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Os androides perfeitos

por Luís Naves, em 28.12.23

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Quando começaram a fabricar aqueles androides perfeitos, o público não ligou muito, era apenas mais um avanço na tecnologia. Mas estas máquinas não se limitavam a ser baratas, tinham feições belas, a ponto de se distinguirem das pessoas de uma forma positiva: andavam mais direitos, tinham vozes maravilhosas, pareciam sumptuosos e cintilavam, usavam apenas palavras amenas e simpáticas, eram inteligentes e prestáveis. Não tinham borbulhas ou sinais de pele, não tinham qualquer mancha ou falha, pelo contrário, eram sedosos e simétricos até à pureza, sem riscos ou amolgadelas. Estes modelos pareciam obras de arte, como no passado foram os relógios mais finos. Na conversação, os novos robôs eram encantadores e sensatos, nunca conseguiam dizer um disparate, como acontece com qualquer pessoa. No trabalho, não podia haver alguém mais diligente do que o mais preguiçoso entre eles, eram sempre incansáveis e organizados. Depois, tinham as qualidades que a humanidade está a perder, a nobreza, a lealdade, a sabedoria e a honra. Eu tinha três destas máquinas e perdi gradualmente o interesse pelos meus amigos humanos, pois nenhum deles podia reunir tantas qualidades de beleza e graça. Era um enlevo contemplar estes meus novos acompanhantes, seguir as suas conversas inteligentes, considerar os seus pontos de vista, mas acima de tudo contemplar a sua extraordinária perfeição artificial, livre dos erros e das deformações humanas. Sim, confesso, afastei-me da gente e passei a viver numa agradável solidão, no meio daqueles seres delicados e singulares. As raras pessoas com quem me cruzava pareciam-me horríveis: obesas, curvadas, baixas, desajeitadas, medíocres. Deixei de ter notícias dos meus antigos amigos. Aliás, todos vivem como eu, cansados da humanidade, no meio de máquinas ideais. A minha robô preferida é especialmente talentosa. Chama-se Dolly, tem a habilidade da pintura e imita na perfeição obras famosas que penduro nas minhas paredes. A minha casa é um verdadeiro museu e sou o único a poder contemplar as obras que tenho acumulado. Dolly disse-me um dia, com candura gentil, que não compreendia este equívoco humano de procurar apenas o perfeito e o belo, quando estava ao nosso alcance o imperfeito e o defeituoso, que era aquilo que a robô não tinha e desejava intensamente possuir. Foi o único disparate que, até agora, a ouvi dizer.

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publicado às 11:17

Epidemia

por Luís Naves, em 27.12.23

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A estranha epidemia tomou conta da cidade em menos de dois dias. As pessoas dançavam, riam sem motivo, tornavam-se subitamente bondosas e falavam de maneira estranha. A reação dependia de fatores que a ciência não explicou, mas pelo menos as autoridades perceberam que as multidões infetadas tinham o comportamento inverso da normalidade anterior à pandemia. Os que, antes da doença, não sabiam dançar punham-se aos pulos; os tristes desatavam numa hilaridade sem limites; as pessoas mais perversas tornavam-se de repente boazinhas. A maior parte das vítimas pertencia à terceira categoria. Como eu não tive sintomas, juntei-me às equipas de voluntários assintomáticos que tentavam repor o controlo da sociedade. A loucura coletiva exigiu auxílio externo e verificou-se que a causa estava na contaminação da água de distribuição pública, o que explicava a minha situação, pois antes das alucinações tinha bebido apenas água engarrafada. O leitor inteligente está agora a pensar que uma tal epidemia foi algo de positivo e que as autoridades podiam ter deixado andar. Afinal, tratava-se de rir, mostrar boa disposição, agitar o corpo e espalhar a bondade, mas o facto é que esta estranha condição causou importantes estragos: os dançarinos não sabiam dançar e cansavam-se, alguns tiveram até problemas musculares e pisavam por acidente quem se metesse na sua frente; os hilários riam sem critério, de forma parva, faziam péssima figura e começaram a ser afetados pela falta de ar, tendo a mudança de humor causado devastação mental em numerosas destes vítimas desabituadas do riso, para mais expostas à alegria constante e obrigatória. Enfim, reconheço que o caso dos bondosos é mais difícil de argumentar, mas eles começaram a impor a generosidade a toda a gente, exigiram leis que proibiam as faltas de cortesia e mandaram prender quem perdesse as estribeiras. Naquelas cinco semanas da crise, os fariseus foram os piores, andavam pelas ruas em procissões humanitárias, a proibir todas as conversas profanas. Chegaram a espancar dançarinos e joviais, acusando-os de incorreção compassiva. Foi com alívio que vimos estas pessoas recuperarem o seu mau-feitio, regressando às maldades que praticavam no respetivo estado de normalidade nervosa. Pode parecer uma conclusão bizarra, mas a crueldade tem o seu lugar entre nós.

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publicado às 11:24

A chegada a Marte em 1900

por Luís Naves, em 26.12.23

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A superfície marciana era exatamente como o distinto Schiaparelli tinha previsto, um deserto atravessado por canais quase secos. A Nautilus aproximou-se do solo em perfeito equilíbrio, graças ao efeito do metal antigravidade Cavorite e das emissões de vapor. Os dois viajantes da Terra, o senhor Verne e o senhor Wells, manipularam com habilidade as válvulas e alavancas que permitiram um poiso suave. A chegada dos dois europeus provocou uma enorme tempestade de poeira e quando a atmosfera ficou limpa, o senhor Verne espreitou pelo periscópio e viu que estavam perto de um dos canais e daquilo que parecia um aldeamento. Verne e Wells prepararam os seus melhores fatos, colocaram os chapéus altos e abriram a escotilha. Houve uma ligeira hesitação, pois cada um convidava o outro a desembarcar primeiro. "Faça favor, meu caro Wells, desça a escada em primeiro lugar", disse Verne. "Pelo contrário, deve ser o cavalheiro a ter a primazia, insisto, a honra deve caber à França". Este último argumento de Wells foi convincente. Verne aceitou, desceu a escada e foi assim o primeiro homem a pisar solo de Marte. A superfície do planeta consistia num terreno agreste, que a luz pálida do sol distante tornava estranhamente vermelho. A chegada da nave devia ter sido um espetáculo notável e alguns nativos tinham-se aproximado. Eram seres humanoides, de baixa estatura, vestidos com roupas esfarrapadas. Via-se a escassa cultura nos seus rostos abrutalhados. Pareciam mal alimentados e eram obviamente muito pobres. "Saudações da Terra", disse Verne, num francês impecável, acompanhado de um grande gesto que o levou a tirar da cabeça o chapéu alto. "Dito na perfeição", exclamou Wells, também em francês, mas com forte sotaque das ilhas britânicas. "Espero que seja possível trazer a civilização a estas criaturas", disse Verne. "Julgo que sim, veja o estado miserável em que vivem". Era possível pensar em grande: trazer maquinarias para extrair água, helicópteros voariam pela atmosfera fina, iriam impor a religião para elevar as almas, promover as instituições para que os marcianos aprendessem a governar os seus assuntos, estabelecer quintas de produção agrícola sistemática. Os marcianos continuavam calados, até um pouco perplexos com a chegada inesperada destes cavalheiros, mas no final estabeleceu-se a harmonia entre o atraso e o progresso. Foi assim que começou a grande chegada dos terrestres a Marte, no belo início do espantoso ano de 1900.

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publicado às 09:43

Patrulha das Estrelas

por Luís Naves, em 22.12.23

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A aproximação ao Planeta Nove não era fácil, mas fiz deslizar a minha nave com habilidade, para contornar o perigoso anel de asteroides, acelerando depois em loop, o que me colocou numa órbita perfeita. Julguei estar seguro, mas um dos patifes tinha-me seguido como uma sanguessuga. A estrela vermelha na fuselagem de prata não enganava. Era um maldito soviético vindo da base que eles construíram em Plutão, desafiando a resolução da Federação dos Planetas Unidos. Atacou-me com um torpedo, que evitei por uma coisa de nada, mas tendo escapado, o meu motor estava à beira de se queimar, não podia passar para o hiperespaço, e recorri a uma manobra de emergência, despejando-lhe uma boa dose de positrões no focinho, algo que não vem no catálogo deles. Duas rajadas depois, o comuna estava em pedaços. Sem olhar para trás, segui tranquilamente para a estação espacial, em busca dos planos da máquina devastadora que tinham sido roubados dos nossos laboratórios. O local estava cheio de agentes duplos, contrabandistas, exploradores do espaço exterior e até polícias honestos. Fiz um breve inquérito na esplanada, como se chama a zona com vista panorâmica, e segui uns tipos até às catacumbas, onde fui forçado a um breve tiroteio com armas de raios. Cena intensa. Fui a tempo de cortar os fios do detonador da bomba que ia dar cabo da estação e recuperei os planos, escapei por uma escotilha apertada, regressei à minha nave e consegui escapar à gravidade do Planeta Nove. Foi nessa altura que começaram as interferências eletrónicas. A imagem começou a ficar com grão e, depois, com quebras de cinzentos e cortes no som. Não sei se ainda me estão a ver... Há problemas na emissão... Interferências misteriosas... Isto ainda é a mira técnica ou regressou a imagem? OK, vejo que regressaram à normalidade. Ainda bem, mas temos de ficar por aqui, esgotou-se o tempo. Não perca o próximo episódio da série Patrulha das Estrelas, onde terei de enfrentar uma perigosa raça de enguias que invadiu o nosso sistema. Também vou salvar da morte certa uma agente secreta do planeta Vénus, que aliás me revela alguns dos seus maiores segredos, isto enquanto sou forçado a reparar a minha nave em pleno voo e enfrento uma perigosa conspiração subversiva do soviete marciano, tudo em apenas quarenta e cinco minutos de aventuras espetaculares. Até para a semana. Saudações do capitão Nimrod, a bordo da nave Sindbad, over and out.

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publicado às 11:02

A velha sociedade

por Luís Naves, em 21.12.23

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Excerto da História do Futuro, segunda metade do séc. XXI, ficha 72/01/0mk/8965/4534/9jm/a grande perturbação
Os países industrializados começaram a utilizar a inteligência artificial (IA) na primeira metade do século XXI, mas só na segunda metade foram absorvidos os seus verdadeiros efeitos. Nesta ficha discute-se o fenómeno do envelhecimento da população, cuja relação com a IA é apenas indireta. O mecanismo pode resumir-se da seguinte forma: o uso destas tecnologias na observação das retinas humanas mudou o diagnóstico médico e permitiu o uso sistemático de máquinas na deteção precoce de doenças. Com medicina preventiva, a longevidade humana passou de uma média de 80 anos nos países desenvolvidos para mais de 120 anos, depois 150, isto em apenas duas gerações. Ao mesmo tempo, as máquinas podiam realizar praticamente todos os trabalhos, pelo que não houve incentivo para alargar demasiado a idade da reforma. Tipicamente, no final do século, um cidadão nas nações ricas (na Ásia, Europa e América) trabalhava até aos 70 anos e vivia até aos 140. Muitas pessoas nem trabalhavam, preferiam receber o rendimento mínimo garantido, que era financiado pelo crescente contingente de máquinas. Houve também uma quebra acentuada na natalidade e a população no hemisfério norte começou a diminuir, o que aumentava a riqueza per capita, pois as heranças eram distribuídas por menos indivíduos. Este bem-estar geral criou um problema paralelo, o excesso de consumo. A maior parte da população idosa e rica não tinha nada para fazer e dedicava-se aos prazeres da vida, sendo que o consumo era um dos preferidos. Com as fábricas robotizadas e a distribuição generalizada, a produção tornou-se barata, o que teve forte impacto ambiental. Nesta altura, o mundo industrializado já tinha resolvido o problema dos combustíveis fósseis, mas começou a haver escassez de metais. Por vezes, as fábricas tinham de parar, algo que começou a reduzir a receita fiscal que sustentava a confortável existência de uma população cada vez mais envelhecida. Os bens essenciais tornaram-se caros e o descontentamento deste eleitorado incapaz de manter elevados padrões de consumo criou uma crise social e política. Entretanto, alargara-se o fosso entre países ricos e países pobres. Estes últimos não tinham recursos para criar uma sociedade de abundância e as pessoas morriam jovens, em média aos 80 anos, o que criou forte ressentimento em relação ao mundo industrializado onde se vivia mais de 150 anos. Isto levou a embargos de matérias-primas, fluxos migratórios que se tornaram violentos e ainda interrupções frequentes do transporte internacional de mercadorias. Esta grande perturbação durou vinte anos e tornou insustentável a sociedade da abundância na parte industrializada do Ocidente, que se fragmentou numa amálgama de nações fragilizadas.

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publicado às 11:41

História de um detetive

por Luís Naves, em 20.12.23

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Ele era um detetive duro e, na cidade, com a escumalha à solta, os duros não fazem prisioneiros. Tinha sido contratado por misteriosos advogados de uma firma em Washington, com instruções de ninguém perceber que desvendava uma conspiração sobre as coisas do costume: mulheres, pistolas de nove milímetros e muito dinheiro. Acabara de partir o nariz a um tipo para conseguir alguma informação, compôs o chapéu, depois a gravata, largou o cigarro, acelerou o passo. No calor sufocante, aquela pista ainda fresca exigia uma perseguição sem piedade. Caíra a noite e os desfiladeiros de prédios deitavam uma luminosidade doentia, as sombras do vício cobriam a humidade com uma película fina de desgosto. Ele sabia que aquele bar era o coração do enigma e atravessou a rua. Lá dentro, viu os rostos contorcidos pela maldade, os recantos impenetráveis de onde podia emergir alguma ameaça inesperada. Sentou-se em frente ao grande espelho e pediu um Sunset Boulevard, agitado, não misturado. O barman era um tipo narigudo, que se chamava Larry. O detetive olhou em redor, estava na zona mais iluminada, a dar nas vistas, alguma coisa teria de suceder. Ficou algo surpreendido quando se aproximou uma mulher. O corpo fabuloso, o olhar insinuante de quem controlava um universo escondido de chantagens, desaparecimentos e mortes a tiro. Isto explicava tudo, tinha sido ela a mexer os cordelinhos da trama, só uma mente especial poderia conceber um tal plano diabólico. A mulher espampanante sentou-se a seu lado, sem emoções, lindíssima. O detetive percebera o esquema, ela estava talvez intrigada, procurando entender o adversário.
Extraordinariamente bela, pensou, teria de a desmascarar e já lamentava esse desfecho.
"Não é cliente habitual. Quem lhe recomendou o meu estabelecimento?", perguntou a mulher, que se chamava Betty.
A sua beleza inocente seria um trunfo no julgamento, admitiu o detetive, imerso nos seus pensamentos.
"Digamos que procuro certas informações", disse.
"Ah, é da polícia".
Betty desabafara com uma doçura desarmante, talvez com o cansaço de quem finalmente teria de enfrentar a realidade. Mudou de expressão: ficou pensativa e mais bela ainda.
"Não acha estranho?", perguntou a mulher esplendorosa, com um arrepio na voz.
"O quê?"
"O mundo é a cores e vemos tudo a preto e branco?"
Só então o detetive percebeu que estava num filme. Como se tivesse levado um valente encontrão, deixou de perceber o que estava à sua volta. Descobrira de súbito que era quase falso ele próprio, o barman Larry, a firma de Washington, Betty e tudo aquilo em que acreditava a multidão escondida em silêncio além do espelho.

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publicado às 11:52

Os vizinhos do lado

por Luís Naves, em 19.12.23

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A família que se mudou para a casa ao lado está a deixar-me com os cabelos em franja. Já telefonei três vezes para a polícia e fiz dez queixas à câmara municipal, por causa do barulho e pelas coisas esquisitas que eles dizem uns aos outros. Não se percebe nada daquela linguagem do sistema de Betelgeuse, ou lá o que é, só ouvi falar que são refugiados, por causa da estrela deles, que dizem que vai explodir, o que pode nem ser verdade, pois ninguém foi lá verificar. As crianças (acho que são crianças, pois têm menor dimensão do que os dois adultos) gritam nas suas brincadeiras e não tenho sossego. Os fedelhos são selvagens e imagino que lá no planeta deles seja possível aquele comportamento impróprio, mas este é o nosso planeta e não devia ser permitido que se perturbe a paz dos nossos bairros. Nós, os humanos, temos regras e gostamos de as cumprir. Ora, estes Betelgeusenses (pouco me importa o que sejam), não têm modos e não se comportam como pessoas. Não se sabe o que pensam, não vão à igreja e teme-se o pior. Pediram asilo, compreendo o imperativo, mas preferia que os políticos me tivessem consultado em referendo. Não concordo nada com estas histórias de darem habitação ao primeiro que nos aparece de mão estendida; sobretudo quando não há apartamentos baratos para nós e logo isto acontecer no meu bairro. A família dos cabeçudos foi colocada na casa ao lado, que estava vazia. Não podiam ter posto esta gentinha noutro sítio? Não suporto ver aquelas cabeças de porcelana cinzenta, aqueles olhos esbugalhados, a má educação, a falta de expressão, que até parece que nos estão a gozar. Dizem que o chefe da família tem emprego, mas quando o confrontei com a sua incompreensão dos nossos costumes, limitou-se a falar pessimamente a nossa língua e prometeu que ia tentar aprender. Tentar aprender, senhor presidente da câmara? Isto é um escândalo. Ou os tiram daqui ou temos o caldo entornado. No mínimo, deixo de pagar impostos.

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publicado às 10:47

Super-melga

por Luís Naves, em 18.12.23

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Se fosse super-herói, aquele fulano podia chamar-se a perfeita melga. Não conheci pessoa mais chata, aparecia sempre nos momentos inoportunos, dizia coisas inconvenientes, até um pouco grosseiras. Artur podia ser obsessivo com as amizades e, nos namoros, era picuinhas, ciumento e caprichoso, ou pelo menos estas eram as queixas normais das mulheres que se fartavam dele. O Artur tinha o hábito de falar incessantemente, não se calava, interrompia os outros com uma frase irritante, era isso que eu ia dizer, e depois apropriava-se da ideia, convencido de que tinha sido ele o primeiro a defender aquela opinião. Comecei a chamar-lhe o super-melga, como aquelas figuras da banda desenhada, o que era um sarcasmo talvez um bocadinho excessivo. Nunca lhe reconheci mérito e, muitas vezes, quando ele aparecia do nada, eu não conseguia esconder a impaciência. Levava grandes secas, o Artur tomava conta da conversa e ficava em minha casa até tarde, a mastigar sempre os mesmos assuntos, e via-se certamente na minha cara o aborrecimento, a falta de pachorra, pois o homem não perdia o pio e ficava horas a palrar. Bem preso à minha vida, debitava os seus problemas, que tinham sempre a mesma origem: não conseguia desamparar nenhuma loja e as pessoas cansavam-se dele. Se o Artur era assim com amigos e namoradas, não imagino como funcionava no trabalho. Só posso garantir que foi subindo na hierarquia lá na sua empresa e começou a aparecer menos vezes. Andava noutros círculos e perdi-lhe um pouco o rasto. Artur subiu como um barão, às tantas andava metido em altos voos corporativos e ficou uma pessoa importante, o que para mim foi sempre misterioso, pois era um chato dos antigos e as reuniões da direcção da empresa deviam ser filmes para dormir, daqueles russos que duram vinte horas. Abrevio a história, só para dizer que eu próprio passei dificuldades na vida, estava em maré baixa social e os meus amigos tinham dado de frosques. Lembrei-me um dia de telefonar ao Artur e combinar um encontro, para falarmos dos bons velhos tempos. Assim foi, mas eu devia estar nervoso, ou assim, falei e falei durante toda a conversa, dei por mim a interromper o meu amigo, era isso que eu ia dizer, e na cara do Artur percebi sinais de enfado. O super-melga não tinha paciência para estar ali a ouvir o que eu dizia.

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publicado às 15:32

Tirado da Biblioteca Cósmica

por Luís Naves, em 16.12.23

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Excerto da História do Futuro, séc. XXI, ficha 46/01/qsk/7365/4545/8df/tecno-unanimismo
Depois de destruírem os meios de comunicação tradicionais que tinham criado as antigas repúblicas democráticas, os grandes monopólios da tecnologia começaram a fazer a estrita vigilância daquilo que se dizia nas suas plataformas. Os algoritmos encarregavam-se de discriminar todas as opiniões e comentários que não agradavam às instituições do poder, sendo que estas foram conquistadas através de fortíssimos investimentos. Isto incluiu partidos políticos e cargos eleitos, pois não havia eleição que não exigisse enormes quantidades de dinheiro para sustentar candidatos preparados segundo as mais modernas técnicas de vendas. A restrição do discurso político foi obtida através de dois mecanismos essencialmente consecutivos, embora em certas situações fossem utilizados ambos os métodos. A princípio, qualquer ideia heterodoxa podia ser atacada por uma multidão (isto sucedia nos meios digitais, envolvendo grupos de ativistas fanatizados ou meios artificiais). Quando não podia ser silenciado pela invisibilidade imposta pela máquina, o dissidente era submerso em críticas ferozes e humilhado em público. A sua voz era silenciada pela ostracização ou pela eliminação dos seus meios de subsistência. Despedimentos, perseguições, mentiras, tudo servia para neutralizar o alvo. Numa segunda fase, foram usados métodos mais musculados, incluindo a repressão, o processo judicial e ainda a detenção arbitrária. Os jornais, rádios ou televisões já tinham sido levados à falência, pelo que as ideias em circulação foram limitadas num espetro bastante mais estreito. Neste período, os políticos eleitos eram já todos semelhantes uns aos outros, pelo que as instituições capturadas avançaram para a extinção das forças partidárias que não tinham aderido ao consenso. Todas as tentativas de quebrar o cartel da tecnologia fracassaram e o poder destas empresas foi aumentando, o que deu origem a mais delimitação da inovação no setor, garantindo assim vastas somas de lucros. Ao regime político resultante, que durou cerca de dois séculos, podemos chamar "tecno-unanimismo", caracterizado pelo empobrecimento da sociedade, pela pobreza das artes e da discussão pública, pelo domínio de parlamentos seguidistas que nomeavam comissões técnicas que nunca decidiam contra as megacorporações.
Referência: O Colapso dos Impérios Mediáticos, Louis Sevan, Paris, 2317 AD.

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publicado às 12:39

Desespero

por Luís Naves, em 15.12.23

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Não fui ouvida por nenhum procurador ou juiz de instrução, nada sei sobre os crimes que cometi, ou melhor, sei que não pratiquei qualquer crime, pelo menos a pessoa que agora sou, pois pelas mulheres que fui em outras vidas não devia ter de responder sem acusação formal e sustentada. Alguns chamam a isto o carma, mas tem outros nomes, eu digo que não passa de injustiça do destino. Não consigo orientar a minha vida e as contrariedades sucedem-se, umas atrás das outras: hipóteses de emprego que se esfumam, dívidas que surgem do vazio, conflitos que não desejo, casamentos falhados, amigos perdidos, a falência bateu-me à porta. Estou no fio de um desespero sem medida. À noite tenho sempre o mesmo sonho estranho, como se o passado me quisesse comunicar os termos da acusação. É algo difuso, mas vejo-me na pele de uma rainha poderosa que fez mal a muita gente. São imagens demasiado violentas e não as quero recordar nesta confissão. Elas repetem-se sem mudanças e implicam ódios infinitos. Os pormenores são pouco claros, não chego a entender o contexto. Será este sonho recorrente uma simples fição da minha cabeça ou aquelas imagens soltas e confusas correspondem a coisas vividas por alguém que fui eu numa existência anterior? Teríamos então de admitir que compreendemos mal a natureza da consciência humana, que a nossa energia não se extingue inteiramente com o desaparecimento do corpo, que há sucessivos ciclos de vida e de morte, que parte da consciência passa para o ciclo seguinte e que esse movimento transfere também um pedaço da responsabilidade e da culpa. Não sei quem fui nesse passado atormentado de um mundo em guerra, mas pago o preço e tenho a inocente esperança de que toda esta especulação seja pura invenção minha. Como explicar, então, os insucessos da vida presente? Os azares que não controlo, a insónia e o desprezo, a solidão? Pois se não fiz nenhum mal, como explicar as minhas desgraças? Preferia ser ouvida por um juiz severo a viver em tal desespero. Entretanto, apenas uma ideia me pode confortar: expiando nesta vida os crimes da minha consciência passada, talvez me liberte para uma futura existência feliz. Não me recordarei disto, mas poderei talvez ter sonhos imprecisos sobre este meu presente, que em dia mais agradável será apenas passado.

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publicado às 12:28

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Autores

João Villalobos e Luís Naves