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Pedaços do mundo e grãos de areia
As sombras apareceram cedo. Por aqui paira a bruma fina da manhã envergonhada e escura, a luz triste dos candeeiros, o difuso rumor de festas distantes, o grupo apressado que aparece de repente à boca do metropolitano, chineses falando atabalhoadamente, o trânsito nervoso, a fila dos que aguardam em frente ao centro de emprego. Cai uma chuva miudinha, que não consegue lavar a gordura do chão. As cores fortes de Lisboa esbatem-se na névoa acre. Resta a obscuridade densa no interior dos prédios, de onde se respira o cheiro a mofo. Se passarmos pelas traseiras, veremos podridão, ninhos de ratos, hortas selvagens. Na paz precária das habitações, há desempregados, idosos, desocupados, malandros sem destino e alguns malucos sem dinheiro para medicamentos. Mobília. É tudo idêntico a qualquer rua de outra cidade moribunda: poucas crianças, tipos divorciados e velhos sozinhos; vidas confusas ou assim-assim.
As recordações são os tijolos empilhados, formam estruturas e paredes, edifícios inteiros que as forças da erosão vão destruindo, quando o bolor avança devagar pelas fendas. Se a realidade é também a memória, então ela inclui as fantasias submersas e talvez estas impressões cruas estejam inscritas nas fachadas soturnas ou talvez pertençam ao passado.