Fragmentário

O seu nome era alvo de brincadeiras, "Ali, vai ver se eu estou A-LI", e feita a piada, seguia-se o riso alarve que ele não compreendia, mas que aceitava com resignação, pois era excelente pessoa. O nome não é a parte importante desta história, isto está a começar ao contrário, é preciso recuar anos, quando Ali e Kumar, ainda imberbes, eram os melhores amigos de brincadeiras, sobretudo à saída da escola, nas ruas pobres de uma aldeia perdida, perto de Rajapur, algures entre as montanhas do Nepal e os vales de Utar Pradesh (se a geografia não me falha). Kumar teve mais sorte, emigrou para Ocidente, desenrascou-se bem e organizou um negócio para trazer compatriotas seus para esta terra de mel e sonhos, como se costuma dizer. E mandou vir Ali, dizendo que lhe fazia um preço de amigo, o que acabou por ser toda a sua fortuna e ainda as poupanças da família direta e de alguns parentes abastados. Viagem difícil, prolongada, cheia de peripécias, para arranjar papéis e acabar na hospedaria Good Blessing, com mais trinta trabalhadores como ele, vindos dos sete cantos da Ásia e da África. Seis meses depois, já sem dinheiro para comer, Ali teve algum azar misturado com sorte, ao ser atropelado num cruzamento, ficando bastante maltratado numa perna e sem conserto a bicicleta que usava para os seus serviços de estafeta. Enfim, podia ter sido pior. Naquele aperto de peregrinação ao contrário, Ali recorreu ao amigo Kumar para sair da aflição, e logo este correu em seu auxílio. "Ainda me deves três mil pela viagem, mais quatro mil pela bicicleta", resumiu Kumar. "Não podes trabalhar com a perna nesse estado, mas há boas possibilidades no negócio da venda de rins e outras partes humanas. Pagas a dívida num instante. Sei que tens um corpo robusto. Lembro-me de como me vencias sempre nas corridas que fazíamos na nossa aldeia. Não me agradeças, somos amigos, vou levar-te a uma clínica especializada, alguém tem de olhar para essa perna e verificar as outras partes".

imagem, IA, Night Café