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Operários da escrita

por Luís Naves, em 14.06.16

Os repórteres de jornais foram ganhando importância na literatura de ficção, mas é comum o preconceito contra o jornalista escritor, como se as duas coisas fossem incompatíveis. Os leitores foram habituados a colocar a escrita no altar, ocupado por figuras de porcelana e com cheiro a incenso. Um jornalista que escreva romances parece demasiado banal para essa espécie de santidade. Os historiadores de arte alimentam igualmente o mito da inacessibilidade e esquecem que sem mil anónimos escribas operários não haveria grandes obras solitárias. Ao longo do século XX, encontram-se legiões desses operários da escrita, número crescente de autores que passaram por jornais e que, a certo ponto, tentaram a sorte na ficção narrativa. Muitos falharam, mas todos tinham experiência na narração de histórias extraídas do quotidiano e todos foram buscar inspiração ao que conheciam melhor. E havia esta relação diferente com o tempo, eles aceitavam o carácter efémero do seu ofício

As boas reportagens são escritas por pessoas com capacidade de observação e de compreensão da sociedade. Os bons repórteres percebem depressa a natureza dos interlocutores e têm pouco tempo para descodificar os conflitos com que se deparam. Há ainda o faro para fazer perguntas e o entendimento da linguagem do povo. Se juntarmos a isto tarimba ou oficina, não admira que a reportagem tenha sido um viveiro de romancistas, nomeadamente de romancistas que não se levavam demasiado a sério e que deram nobreza a géneros desprezados, como o policial. Em Portugal, não há muitos exemplos, mas em outras literaturas as listas são intermináveis. Assim, a realidade foi entrando na ficção, tal como aconteceu com a verosimilhança visual, a credibilidade dos diálogos, a autenticidade das personagens ou dos temas sociais. Os escritores do século XX foram abandonando a aura profética dos seus antepassados e começaram a explorar os territórios da ambiguidade moral, da dúvida e do erro. Deixaram de se interessar tanto pela aristocracia e pelos burgueses e descobriram o povo. Muitas destas ideias vieram do jornalismo, que entretanto empobreceu, perdendo a arte da crónica e o sabor da boa história verídica contada com estilo.

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publicado às 10:57


Autores

João Villalobos e Luís Naves