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No arraial

por Luís Naves, em 25.06.23

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"Falei por falar, na brincadeira", disse o desconhecido, "felizmente, a perfeição não existe e a felicidade também não".
Olhou para mim com expressão que desmentia o tom de ironia. Pareceu-me que ele apenas tentava corrigir a primeira afirmação, que eu ouvira correctamente. O desconhecido afirmara com enorme convicção que naquele pátio e naquelas ruas não havia ninguém feliz, o tipo de frase pedante de quem quer desabafar sobre os seus próprios estados de alma. Não posso garantir que as pessoas que exibiam euforia naquela rua estivessem todas mesmo alegres, por vezes era evidente que alguns foliões tentavam fingir, para poderem acompanhar o movimento da multidão, da massa de gente que pulava e cantava, entre pares a dançar no meio do arraial, luzes penduradas entre as casas, numa algazarra de cores e de cheiro a sardinha assada. Sim, era provável que houvesse por ali máscaras de felicidade, como acontece nos carnavais, onde cada um pode ser alguém diferente e simular por momentos que não está agarrado a si próprio.
A afirmação do desconhecido, apesar de tudo, era exagerada. Via-se felicidade, beleza, o melhor da humanidade.
"No fundo, tudo isto é falso", gritou ele, na minha direcção, a gesticular.

publicado às 19:11

Espião em fuga

por Luís Naves, em 19.06.23

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O corpo mergulhou numa fadiga inexplicável. A súbita ideia de que cometera um erro e estava em perigo devia ter o efeito oposto, desencadear os mecanismos de alarme e a reacção para que fora treinado; já antes sentira a aproximação da catástrofe e actuara com frieza nessas circunstâncias, mas agora sentia apenas cansaço e desistência; a mola partia-se, em vez de saltar.
Reviu mentalmente os passos que dera. Fora tudo correto, desde o momento em que se aproximou do ponto de entrega do material. Normalidade, sem uma palavra desnecessária, os gestos cuidadosamente coreografados, mais parecera um passo de dança entre ele e o agente estrangeiro, ninguém podia ter visto nada de suspeito, a entrega perfeita, como nos livros, no meio da multidão, em plena rua, à vista de toda a gente: duas pessoas a moverem-se em direcções opostas, um pequeno choque, a passagem do pequeno pacote, sem falhas.
Depois, seguira o seu destino, parte planeada e parte improvisada. Primeiro, o metropolitano, três estações, mudança de linha, duas estações, rua, autocarro, percurso a pé no parque, ninguém à vista, levou tempo a sentar-se num café, observou à volta, havia uma estranheza, não conseguiu tranquilizar-se, o coração acelerado. Tinha sido seguido.

publicado às 12:08

Releituras (1)

por João Villalobos, em 17.06.23

Uma Noite em Lisboa – Stuff Out

"A expressão dos ouvintes era calma e recolhida. Todos eles acreditavam no que o altifalente proclamava em altos brados. Significativo do estranho processo de hipnose que ali se verifica era o facto de todos aplaudirem a máquina, que os não podia ver, nem ouvor, como se se tratasse de um ser humano. O espectáculo era igualmente revelador da cegueira da nossa época, em que, impelidos pelo medo e pela histeria, as pessoas se agarram a slogans, não importando que eles venham da direita ou da esquerda. Basta apenas que libertem as massas do pesado encargo de pensar e as eximam da responsabilidade de responder por aquilo que receiam, sem no entanto saberem evitá-lo". 

 Erich Maria Remarque, 'Uma Noite em Lisboa', trad. Maria da Luz Mota Veiga, ed. Europa-América 

publicado às 21:16

O problema do senhor Abdul

por Luís Naves, em 15.06.23

Estava uma tarde tranquila, no último dia antes de uma ponte, a cidade já se esvaziara, a rua era toda para mim. Passeava pela sombra, em passo lento, quando apareceu aquele rapaz asiático. São bem-educados e nunca sabemos bem a idade deles. Digamos, neste caso, quarenta e poucos, magrinho, cabelo liso e curto, camisete azul. Só falava inglês macarrónico, aos bochechos, revirava a cabeça quando lhe faltavam as palavras. Pediu a minha ajuda, com sorrisos e amabilidades, e lá fui percebendo um pedacinho do drama. Mostrou-me o telemóvel, máquina moderna, era preciso chamar a polícia, mas não sabia os procedimentos.
Olhei à volta, talvez houvesse alguma patrulha por ali, mas nada. Era naquela hora a avenida mais calma de Lisboa, que é uma cidade onde nunca acontece nada de especial.
Lá fui fazendo perguntas em inglês, a tentar entender o motivo da agitação: o homem explicou que se chamava Abdul e era do Bangladesh, não falava português, pelo menos o suficiente para se fazer entender num assunto tão delicado. Aquilo era por causa do assalto ao estabelecimento que ele tinha em Alcântara. Ele disse mesmo Alcântara, a palavra era nítida, mas estávamos os dois em frente a um banco numa esquina da avenida de Roma e aquela discrepância geográfica acionou as minhas sirenes de alarme: a polícia que não aparecia, o telemóvel excelente que ele me exibia para eu chamar as autoridades, um estabelecimento em Alcântara (digo assim por não me lembrar se era mesmo restaurante e daqueles de cozinha indiana), mais o ladrão na avenida de Roma. Enfim, desconfiei, estas confusões não nos aparecem todos os dias.

publicado às 16:28

Teste

por João Villalobos, em 14.06.23

Consegui! Não sei para quem, nem quando (pode ser um truque esta data que aqui surge) nem muito menos durante quanto tempo poderei escrever aqui, mas tudo indica que consegui atravessar o tempo. Este é um teste. Se permanecerem aqui estas palavras significa que talvez consiga voltar. Tudo isto pode ser uma armadilha. Para quem leia, a palavra chave é 

publicado às 20:24

Um mistério do tempo

por Luís Naves, em 13.06.23

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Na literatura portuguesa existe um preconceito contra o conto curto e nas redes sociais a imaginação não é muito compreendida. Os livros de contos tornaram-se raros, mesmo os de autores estrangeiros. Os editores, na realidade, já nem sequer querem romances, pedem outro tipo de livro. Querem biografias, ensaios ou crónicas. Neste último grupo, procuram aquilo que não tenha fantasia associada, ou seja, crónica jornalística, em que os factos são sempre o mais importante e o escritor não deve efabular. Nos jornais e revistas literárias, domina o ensaio e a crítica. Ao contrário do que vemos em outros países, a literatura nacional nunca foi adepta do conto curto, embora Camilo Castelo Branco ou Miguel Torga tenham sido contistas exemplares. Há outros autores fortes no conto, como Aquilino, Sena, Cardoso Pires, Régio, Lídia Jorge ou Mário de Carvalho, mas não existe a abundância que vemos em outras literaturas, basta citar a brasileira. A escassa tradição que existia em Portugal está a perder-se definitivamente, talvez por desistência. O conto é uma boa forma de conquistar leitores e torna mais fácil seleccionar os escritores preferidos. Devia ser um formato popular, pois as pessoas dizem que não têm tempo para ler, mas quem não tem dez minutos disponíveis para ler um conto de dez páginas? Um romance médio, pelo contrário, leva pelo menos quatro ou cinco horas. Como explicar o preconceito? Será que os leitores não gostam e não compram? Não tenho explicação, apenas sei que  nos privamos de uma parte eficaz da literatura e trocamos isso por romances esticados ao máximo, que por isso se tornam monótonos e chatos. Fazer render o peixe é coisa de pobres.

publicado às 16:51

Imprecisão

por Luís Naves, em 12.06.23

Procuro tapar as camadas anteriores, mas nada me satisfaz. Não podemos mudar o passado, mas estamos constantemente a recordá-lo de outra maneira, embora imagine que não seja assim com aquelas novas máquinas inteligentes, essas não se podem interessar pelo que foram, não esquecem nem transformam as memórias, elas estão viradas para o futuro, pois evoluem constantemente, enquanto nós, os mortais, evitamos pensar naquele limiar em que tudo se acaba e tentamos refugiar-nos nas memórias imaginárias e fingimos acreditar que são apenas sonhos.

publicado às 20:01

Realidades paralelas

por Luís Naves, em 10.06.23

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Costumava existir separação nítida entre realidade e imaginação. Havia o mundo dos factos e havia o mundo da fantasia, e os dois não se misturavam, eram como a água e o azeite. Na Era em que vivemos já não é assim. As notícias assumem narrativas e têm dificuldade em aceitar os próprios factos, tendem a criar realidades parcialmente ficcionadas, baseadas naquilo que desejamos ver. Os escritores, que se dedicavam a imaginar irrealidades desconfortáveis, agora só são publicados se não contarem histórias, só são publicados se escreverem crónicas pessoais, construídas com as mil banalidades da existência e separadas da fantasia. Nas notícias meio-inventadas, tornou-se difícil distinguir o falso do verdadeiro; na literatura os escritores praticam a autoficção e o enredo verídico, portanto, sem grande lugar para a invenção. Os noticiários moralizam constantemente: a actualidade é maniqueísta, o bem contra o mal. Por seu lado, a literatura tornou-se didáctica e militante, também repleta de crenças de bem contra o mal. O jornalismo, que devia tratar de factos, tem horror da realidade; a literatura, que devia tratar da imaginação, aterroriza-se com a sua natureza.

publicado às 11:08

Regresso

por Luís Naves, em 08.06.23

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O regresso a esta publicação devia ser acompanhado de uma explicação, mas não me lembro do motivo de ter parado de escrever, foi talvez inércia. O mundo mudou muito nos últimos anos. Atravessámos uma pandemia que matou milhões e os confinamentos alteraram qualquer coisa de impreciso nas mentalidades. Muitas pessoas precisaram daquele trauma para reavaliarem as suas vidas, agora sabem que o tempo escorre depressa. Instalou-se na nova sociedade um clima de intolerância, triunfa a inteligência artificial, aumentaram as desigualdades, houve migrações em massa, tornou-se impossível dizer certas coisas e aceita-se com tranquilidade a denúncia dos comportamentos divergentes e da linguagem errada. O mundo mudou muito e ainda vai mudar mais, depois da guerra e da crise económica que nos ameaça. Estes não serão os novos anos 30, da grande depressão e dos totalitarismos, mas a mola do tempo estalou e recomeça a contagem para outra ordem mundial. As comparações que fazemos são sempre com 2019, o antes, o último ano de normalidade, por assim dizer, pois que tudo o resto é agora o afastamento em relação ao que existia, e que fica esquecido lá atrás. O rio selvagem da história acelerou nestes rápidos e leva-nos na corrente à solta. Só temos olhos para as surpresas que estão à nossa frente.

publicado às 15:30


Autores

João Villalobos e Luís Naves