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Brincadeira de gatos cósmicos

por Luís Naves, em 21.07.23

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A ascensão da China e a queda do Muro de Berlim foram os grandes acontecimentos desta época. No ano da morte de Mao Zedong, 1976, poucos podiam adivinhar as mudanças a que assistimos. Vivemos quase 50 anos de ordem mundial de triunfo do liberalismo económico baseado no dólar e na exuberância financeira. A América tinha a hegemonia indiscutível, a Rússia era uma potência humilhada, a China executava uma ascensão discreta e a Europa lançava um projecto federal sem apoio popular. Em 2008, houve uma crise financeira a expor a fragilidade deste sistema. Começou tudo a correr mal: efeitos das alterações climáticas, migrações, populismo, pandemia e uma guerra diferente das anteriores, com tecnologia moderna e alta violência dos dois lados.
O próximo ciclo de meio século será provavelmente de equilíbrio entre potências. De um lado, o bloco de países ocidentais, com sistema capitalista e regime liberal; do outro, países ambiciosos e humilhados no passado, alguns com grandes proporções de jovens, que juntam capital, gente, minerais, indústrias e comida. A segunda aliança é ainda pouco clara, mas pode ser liderada pela China e conter Rússia, Irão, um conjunto do Médio Oriente, Indonésia, partes de África, talvez a América do Sul, talvez a Índia.
Nos próximos 50 anos, o mundo estará em renovação tecnológica acelerada (inteligência artificial, bioengenharia, computadores quânticos, fusão, corrida espacial). A globalização atingiu o pico e os países readquirem as suas indústrias em nome da soberania. Veremos corridas aos armamentos. As guerras serão indirectas, mas haverá poucas operações militares desiguais, fica o modelo da Ucrânia de conflito violento, entre exércitos equiparáveis. A crise climática vai agravar-se, as migrações podem engrossar. Teremos pensamento mágico, nacionalismo e fragmentação social, um pouco de tudo e mais incerteza. Assim parece desfiar-se o novelo do tempo com que os gatos cósmicos brincam.

imagem, IA, Night Café, SDXL 0.9

publicado às 19:20

O mundo em 2075

por Luís Naves, em 19.07.23

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A empresa Goldman Sachs fez umas projecções sobre a economia mundial até 2075 e pode dizer-se que o panorama não é animador para os países ocidentais. Admitindo que os alinhamentos políticos se mantêm, o G7 será um grupo sem significado em 2075. A aliança dos BRICS terá um PIB real a rondar 125 biliões de dólares, enquanto o G7 pouco passará dos 82 biliões de dólares (não entram nas contas Canadá, Itália e África do Sul, por não estarem entre os 15 maiores do mundo). As sete maiores economias terão apenas um país que pertence ao actual G7, os EUA, com medalha de bronze.

A União Europeia tenderá a desaparecer: a Alemanha tem hoje a quarta maior economia do mundo; em 2075, terá a nona maior. A França passa do sétimo lugar para o décimo quinto. Segundo estes dados, a China lidera a partir de meados da década de 30 e a Índia na de 80.

Isto são projecções. O destino das nações não é uma ciência exacta, tudo pode ser diferente, mas julgo que assistimos já a esta erosão da supremacia ocidental. O produto interno é apenas um indicador e não nos diz tudo sobre o verdadeiro desenvolvimento dos países ou o grau de felicidade e segurança das populações.

Se admitirmos estes números e olharmos com distanciamento para a História, percebemos melhor que o declínio ocidental é recente. Os impérios europeus de 1914 controlavam o mundo, tinham o domínio absoluto sobre populações mais numerosas, sobre os recursos de todos os continentes, criavam as inovações e a cultura, tomavam as decisões essenciais e prosperavam sem dificuldade.

Aquele sistema podia ter sobrevivido séculos. A sua fragilidade vinha das lideranças medíocres que levaram esses impérios a uma guerra insensata, onde todos perderam. A Europa nunca recuperou dos extremismos, das divisões e dos conflitos. Duas vezes devastada, reergueu-se num estado de velhice sem sabedoria.

Nas rivalidades contemporâneas surgem as potências emergentes que no passado o Ocidente humilhou. China e Índia serão dois colossos económicos no próximo meio século, talvez em rota de colisão, talvez numa aproximação hoje improvável. Podemos ver outras alianças em formação: América do Sul, por exemplo; ou uma cooperação entre Egipto, Arábia Saudita, Turquia, Irão e Etiópia; ainda a hipótese que junta China, Rússia e Indonésia.

Só não vemos as outras possibilidades por falta de imaginação. Ninguém em 1914 podia conceber que, 47 anos depois, haveria um soviético em órbita do planeta (um quê???), e 55 anos depois, americanos a caminhar na Lua.

imagem, IA, Night Café SDXL 0.9

publicado às 19:08

Ruínas ocidentais

por Luís Naves, em 15.07.23

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Lemos sobre alimentação, ambiente, guerra, geopolítica ou finanças e percebemos que esta ordem mundial vive uma actualidade insustentável. É curioso que num país periférico como Portugal tenham sido publicados vários romances sobre catástrofes. Existem excepções, claro, mas geralmente publicavam-se livros sobre personagens em ruínas, agora temos o colapso da própria civilização. Não sei se este fenómeno revela a capacidade premonitória dos escritores (que podem observar a matéria escura da humanidade), ou se é sintoma da dissolução da sociedade ocidental.

Talvez algumas pessoas consigam pressentir antes das restantes as ondas sísmicas que se aproximam. O nível de consumo e as dívidas, a ganância de uma minoria que acumulou riquezas incalculáveis, a corrida aos armamentos e a rivalidade entre potências, a luta pelos recursos cada vez mais escassos, as migrações e colapso de ecossistemas, a devastação da guerra europeia. As máquinas do impensável continuam a acelerar a caminho da tragédia, isto não é sentido da derrota, mas incapacidade de intervir.

O que para mim é evidente apenas provoca nos meus semelhantes um encolher de ombros. Falar nestas coisas tornou-se inútil, há quem se ria do meu pessimismo. Não é possível mudar a política que nos leva ao abismo, nem influenciar a opinião, as pessoas começaram a detestar os factos, já nem parecem capazes de os perceber, quanto mais de os aceitar. As indignações são geralmente falsas e escondem interesses, servem como distracção do essencial. Aliás, estamos rodeados de ilusionismo. O mundo caminha para um naufrágio, mas empurrado por esses falsos indignados ou pretensos oprimidos.

Os meios de comunicação tornaram-se irrelevantes, o mesmo se pode dizer da própria arte, cuja banalização anestesia os sentidos. Somos de facto sonâmbulos. Os países ricos ficavam com tudo e agora não querem partilhar nada. O resto do mundo não se conforma e contesta abertamente um sistema que considera injusto. Os conflitos são inevitáveis e, um dia, serão descontrolados. Alguma literatura tenta resistir, suponho, tenta a legibilidade em vez da retórica, procura ambientes, evita o estilo pomposo e foca-se nas ideias, no ritmo e nas personagens, procurando a forma mais simples, sem digressões ou postalinhos. Antes era a densidade da linguagem, agora é o estilo transparente.

Entre os mais lúcidos, há um sentido de urgência, uma antecipação das desgraças. Todos se querem fazer ouvir, acham que têm coisas importantes para dizer, mas há um problema de escala na realidade contemporânea. São muitos, muitos, os que desejam falar. Uma cacofonia, uma multidão a conversar na sala, e só é escutado quem falar mais alto, e quando a escala aumenta, só se ouvem os que gritam. As zonas de silêncio são solitárias. As pessoas de qualidade calam-se.

Seja perdoado o tom caótico deste texto, mas que interessa? Os raros leitores percebem.

imagem: IA, Night Café, SDLX 0.9

publicado às 11:25

Anulação de contrato

por Luís Naves, em 14.07.23

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Só queria romper o contrato, sentia-me enganado. Foi com essa intenção que entrei no antiquário de livros, que fica no bairro da Mouraria, a meio de uma rua que sobe, antes da ermida, numas escadinhas. É uma loja pequena, discreta, cheia de livros. Entrei, havia o habitual cheiro a mofo e enxofre, expliquei a coisa sucintamente: queria anular aquele contrato a que estava amarrado. Não me parecia justo.
"Não tem nada a ver com justiça", disse o livreiro, "usufruiu dos serviços, não há nada para rescindir".
"Mas o serviço não foi fornecido", disse eu, "isso é injusto".
"Não foi fornecido? Não é bem assim! Não comprou o número da lotaria que acabou por ser premiado?"
"Sim, comprei o número vencedor da lotaria".
"Então?"
"Mas fiquei pobre na mesma, exactamente no mesmo sítio na escala da pobreza".
"Fizemos a nossa parte, era o que estava no contrato, a sua alma em penhor pelo bilhete premiado nessa semana".
"Mas eu perdi o bilhete e não recebi o prémio", disse eu, sabendo que o argumento caia em saco roto.

 

publicado às 11:30

Retrato de grupo

por Luís Naves, em 07.07.23

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Os cínicos achavam que o casal era demasiado perfeito e que no interior daquele imenso encanto devia existir um problema qualquer. O facto é que toda a gente se submetia ao charme de Elisa e Carlos, ambos pintores, com vidas de sonho, sempre felizes e admiráveis. Toda a gente queria entrar no círculo dos seus amigos e eles deixavam, enfim, não há outra maneira de explicar, espalhavam alegria, contentavam quem estivesse à volta, enchiam as festas de amabilidade e beleza. Os quadros que pintavam eram sublimes, sobretudo os dela.
Não fui ao casamento dos dois, só os encontrei mais tarde, mas sei da sua história. Conheceram-se em Belas Artes e já na escola eram um par ideal. Elisa pintava freneticamente e os professores achavam que seria uma pintora de grande qualidade. O marido, Carlos, acabou o curso sem brilhar, não tinha a mesma intensidade, mas era extrovertido e manipulador das conversas, dominava facilmente as tertúlias.
Carlos era também mais rico do que Elisa, foi a sua herança que lhes permitiu a vida desafogada de dois jovens artistas, em casa esplendorosa numa aldeia da costa, onde havia paisagens de beleza, com luz, bosques, praias, falésias, cores, o mar. O sítio perfeito. Mantinham um apartamento na cidade e frequentavam grupos de intelectuais e artistas, enfim, uns mais desistentes, outros como eu, inebriados pela ficção de que podiam deixar as grandes obras do futuro.

 

publicado às 19:06


Autores

João Villalobos e Luís Naves