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Pedaços do mundo e grãos de areia
Excepto Nosso Senhor e o Google, ninguém conhece as diatribes que escrevi sobre Pacheco Pereira. E não será certamente a mim a quem cabe especular sobre o que poderei ainda vir a escrever. Mas, quando ontem nos encontrámos na Basílica da Estrela e ele teve a gentileza de receber-me e acompanhar com toda a sua imensa cordialidade, esse mesmo ele que escreveu um texto com a beleza deste, é difícil não me apetecer dar-lhe um abraço quentinho. Aqui virtualmente fica. Amanhã, o gongo toca e a batalha recomeça.
A forma como as elites nacionais se obstinam em negar a realidade está explicada neste brilhante post de Filipe Nunes Vicente. O autor tem razão: muitos comentadores e políticos exibem um insuportável pedantismo que os transporta para um mundo mítico, repleto de ilusões de esquerda e de utopias falhadas. Por exemplo, tem sido muito repetida a ideia da boa revolução. Portugal, nos anos 70, terá passado pela possibilidade de uma sociedade ideal que ficaria algures entre socialismo e capitalismo e que seria não apenas igualitária, mas mais democrática. Segundo essas leituras da História, a traição aos ‘ideais de Abril’ explica os defeitos do País. A passividade do povo é consequência do sonambulismo revolucionário, cujo espírito hibernou temporariamente em 1975.
Como escreve Nunes Vicente, o País mudou muito nos últimos 40 anos, mas o que as pessoas não querem é regressar ao caos político; elas preferem regressar ao nível de riqueza que tinham antes da crise financeira e da intervenção externa. Do ponto de vista da esquerda, deve ser difícil de aceitar a ausência de exércitos de desempregados e pensionistas a partir montras, mas bastava conhecer um pouco melhor o país real.
Apesar de tudo, o pedantismo e a cegueira não explicam todas as formas de delírio. Ontem, procurei ver o noticiário e percebi que as televisões estavam entretidas num único tema interminável: a vitória de um clube de futebol no campeonato nacional. Compreendo que o clube seja popular, mas os três canais deram uma hora de pseudo-informação, com entrevistas imbecis a espontâneos que diziam palavrões em directo. Tentei refugiar-me nos canais de notícias, mas passavam as mesmas imagens. Seis canais com aquilo, durante uma hora. Não admira que as audiências estejam em queda e que as pessoas já não confiem na comunicação social, que é um serviço baseado na credibilidade e, já agora, na diversidade.
Portugal não tem problemas. Estamos a poucas semanas de eleições europeias e não se vislumbra a discussão de um único tema sério. Em todos os países há reformas do Estado Providência, mas entre nós isso é ignorado; a Rússia tenta alterar a ordem internacional e faz chantagem sobre uma Europa que mostra debilidades na área energética, mas o assunto está distante; a integração vai aprofundar-se na zona euro, mas não connosco; a extrema-direita europeia quer restringir a emigração e os populistas alemães defendem o fim do euro, mas tudo parece exótico. Não temos uma pista sobre o que pensam os partidos ou os candidatos. Em Portugal, a única Europa discutida até à exaustão é a Liga Europa.
O 25 de Abril começou por ser um golpe militar e transformou-se depressa numa revolução. As consequências imediatas foram o fim do império e da guerra colonial, o estabelecimento do multipartidarismo e da liberdade de imprensa. A estabilização do novo regime e as lutas sociais que surgiram de imediato deram origem a outros importantes resultados, nomeadamente o início de negociações para a adesão à comunidade europeia e a radical transformação da sociedade, com a normalização de direitos das mulheres, por exemplo, maior igualdade e uma visão muito mais liberal sobre a situação das minorias.
Portugal fez em 40 anos aquilo que outros países fizeram num século. Em 1974, a taxa de analfabetismo era superior a 25%, agora é de 5%; o número de alunos no ensino secundário passou de 68 mil para 480 mil. Em 1974, apenas metade das residências tinha água canalizada, agora são mais de 99%. A esperança de vida à nascença aumentou dez anos e a mortalidade infantil baixou de 38 para 3,4 (por mil crianças com menos de um ano). Em 1974, um terço da população activa trabalhava na agricultura; agora, a proporção é inferior a 10%. O nosso PIB per capita duplicou em termos reais.
No entanto, é curioso verificar que os discursos oficiais estão centrados em visões de uma revolução que de alguma forma fracassou. Fala-se em ‘valores de Abril’ sem explicar quais são e a narrativa mais frequente apresenta o 25 de Abril como um movimento de massas que pretendia construir uma sociedade utópica de tipo não capitalista e não-alinhada. A adesão europeia que a estabilização do regime permitiu é inteiramente ignorada, apesar de ter representado uma ajuda externa da ordem de 3% do PIB em média anual durante três décadas.
Os mitos populistas são poderosos, repetidos por uma comunicação social pouco crítica. A triunfante visão estreita da revolução é ainda mais surpreendente quando surgem os donos do 25 de Abril a afirmar que este falhou também na democracia e na redução das desigualdades. Portugal é hoje um país desenvolvido, com um multipartidarismo que poucos contestam, onde as instituições funcionam e existe inteira liberdade de expressão, com exemplar tolerância nos costumes. A classe média domina completamente a sociedade portuguesa e as desigualdades que persistem, sendo grandes, já nada têm a ver com as que existiam há 40 anos.
No tempo em que me tornei jornalista, no final dos anos 80, não havia internet e era fácil escrever calinadas. Cometi muitos erros por excesso de zelo e por imprudência, demasiados erros por não ouvir os bons conselhos dos mais antigos. Nas redacções havia exemplares da velha guarda, uma casta de jornalistas entretanto desaparecida, que fizera a sua aprendizagem na tarimba. Alguns desses veteranos tinham cultura inesgotável e escreviam como deuses; outros eram simples burocratas ou já tinham desistido; cada geração tem os seus defeitos e a que antecedeu a minha possuía uma elite de alta qualidade, embora pequena. Nesse tempo, o poder político tinha influência nas redacções, era difícil escrever textos da treta, havia cortesia, exigência e respeito. Tudo isto desapareceu, incluindo a influência do poder político.
Os jornais perderam leitores, reduziram custos e fazem agora jornalismo low cost de qualidade duvidosa. Como não há leitores, toda a atenção do poder emigrou para as televisões e, no futuro, também os jornalistas irão emigrar para plataformas online mais baratas. A necessidade de informação da nossa sociedade será devidamente satisfeita por projectos de qualidade que podem proliferar facilmente na internet. Haverá mais títulos, em ecossistemas de grande diversidade, onde haverá atenção aos chamados nichos de mercado.
É um paradoxo que haja menos leitores do que nos anos 80, pois hoje existem mais pessoas alfabetizadas e com qualificações universitárias. Não faz qualquer sentido encontrar textos de opinião com erros factuais e conclusões disparatadas, frequentemente mal escritos, havendo fornadas de potenciais autores disponíveis na academia, na blogosfera ou na cultura.
Também são lamentáveis as lágrimas de crocodilo por ninguém ler em Portugal: não se fala de livros, pois eles não se vendem; e os livros não são comprados, pois não se fala deles.
Se os leitores são hoje mais cultos do que nos anos 80, qual a razão de haver jornais piores do que os desse tempo? E já agora, livros piores. Os responsáveis costumam justificar as suas escolhas com as audiências, mas esta é uma questão curiosa. Diz o mito que os jornais se limitam a dar aos leitores o que eles querem, ou seja, assuntos efémeros, imbecilidades, sangue, comentadores inócuos. Um colunista de televisão escrevia hoje que os canais portugueses viram aumentar e até duplicar as suas audiências no domingo, ao transmitirem as celebrações do campeonato ganho pelo Benfica. Ora, isto é extremamente bizarro e soa a desculpa de mau pagador, pois todos eles, ao mesmo tempo, deram as celebrações. Não havia mais nada na televisão portuguesa nesse dia, portanto não podiam todos duplicar a audiência transmitindo o mesmo programa. Se só existir pão e circo, as pessoas só comem isso, podem até apanhar uma indigestão de pão e circo, mas não serão mais livres nem estarão mais alimentadas, nem sequer mais satisfeitas.
“O índice da economia paralela subiu 4% em 2012, passando de 25,49% em 2011 para 26,74% em 2012, revelou esta quarta-feira Óscar Afonso, vice-presidente do Observatório de Economia e Gestão de Fraude (Obejef), da Faculdade de Economia do Porto”, noticiava o Público em Setembro do ano passado.
Face a esta percentagem, que o mesmo artigo dizia equivaler, em valor absoluto, a 44.283 milhões, “mais de metade do empréstimo da Troika”, é natural que o Governo implemente medidas de incentivo que levem à transparência e à exigência de facturas sobre os produtos e serviços, a par de outras que a priori desincentivem e a posteriori castiguem os prevaricadores.
Compreendo que, para alguém com o André Abrantes Amaral que é das pessoas mais certinhas que conheci, determinadas opções possam configurar-se como práticas de um qualquer Grande Irmão orwelliano que nada mais pretende do que controlar a vida do incauto cidadão. Tal como o vizinho do lado, também não vejo com agrado que, por ímpetos socialistas ou outros – e no caso deste Governo definitivamente outros – o Estado me escrutine a vida em cada um dos seus pequenos gestos e cruze dados e factos para uso futuro.
No entanto, é necessário que tenhamos em conta a realidade dos que mentem, dos que burlam e dos que prejudicam com essas mentiras e fugas ao fisco – evidentemente demasiado pesado para os contribuintes, mas essa é outra discussão – quem como o André cumpre diligentemente os seus deveres.
O que não pode fazer-se, ou pelo menos não se deve, é confundir alhos com bugalhos e criticar quem finalmente faz pela existência de um modelo fiscal eficaz e justo, em prol de um libertarismo do consumo. 44.283 milhões é muito dinheiro. E conseguir cobrar mesmo que uma terceira parte dessa quantia permitiria certamente aligeirar em várias circunstâncias a carga fiscal para quem efectivamente a suporta.
Em situações como esta, como em tantas outras, aplica-se um ditado popular: “Não se pode querer o sol na eira e a chuva no nabal”.
Em resposta a esta pergunta do Miguel Noronha, estou disposto a apostar uma dourada ao sal em como - na disputa intergovernamental a que assistimos sobre este apimentado assunto - vencerá o bom senso de Pires de Lima. Até porque o ministro da Economia está acompanhado por vários outros, na resistência a mais esta jihad lançada, em particular, pela dupla que reúne o secretário de Estado Leal da Costa e o director-geral de Saúde, Francisco George, com o alto patrocínio da senhora ministra das Finanças.
Tive oportunidade, aquando da minha passagem por este Governo como adjunto do ex-SEC, de observar um exemplo deste mesmo paternalismo radical aquando da discussão sobre a revisão da Lei do Tabaco. Em causa? 1.430,5 Mil Milhões de Euros de Imposto sobre o Tabaco, meus senhores e minhas senhoras. A quantia que o relatório do Orçamento de Estado antecipava para 2014, prevendo uma subida da receita. Isto no mesmo ano em que o Ministério da Saúde lançou a ideia da interdição do consumo de cigarros em todos os locais públicos.
Dir-se-á que o Governo apenas zela pela saúde dos cidadãos e ao mesmo tempo pelo estado do SNS, ao limitar-nos o acesso ao sal, ao açúcar, ao tabaco. Não. O que o Governo conseguirá se avançar com uma taxa destas é - aumentando os preços - colocar só ao alcance de quem tem dinheiro os produtos mais salgados e docinhos. Brioches para os primeiros, para os pobrezinhos pãezinhos sem sal. Nas palavras de Otto von Bismarck: "As Leis são como as salsichas. É melhor não vermos como foram feitas". E, muitas vezes, são mais perigosas para a saúde as salsichas que os legisladores nos servem do que tudo aquilo que possamos comer.
Dou de barato que quem é de esquerda trate toda a gente por tu. Ainda para mais um presidente de sindicato. Que cargo mais de esquerda e menos preocupado com protocolos deve haver? É arregaçar as mangas e lá vai alho. Mesmo que o destinatário seja, em carta aberta, o primeiro-Ministro. Na verdade, interessam-me pouco estas questões laterais de forma. Mas, lendo isto, pergunto-me: O que é que o excelentíssimo senhor presidente do 'Sindicato dos Estivadores e blá, blá e blá' quer, afinal? Qual o objectivo da sua diatribe em português ligeiro?
Li o artigo de fio a pavio e constato que - para além de ter ultrapassado mais do que os habituais 3.500 caracteres para um artigo de opinião reservados ao comum opinador de jornal - apenas conseguiu juntar os hojes que choram aos amanhãs que cantariam, fosse o Governo outro e sem se perceber ao que vem.
Uma carta aberta tem um pressuposto formal. Nesta, o autor prescindiu olimpicamente da forma, como porta-voz do Povo que é, essa entidade metafísica que todos os representantes da esquerda representam e conhecem muito lá de casa, embora não consigam que vote nas urnas. Nesta carta aberta, o excelentíssimo senhor presidente do 'Sindicato dos Estivadores, semelhantes e afins' afirma, dirigindo-se directamente ao primeiro-Ministro do Governo que fez recentemente um acordo com os trabalhadores que representa, o quanto gostava de o ver pelas costas. É bonito.
Mas mais lindo ainda é pensar o que escreveria se o dito acordo não tivesse existido. "Nunca deixámos de garantir as importações e as exportações de que o país precisa", diz o senhor que sumamente representa os senhores que descarregam e carregam o que outros produzem. Está bem, seja. É verdade que há uns meses não paralisaram tudo isso, após uma greve durante a qual ameaçaram com greves similares e solidárias, nos países de destino dos navios e da sua carga. Mas, convenhamos, o que é que isso lhe interessa agora? Importante é dar cascudos e provas de existência.
A mim, como esforço de hermenêutica, gostava mesmo era de entender quais os objectivos de uma pérola destas. Talvez o excelentíssimo senhor presidente dos senhores (e senhoras, se existirem) que tanto asseguram as nossas importações e exportações também sonhe com a sua candidatura à presidência da República. Citando Margarida Rebelo Pinto, sei lá. Está no seu direito. Parece-me que hoje, aliás, esse é o único sonho que à esquerda todos importam. Duvido é que o exportem seja para quem for.
Nota: Na fotografia, penitenciando-me por não saber e não mencionar a autoria, podem ver-se os estivadores a contribuir activamente para o equilíbrio da balança de pagamentos.
A proposta de referendo ao Tratado Orçamental apresentada pelo Bloco de Esquerda é um momento de pura demagogia que merece ser confrontado com questões incómodas. Como é que se referenda um Tratado que o País ratificou, que está em vigor e que faz parte de um Tratado maior do qual depende a nossa moeda?
O Bloco de Esquerda afirma, de forma errada, que nenhum país cumpre, mas há pelo menos três (Estónia, Finlândia e Luxemburgo) que nunca falharam as metas da união monetária, mais a Suécia, que não faz parte da zona euro. Há ao todo seis países que cumprem a meta do défice estrutural e pelo menos mais dois (Alemanha e Holanda) que, tendo dívida acima de 60%, estão a reduzi-la ao ritmo exigido pelo Tratado Orçamental. Não é verdade que nenhum país cumpra.
O BE é contra o Tratado e de forma manipuladora pergunta aos portugueses se eles querem austeridade por mais 20 ou 30 anos, dizendo que as regras orçamentais a que nos comprometemos equivalem ao desastre económico, desemprego em massa e cortes sociais permanentes. O que se exige aos signatários é a aprovação de uma lei que obriga ao rigor orçamental: défice estrutural (independente do ciclo económico) no máximo de 0,5% do PIB e dívida pública de 60%, com o excedente reduzido num prazo de 20 anos. Isto implica equilíbrio num determinado patamar, não significa austeridade permanente.
O que o Bloco não diz é que este Tratado é uma exigência da Alemanha pelo resgate de que Portugal beneficiou para não entrar em falência. É uma peça fundamental da resolução da crise das dívidas soberanas, sem a qual o euro não sobreviverá. Apoiada por outros países do norte da Europa, a Alemanha impôs o cumprimento das regras orçamentais, condição sine qua non da estabilidade da moeda. É simples: sem este Tratado não haverá moeda única e, por isso, Portugal estaria a referendar a sua saída da zona euro. E é uma tolice tentar referendar a parte que nos desagrada de uma legislação mais vasta, sem ao mesmo tempo rejeitar o todo.
É legítimo que a esquerda não queira rigor orçamental, mas já me parece populista que esta proposta de referendo conviva tranquilamente com o pedido de reestruturação da dívida. Para quê, se deixamos de cumprir o Tratado Orçamental? Bastará desvalorizar o escudo.
No fundo, a proposta parece indicar a radicalização do BE ou um certo desespero perante a sua queda nas sondagens. Neste contexto, a resposta cautelosa de Paulo Rangel é também incompreensível. A lista de centro-direita tem a obrigação de atacar a proposta de referendo do Tratado Orçamental sem ambiguidades, mesmo que isto lhe custe votos. É insuficiente dizer que a discussão não é oportuna, porque isso não existe em política.
"(...antes do 25 de abril de 1974), apesar de algumas liberdades cortadas, havia na escola uma cultura de mérito, exigência, rigor, disciplina e trabalho". José Manuel Durão Barroso, também conhecido como 'Camarada Abel' em 1975. Isto sim, pode considerar-se uma longa marcha discursiva desde 1975.
(Fotografia © Paulo Spranger - Global Imagens).
O dilema da Ucrânia está bem analisado neste texto de Pedro Correia. Concordo com o autor de Delito de Opinião, nomeadamente quando escreve sobre os perigos do apaziguamento e a cedência à propaganda de um agressor que tenta transformar-se em vítima. A Rússia não aceita a ordem do pós Guerra Fria, tal como a Alemanha, nas décadas de 20 e 30 do século passado, não aceitou a ordem imposta pelo Tratado de Versalhes. Assim, a actualidade tem uma explicação: Moscovo considera que este é o momento de travar o declínio imperial e de contestar o arranjo que resultou do colapso da URSS. A estratégia é semelhante à da Alemanha do passado, com intimidação dos vizinhos e instrumentalização de minorias étnicas.