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Pedaços do mundo e grãos de areia
O mundo é caótico e difícil de interpretar. No final de cada ano, as pessoas procuram sinais que permitam compreender o que lhes acontece, fazem o deve e haver da vida quotidiana, dos insucessos e momentos de felicidade, das suas desilusões e vivências memoráveis, das novas angústias e alegrias, dos velhos receios e tristezas. Há quem se convença de ter encontrado uma grelha de leitura dos mistérios da vida, mas no final toda a gente vai passando pelo tempo que lhe calhou em sorte a acumular inquietações.
Aparentemente, vivi um ano péssimo e anuncia-se outro pior. E, no entanto, nunca fui tão livre das opressões do espírito. Estou cheio de dúvidas e tudo me parece mais claro. Sinto uma verdadeira serenidade e, apesar das ruínas da minha vida anterior, sei agora que não importa tanto a escolha ou o acaso, mas o que tiramos desta breve oportunidade para contemplar o esplendor do mundo.
Este pode ter sido um ano genuinamente mau, mas um dia talvez olhemos para ele de outra forma. Por mais modernas que sejam as sociedades, as mudanças são sempre contidas pela solidez da cultura. Existe uma inércia que atenua as grandes transformações, tal como a areia da praia trava a onda e a transforma em espuma. O pessimismo e a crise talvez nos tenham feito mais fortes. O que ficará da nossa passagem pelo tempo será sempre um enigma, fruto das circunstâncias, mas também escolha nossa.
Em momentos de crise, as sociedades atacam as tradições e rejeitam o passado. É uma reacção tão antiga como o mundo e visa construir o que se designa por nova realidade. A ignorância e a incompetência dos poderes emergentes são disfarçadas pelo discurso agressivo em relação a tudo o que existia, que passa a ser o ‘velho pensamento’. Num país com elites fracas, como é o caso de Portugal, este processo de mudança tende a transformar-se na substituição pura e simples de corporações e grupos de interesses, mas sem verdadeira mudança institucional. As instituições são demasiado vulneráveis para resistirem ao assalto de pequenos grupos coesos, com ligações ou dependências partidárias que os eleitores já não controlam. Quando se apropriam destas instituições, as novas elites procedem à eliminação do ‘antigo’. Quanto mais ignorantes forem, mais vícios prolongam. Esta uma explicação possível para alguns sinais que vemos, sobretudo a incultura da classe política, a debilidade das organizações, o declínio do jornalismo, o caos na educação, o acordo ortográfico, a falta de exigência, a imbecilização das discussões públicas e o triunfo das ideias curtas.
As vidas falsas são como a realidade inventada: vemos o que queremos ver. No passado, havia as lendas de santos e de heróis nacionais, contadas de certa maneira em cada época, conforme os interesses de quem contava. Agora, que temos redes sociais cheias de vidas maravilhosas, a mitomania tornou-se um fenómeno comum, que de alguma forma define a modernidade. A tecnologia produz exércitos de inadaptados. O mundo muda sob os nossos pés. Sempre confundimos desejos com factos, sempre fomos vítimas fáceis da língua de prata destes alucinados, que nos enganam com a mesma facilidade com que voam os anjos, mas agora os mitómanos usam as redes sociais e são um modelo do tempo. As vidas falsas e demasiado perfeitas satisfazem a crendice secular, mas os meios de comunicação reforçam a indiferença. As democracias caminham para a eliminação do conflito, que é também a negação da política. A terceira globalização não acabou com a existência de Estados falhados, só que estes já não são retalhados por potências mais fortes, apenas abandonados à sua sorte. As fronteiras deixaram de contar para as finanças. Os mitos são outros: sucesso e aparência.
A crise financeira criou uma profunda angústia naquelas pessoas (quase todas) que não compreendem por que razão o seu modo de vida está em risco. Um emprego que parecia sólido ou uma existência que parecia estável podem esfumar-se de repente por causa de um negócio decidido a milhares de quilómetros de distância, por interesses sem rosto. O liberalismo falhou e as regras da democracia não são iguais para todos. Como o capitalismo não muda, as dívidas insustentáveis continuam a acumular-se como um castelo de cartas e a crise de 2008 voltará de outra forma qualquer. Por outro lado, a democratização dos média, em vez de aumentar a liberdade de expressão, está a sufocar as discussões numa maré de frivolidade. Os meios de comunicação fragmentaram-se e são cada vez menos relevantes, não há interesse, as pessoas estão fartas e querem a sua vida de volta, mas existe um preço a pagar: uma sociedade que não discute os seus problemas não os pode resolver.
As pessoas ouvem, mas já não escutam. A verdadeira diferença é andar fora do mínimo denominador comum, mas isso implica ser ignorado, sobretudo quando há menos certezas do que dúvidas. Um texto pouco lido será irrelevante. Assim, são privilegiadas as ideias superficiais e com impacto nas emoções do maior número possível de gente, ou seja, informação que entretenha. As democracias mudaram. Ao contrário do que acontecia no passado, tornou-se fácil criticar o poder, daí que os ciclos políticos sejam cada vez mais curtos. Nas sociedades avançadas, não há governo que não seja constantemente encurralado pela rapidez mediática e o mínimo defeito num político pode transformar-se em processo de julgamento na praça pública. A sobrevivência política está em fazer o menos possível, arriscar o menos possível, decidir o menos possível. As tecnologias não se limitaram a arruinar os modelos tradicionais, mudaram radicalmente a relação entre os média e o poder. A opinião pública insaciável reage de forma imediata a qualquer percepção de escândalo. Qualquer frase mal medida, um gesto impensado, pode acabar com uma carreira de décadas.
Cientistas afirmam que metade das estrelas do universo foram expulsas de galáxias e andam à solta no espaço, formando um halo em torno destas ilhas de luz. As estrelas vagabundas foram vítimas de choques titânicos entre galáxias, empurradas para a noite por forças incompreensíveis, espalhadas como grãos de poeira na direcção do nada. Distâncias imensas e destinos incertos de mundos perdidos no vazio. A estrela mais próxima do Sol está tão longe que não passa de um minúsculo ponto de luz. Faz a cabeça andar à roda tentar imaginar a existência, neste universo, de sistemas solares, porventura com planetas e até talvez a precária vida, cuja estrela mais próxima estará a centenas de milhares de anos-luz e a galáxia mais próxima visível apenas num arco difuso, numa parte mínima do céu. Isso, sim, é estar dentro da noite. O universo é um local gelado e haverá milhões de planetas vogando sozinhos entre as estrelas. O destino, a grandeza humana, a ambição, o pequeno orgulho, como parecem tolos os nossos sonhos, perante esta escala desmedida.
O que mais aprecio no Natal não é a entrega dos presentes nem a alegria frenética do consumo, mas o retorno da amabilidade. Na época de Natal, as pessoas estão mais dispostas a um sorriso fraterno, ao sincero desejo de boas festas, à simples saudação, ao aceno, ao abraço, a uma simpatia. Não acaba a maldade nem deixam de existir corações pesados, não desaparecem por milagre a hipocrisia ou o cinismo, simplesmente surgem momentos a favor de desconhecidos. No Natal, regressa a abertura à tolerância, reforça-se o sentimento de partilha. Pena que esta disposição dure tão pouco, que seja confundida com a corrida às compras e também é pena que as famílias sejam cada vez menores e haja maior número de solitários, mas por estes dias surgem sorrisos gordos e as pessoas estão sensíveis à cortesia, querem o melhor para os outros, e por um pequeno período vemos menos crispação nas caras e até um pedacinho de jovialidade, por minúsculo que seja.
Um mundo entre os que acreditam demasiado e os que não acreditam em nada, entre os que comem tudo aquilo que querem, que têm tudo o que desejam, e os que têm por desejo maior comer por uma vez nesse dia. Um mundo que se divide entre os que são livres e os que não conhecem a liberdade, entre os que sonham com mundos melhores e os que sonham com um melhor dia seguinte, no único mundo que conhecem.
Mais uma noite de insónia. Os olhos querem descansar, o corpo pede uma trégua, o sono não regressa. Faço cálculo mental, elaborando rotinas, inventando episódios como se fossem rodas em que se contam detalhes. Mudo de posição na cama, dando voltas em torno dos cobertores, mas não há alívio na ansiedade. A única solução é deixar o tempo fluir e esta é uma lição também para a vida, uma forma de aviso, deixar que corra, que deslize, como faz a água do rio ou a minúscula inundação na rua, dispersa em milhares de ribeiras improvisadas, lagoas temporárias, mares a fingir. Assim funciona o sono que atravessa o ar nocturno: quando escorrega para o destino, por vezes encontra obstáculos, é travado pelo nervosismo da paisagem e suspende-se por uma noite ou uma parte da noite, antes de se escoar de novo, livre. A terra cheia de fadiga não pode absorver de uma vez toda a dádiva abundante que tombou do céu.
(escrito em Novembro, estava a chover)
Deve haver uma componente de inspiração no trabalho de uma oficina como esta, pois há dias em que não me ocorre nenhuma ideia estruturada, somente alguns pequenos farrapos que não chegam para produzir um texto com cabeça, tronco e membros. Aliás, como podemos saber que um texto possui essas características, se afinal contém apenas palavras e frases seguidas, pensadas para leitura em voz alta, mas de alguma forma incorpóreas e abstractas? Como podemos saber que existe aqui uma hipótese de leitura, algo que um leitor imaginário possa aceitar e compreender, talvez não neste momento exacto, mas daqui a alguns anos? Estou a admitir que alguém possa ler estas palavras dentro de alguns anos, o que parece de todo absurdo, pois olhamos para dentro de um ‘corpo eléctrico’ (e estou a roubar a expressão), sem grande densidade ou massa, apenas sinais num espaço de fantasia que o tempo se encarregará de destruir com um minúsculo estalido. Assim acabará este texto, esquecido agora mesmo por quem o escreveu, atravessando o limbo da não-leitura, publicado dias depois de ser escrito, adormecido neste lugar feito de ausência, depois apagado por qualquer ruptura tecnológica que o torne obsoleto. E, no entanto, esforço-me por o fazer com cabeça, tronco e membros, o que quer que isso signifique na sua estrutura invisível, presumivelmente quase nada, pois estas palavras são minúsculas no imenso universo, embora não exactamente insignificantes, pois têm algum vago sentido, ou devem ter lugar na inesgotável criação humana. Pretendem dizer algo débil e quase inaudível, que o tempo, sempre cruel, apagará na mesma.