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Cancelamento

por Luís Naves, em 27.11.23

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Quando se acabou o dinheiro na minha conta bancária, fui à agência e enfrentei alguma dificuldade em entrar. Disseram-me depois que tinham cancelado o meu cartão e só abriram a porta por temerem que eu fosse partir o vidro à prova de bala, o que aliás não teria sido possível, pois bati com jeitinho. Que raio de vidro à prova de bala é este, que fica logo com rachas, perguntei ao funcionário, que me respondeu de maneira muito parva, a dizer que ia chamar a polícia. Pensei que era demasiado barulho por causa de uma conta bancária, ainda por cima vazia. Pedi-lhe para depositar cinco euros, mas ele disse que a conta já tinha sido encerrada, depois aconselhou-me a sair antes que viesse a polícia. Estou a ser humanitário, acrescentou o beato. É esta a incapacidade do país. Tenho sido desprezado sem razão, a minha mulher diz que não quer falar comigo, e não consigo entender, estou sempre bem disposto. As pessoas passam por mim, cumprimento, mas elas não respondem. Queria trabalhar, mas não me deixam. Queria ser rico, mas sou boa pessoa. Na segurança social, disseram-me que estavam sem pessoal e não me podiam atender, ainda argumentei, mas veio o insegurança, um tipo enorme, para me enxotar. Pudera, ainda lhe perguntei se não tinha vergonha de estar a escorraçar um excelente cidadão e ele reconheceu, com um encolher de ombros tristonho, que tinha um emprego difícil, então empurrou-me para fora e estatelei-me na rua. Logo me recompus, saí dali a assobiar uma canção da moda. Toma e embrulha, que país de fanfarrões. Meti-me num comboio sem bilhete e era a única pessoa com boa disposição na carruagem. Desatei a perguntar aos outros passageiros o motivo de irem tão carrancudos, mas olharam para mim com evidente má vontade e disseram que não havia motivo para festejar, por causa das cenas e das merdas. Uma mulher desagradável disse que eu tinha o riso dos tolos antes do cancelamento. Depois, veio o pica, acompanhado de um polícia de choque.

imagem: Night Café, IA

publicado às 20:17

Na estrada de Smolensk

por Luís Naves, em 26.11.23

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O inverno surpreendeu os soldados na estrada de Smolensk e a retirada tornou-se caótica. Muitos regimentos perderam-se da força principal, a neve não deixava perceber o caminho e facilitava as emboscadas dos cossacos. Não havia comida, os homens embrulhavam-se nas peles e mantas que tinham trazido de Moscovo. Alguns enlouqueciam e não concluíam a penosa marcha de cada dia, perdendo o abrigo dos acampamentos improvisados onde havia fogueiras que não duravam toda a noite. De manhã, as colunas prosseguiam na sua miséria, deixando para trás mais alguns corpos desistentes.
Nesse dia, por causa do nevão, o soldado ficou sozinho na estrada. O ruído forte do vento trazia-lhe os lamentos dos desgraçados que se tinham perdido como ele. Depois, já não se ouvia nenhum som humano. Sem saber a direcção para onde ir, embrenhou-se numa charneca vazia, com uma correnteza de bosques ao fundo. O frio doía-lhe como se houvesse punhais a cravar-se nas suas pernas e braços.
Foi então que, por entre as árvores, apareceu uma improvável carruagem puxada por cavalos, que deslizava na sua direcção. O veículo aproximou-se, como se fosse num sonho. Parou próximo, trazia duas pessoas.
O cocheiro ficou no seu lugar, mas a mulher desceu e ajoelhou-se à sua frente, a agradecer uma intervenção divina:
"Encontrei-te finalmente, François, estive à tua procura por toda a Rússia", disse.
A desconhecida sabia o seu nome. Isso era impossível, naturalmente, e ele agarrou o cabo da espada. Ilusão, engano, um truque dos russos, uma tentação do inferno. Não conhecia aquela mulher, era um delírio.
"Sou Katia. Fomos amantes em vidas anteriores e andei dois séculos à tua procura, no fio de vidas que tiveste, só que não te lembras", disse a mulher. "Vem comigo, posso salvar-te, vais recordar todo esse nosso passado".
A armadilha tornara-se evidente. Havia céu e inferno, mas não existia um fio de vidas. François recuou, depois correu na direcção oposta, com dificuldade por causa da neve, depois com mais energia, meteu-se por um bosque e não parou mais, até lhe faltar o fôlego. Fora uma alucinação. Encostou-se ao tronco de uma bétula e sentiu alegria por estar livre daquele fantasma. Depois, adormeceu.
A alma de Katia, que já tinha outro nome e outro corpo, procurou aquela alma de François por mais três gerações, e acabou por a encontrar em Viena, no corpo de alguém que se chamava Karl. Já tinham passado mais de cem anos, que foi todo o tempo que os dois desperdiçaram, mas a história terminou bem, pois Karl recordou-se do que lhes acontecera, não apenas na estrada de Smolensk, mas muito antes disso.

imagem, IA Bing Image Creator

publicado às 18:28

Geografia nacional

por Luís Naves, em 19.11.23

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Se o mundo fosse dos hipopótamos, haveria piscinas por todo o lado. Veríamos grande quantidade de depósitos de água ocupados por estas criaturas, habitados pelos equivalentes de senhoras e cavalheiros a flutuar e a borbulhar, a conversar e a discutir, enfim, fazendo todas aquelas coisas que os hipopótamos fazem, da comunicação à política territorial, do rir e do chorar, da ocasional maçada ou vulgaridade. Seriam ouvidos constantemente os ruídos típicos de quem mergulha e de quem vem à superfície, chapinhando com algum estrondo e contentamento. Se o mundo fosse dos hipopótamos, as cidades seriam enormes quadrículas de piscinas azuis, cada uma com a sua família alargada destes herbívoros consumistas, família essa concentrada em afugentar invasores e manter o conforto aquático da água aquecida pela fermentação de resíduos em constante movimento. Só seria preciso arranjar comida com regularidade, em supermercados que não ficassem longe, pois estes animais não gostam de andar a pé grandes distâncias, já que sentem a pele a secar e os muitos quilos a prensar os glúteos proeminentes. Com inteligência, seria possível maximizar a vida sexual e a demografia, melhorar os divertimentos, sendo para isso necessário considerar a criação de piscinas alimentares para a produção em massa, sendo esta comida excedentária depois distribuída pelas unidades comerciais de bairro, podendo assim desenvolver-se uma civilização cujo único problema potencial seria o excesso de metano na atmosfera. Esse gás com efeito de estufa iria conduzir a alterações climáticas que provavelmente os cientistas hipopótamos considerariam até relativamente benéficas, porventura uma boa oportunidade para se expandir o alcance setentrional da construção de novas piscinas confortáveis e de novas vastas cidades hipopotâmicas. Seria então possível que, apesar da indolência natural da espécie, fosse desenvolvida uma filosofia e até uma forma de arte ou uma matemática, permitindo acesso aos himalaias do pensamento neste planeta.

imagem por inteligência artificial, Night Café

publicado às 10:29

Os cavaleiros

por Luís Naves, em 18.11.23

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A estalagem ficava na orla da floresta, dos pântanos e dos lugares de horror. Um dia, vindo do arvoredo, ouviu-se o tropel de cavaleiros. Contaram onze cavalos e, sobre cada um destes animais ferozes, um descomunal soldado de armadura. Vinham numa correria surda, espalhando lamas pelas bermas da vereda, envolvidos numa neblina fina que se agarrara às couraças. O cavaleiro com pendão e bandeira trazia as cores do senhor de Montalto, que defendia a fronteira, e que se sabia estar numa grande batalha no país inimigo. Os cavaleiros pararam na estalagem e desmontaram. Tiraram os elmos, descansaram as espadas; oito ficaram junto à bagagem, três descalçaram as luvas de ferro e, sem capacete, entraram na taberna iluminada pelo fogo tremente de uma lareira. Um deles falou, apontando para a figura principal: "o senhor conde está cansado, quer beber e comer". O nobre era jovem, pálido, com olhar de poeta. Sentou-se, pensativo, ladeado pelos companheiros, enquanto lhe serviam vinho e pão. "Dêem de comer aos homens lá fora", ordenou o conde de Montalto, num tom distraído. Os estalajadeiros saíram para cumprir o comando e foi então que se deu a magia: os homens lá fora tinham desaparecido na bruma que avançava, como se tinham evaporado os próprios cavalos, e a atenção assustada dos populares (quatro ou cinco cristãos foram testemunhas destes factos misteriosos) deu conta do novo cortejo de cavalaria que avançava um pouco ao longe, entre o nevoeiro espesso que a floresta respirava. Silhuetas de corcéis sem cavaleiro, ou assim parecia, a passo lento, e vinham dez a guardar o animal da frente, que no dorso trazia aquilo que aos populares pareceu ser um saco; mas quando correram para o segurar o animal, perceberam que trazia um cavaleiro morto agarrado à garupa, o cadáver do jovem conde que minutos antes todos eles tinham visto a beber na estalagem. Sangrado por feridas profundas, o olhar esvaziado de vida. Que sortilégio era aquele? Quando os camponeses correram para o interior da taberna, também os três cavaleiros tinham desaparecido. Ninguém, só a comida sobre a mesa e a lareira acesa a lançar sombras sobre as paredes.

Imagem de inteligência artificial, Night Café

publicado às 19:25

A vida normal

por Luís Naves, em 16.11.23

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Ele sempre quisera ter uma vida normal e foi isso mesmo que teve, o que não deixa de ser espantoso, pois raramente as pessoas retiram da vida aquilo que queriam dela. Não tinha ambições, não foi estudar para a cidade e, por isso, nunca completou o curso, não procurou trabalhos bem pagos e não conquistou as jovens mais bonitas. Teve uma juventude sofrível. Também não chegou a sair da vila, um local sem ambições, enfim, casou com uma rapariga banal e teve filhos que ninguém achava particularmente belos ou inteligentes, mas igualmente não se poderia dizer que seriam feios ou estúpidos. A mulher acabou por ir para outro sítio e levou as crianças. Sem se distinguir em nada, nem rico nem pobre, este homem trabalhador teve sempre profissões relativamente apagadas, embora necessárias, sem serem demasiado necessárias. Solitário, remediado, os vizinhos não o consideravam importante na escala social, embora também não pertencesse às catacumbas da hierarquia cívica. Em matéria de opiniões estava a meio termo, longe do radicalismo ou do rasgo, num lugar da escala onde geralmente não convém ficar, pois para brilharmos numa conversa precisamos de dizer algo que nos separe da multidão. Envelheceu também a um ritmo médio e teve morte banal, de uma doença perfeitamente comum. Estava muita gente no cortejo fúnebre e a sua pessoa foi falada já depois do falecimento, com amplos elogios, pois não havia nada de mal a dizer, apenas coisas boas. Foi lembrado com nostalgia durante meses e depois anos, apesar de ninguém na vila se lembrar bem da cara dele, era preciso confirmar na única fotografia que restava. Já bem depois da morte, foi ganhando reputação, ninguém lhe apontava defeitos, nem erros ou manchas. Começou a ser criada a lenda de que a sua vida fora invulgar. Sugeriram uma placa de homenagem numa rua e esta placa ainda lá está, com o nome dele e a seguinte explicação: "figura extraordinária da nossa vila".


Imagem de IA, Night Café

publicado às 19:21

Uma coisa chata aconteceu na padaria

por Luís Naves, em 15.11.23

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O seu mundo estava mergulhado numa nuvem espessa e os pensamentos flutuavam num lago de mercúrio, por isso não conseguia recordar as coisas que lhe passavam ao lado. Podia talvez reconstituir a ordem dada pela sua mulher (não tinha a certeza se era a sua mulher, mas devia ser): "Homem, vai à padaria buscar o pão". Assim foi. Até gostava destes passeios pela rua, ou o que restava dela após o Apocalipse, andava por ali sem fazer mal a uma mosca, parava às vezes para uma conversa com alguém de passagem, saudações, abraços, contacto de geleia e frio, pessoas como ele, que se arrastavam em busca de comida, com os braços a abanar à toa. Foi por um desses vizinhos que soube que toda a população estava a ser desumanizada na comunicação social, mas também nos filmes e na banda desenhada, "não valemos nada nos tempos que correm", disse esse vizinho, antes de continuar o passeio. "Então, adeus", despediu-se, e avançou mais uns metros até à padaria. Lá estava ela, pouco pão, tudo duro, cheio de bolor, longa fila de esfomeados. Não podia garantir quanto tempo ficou na fila, mas foi nesta altura que do nada surgiram os humanos não infectados, armados para uma guerra, e começaram a disparar contra a fila dos que esperavam pão. Caíram três ou quatro vítimas atingidas em cheio, esbracejando, num pânico em câmara lenta, sangue e tripas por todo o lado. De repente, os feios gritavam, e também ele tentou fugir, mas os gestos pareciam presos, próprios de um elefante demasiado lento, e os humanos não infectados continuavam a disparar numa fúria, matando cada um dos zombies na fila do pão e até os que estavam dentro da padaria. Foi um massacre, mas parece que os humanos não infectados são bonitos, puros e civilizados. Ele ainda conseguiu fugir, um pouco abalado na sua desumanização, sem saber bem como iria explicar à mulher (seria mulher?) o motivo de, nesse dia, não trazer nem sequer uma carcaça.


imagem IA, Night Café

publicado às 19:17


Autores

João Villalobos e Luís Naves