiou a cabeça no frigorífico, lera qualquer coisa sobre a eficácia dessa estratégia. Voltou a deitar-se e imaginou prados numa paisagem e aquilo transformou-se num sonho publicitário com queijos derretidos, mas eram quase sete da manhã e o despertador desatou numa fúria. Foi assim a noite da primeira vítima da epidemia de insónias que atingiu a nossa cidade. Em três semanas, houve registo de 150 mil pessoas que não dormiram, na quarta semana 200 mil e, sem explicação, o fenómeno começou a baixar no mês seguinte. Mas essa é outra história, numa miniatura não cabe tudo.
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