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Pedaços do mundo e grãos de areia
O seu mundo estava mergulhado numa nuvem espessa e os pensamentos flutuavam num lago de mercúrio, por isso não conseguia recordar as coisas que lhe passavam ao lado. Podia talvez reconstituir a ordem dada pela sua mulher (não tinha a certeza se era a sua mulher, mas devia ser): "Homem, vai à padaria buscar o pão". Assim foi. Até gostava destes passeios pela rua, ou o que restava dela após o Apocalipse, andava por ali sem fazer mal a uma mosca, parava às vezes para uma conversa com alguém de passagem, saudações, abraços, contacto de geleia e frio, pessoas como ele, que se arrastavam em busca de comida, com os braços a abanar à toa. Foi por um desses vizinhos que soube que toda a população estava a ser desumanizada na comunicação social, mas também nos filmes e na banda desenhada, "não valemos nada nos tempos que correm", disse esse vizinho, antes de continuar o passeio. "Então, adeus", despediu-se, e avançou mais uns metros até à padaria. Lá estava ela, pouco pão, tudo duro, cheio de bolor, longa fila de esfomeados. Não podia garantir quanto tempo ficou na fila, mas foi nesta altura que do nada surgiram os humanos não infectados, armados para uma guerra, e começaram a disparar contra a fila dos que esperavam pão. Caíram três ou quatro vítimas atingidas em cheio, esbracejando, num pânico em câmara lenta, sangue e tripas por todo o lado. De repente, os feios gritavam, e também ele tentou fugir, mas os gestos pareciam presos, próprios de um elefante demasiado lento, e os humanos não infectados continuavam a disparar numa fúria, matando cada um dos zombies na fila do pão e até os que estavam dentro da padaria. Foi um massacre, mas parece que os humanos não infectados são bonitos, puros e civilizados. Ele ainda conseguiu fugir, um pouco abalado na sua desumanização, sem saber bem como iria explicar à mulher (seria mulher?) o motivo de, nesse dia, não trazer nem sequer uma carcaça.
imagem IA, Night Café