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Pedaços do mundo e grãos de areia
O inverno surpreendeu os soldados na estrada de Smolensk e a retirada tornou-se caótica. Muitos regimentos perderam-se da força principal, a neve não deixava perceber o caminho e facilitava as emboscadas dos cossacos. Não havia comida, os homens embrulhavam-se nas peles e mantas que tinham trazido de Moscovo. Alguns enlouqueciam e não concluíam a penosa marcha de cada dia, perdendo o abrigo dos acampamentos improvisados onde havia fogueiras que não duravam toda a noite. De manhã, as colunas prosseguiam na sua miséria, deixando para trás mais alguns corpos desistentes.
Nesse dia, por causa do nevão, o soldado ficou sozinho na estrada. O ruído forte do vento trazia-lhe os lamentos dos desgraçados que se tinham perdido como ele. Depois, já não se ouvia nenhum som humano. Sem saber a direcção para onde ir, embrenhou-se numa charneca vazia, com uma correnteza de bosques ao fundo. O frio doía-lhe como se houvesse punhais a cravar-se nas suas pernas e braços.
Foi então que, por entre as árvores, apareceu uma improvável carruagem puxada por cavalos, que deslizava na sua direcção. O veículo aproximou-se, como se fosse num sonho. Parou próximo, trazia duas pessoas.
O cocheiro ficou no seu lugar, mas a mulher desceu e ajoelhou-se à sua frente, a agradecer uma intervenção divina:
"Encontrei-te finalmente, François, estive à tua procura por toda a Rússia", disse.
A desconhecida sabia o seu nome. Isso era impossível, naturalmente, e ele agarrou o cabo da espada. Ilusão, engano, um truque dos russos, uma tentação do inferno. Não conhecia aquela mulher, era um delírio.
"Sou Katia. Fomos amantes em vidas anteriores e andei dois séculos à tua procura, no fio de vidas que tiveste, só que não te lembras", disse a mulher. "Vem comigo, posso salvar-te, vais recordar todo esse nosso passado".
A armadilha tornara-se evidente. Havia céu e inferno, mas não existia um fio de vidas. François recuou, depois correu na direcção oposta, com dificuldade por causa da neve, depois com mais energia, meteu-se por um bosque e não parou mais, até lhe faltar o fôlego. Fora uma alucinação. Encostou-se ao tronco de uma bétula e sentiu alegria por estar livre daquele fantasma. Depois, adormeceu.
A alma de Katia, que já tinha outro nome e outro corpo, procurou aquela alma de François por mais três gerações, e acabou por a encontrar em Viena, no corpo de alguém que se chamava Karl. Já tinham passado mais de cem anos, que foi todo o tempo que os dois desperdiçaram, mas a história terminou bem, pois Karl recordou-se do que lhes acontecera, não apenas na estrada de Smolensk, mas muito antes disso.
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