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Pedaços do mundo e grãos de areia
Os socialistas franceses sofreram uma pesada derrota na segunda volta das eleições municipais, isto a dois meses de eleições europeias onde se anuncia nova humilhação para o presidente François Hollande. Os números são esmagadores e nem a vitória em Paris, que se previa à larga e foi apenas à justa, conseguiu minimizar o cenário negro. A UMP (gaulistas, centro-direita) venceu claramente, controlando 23 das 42 maiores cidades; a estratégia da Frente Nacional de moderar o seu discurso também compensou, pois a extrema-direita conquistou 11 câmaras de pequena dimensão (a contagem não está completa), avanço simbólico que sugere uma boa votação nas europeias, da ordem de um em cada cinco votos.
À frente de coligações ou sozinhos, os socialistas estão no poder em poucos países na Europa (Itália, Áustria, Bélgica, Dinamarca) e a França devia ser o laboratório das políticas anti-crise da esquerda. Afinal, a governação de François Hollande está a revelar-se um fracasso. O presidente não consegue controlar o défice ou fazer a mínima reforma estrutural, a dívida está a aproximar-se da barreira dos 2 biliões de euros (milhões de milhões), tendo subido para 93,5% do PIB, o que ameaça o financiamento da economia francesa. A estratégia de taxar os ricos falhou clamorosamente e o desemprego continua sem a mínima solução à vista.
Esta incapacidade revela um padrão europeu. O centro-esquerda parece não ter soluções para combater a crise e satisfazer as classes médias, que querem segurança e estabilidade; pelo contrário, as suas políticas de reforço do investimento público só aumentam o buraco financeiro. O Estado Providência europeu terá de mudar de outra maneira, mas Hollande não pode fazer as reformas necessárias (mercado de trabalho, fisco, segurança social) sem atraiçoar o seu eleitorado. O país está a mergulhar numa paralisia institucional.
Muitos analistas dizem que a extrema-direita regista grandes êxitos, mas julgo que isso não é bem assim. Nos Estados Unidos, por exemplo, o movimento Tea Party, sendo parte do Partido Republicano, alterou de forma significativa a política de Washington, pelo menos conseguindo bloquear as iniciativas dos republicanos moderados e todas as tentativas de criar entendimentos ao centro. Na Europa, a extrema-direita é apenas mais um grupo minoritário, não impedindo qualquer entendimento. O centro-direita continuará a governar tranquilamente sem a extrema-direita, não necessitando para isso de adoptar visões agressivas ou anti-capitalistas, discursos populistas ou xenófobos. A extrema-direita subiu de patamar, mas sem afectar o sistema.
O genocídio no Ruanda foi há vinte anos. Este conto tem talvez dez anos. A minha escrita mudou muito, mas julgo que a publicação deste texto pode ser oportuna:
A aproximação da noite ia formando em torno da cidade um halo protector que, reflectido na neve do chão, tornava quase fantasmagórica a luminosidade dos candeeiros públicos. Juvenal Ngeze sentia frio e, por isso, embrulhou-se ainda mais no sobretudo velho, repetindo o mesmo pensamento, como se fosse uma ladainha de hipnotismo que servia para o acalmar: Bruxelas é uma cidade rica e todos os seus habitantes são ricos. Avançou para a porta e ela tilintou. Ao entrar na pizaria, recapitulava mentalmente como eram ricos os habitantes. Passou pela porta dupla, depois pela cortina, que afastou com as costas das mãos, revelando-se à luz do interior. Pressentiu os odores do pão, mas acima de tudo o delicioso conforto de uma onda de calor, que o envolveu como se fosse o tranquilo sono de uma grande árvore perto de algum curso de água. Teve um arrepio, mas era de agrado. Depois, enquanto a temperatura da pele estabilizava, o africano ouviu todos os ruídos ao mesmo tempo e observou, com pormenorizada atenção, tudo aquilo que se espreguiçava à volta.
A minha crise vai muito além de pormenores de contabilidade, temo que vá mais fundo, até à frustração íntima de não conhecer as palavras certas para descrever o que vejo e pensar o que sinto. Como é a frase de S. Paulo sobre a confusão nos homens? “Não consigo entender nem mesmo o que faço; pois não faço aquilo que quero, mas aquilo que mais detesto”*.
É demasiado ténue a linha que separa a doença da nossa normalidade e assim vivemos, doentes na normalidade, cada um igual aos restantes, neste limite indefinido onde o que parece sensato pode ser simples loucura e onde a mentira parece verdadeira e onde o que se disse ontem não passava de transitório, daí que quando procuro palavras e elas me escapam (aquele título de filme, escrito no vento) é como se habitasse uma espécie de loucura, embora nunca tenha estado louco e não possa saber ao certo se é tal como imagino, enfim alguém que perdeu a razão não o pode saber, e assim ocorre com o mundo à nossa volta, as pessoas já não têm tempo para pensar, aceleram na angústia do encurtamento do tempo, esbarram com outras enquanto falam ao telemóvel com pessoas terceiras, não vêem uma nem outra, nem a pessoa em frente, com quem chocam, nem a do lado de lá da realidade, e assim é com o resto, aquilo que está além do imediatamente visível e da atenção focada no mínimo de superfície, portanto, tudo o resto que pode ser enjeitado, tudo o que é inútil e descartável, como acontece com as pessoas hoje em dia, aquelas com quem chocamos na boca do metro por irmos entretidos no nosso íntimo mundo, ao qual também não damos qualquer atenção, como atenção nenhuma demos a tudo aquilo que esmagámos com o nosso passo desatento.
O computador onde escrevo está enlouquecido, infectado por mil viroses que lhe retiraram o brilho e o fazem soprar de cansaço e tremer de medo, numa lentidão que lhe anuncia a morte e a de tantas outras coisas no universo. A medo, alinho umas palavras como se fossem pedacinhos de tinta que um pintor tímido colocou sobre um desenho. E a luz foge e a realidade muda depressa. Insatisfeito, tento pintar por cima e apagar os erros vagos, de ritmo, estrutura e luminosidade, e a imagem torna-se confusa e castanha, pois que misturando todas as cores dá uma cor, quando a luz que resulta da mesma mistura de luzes é branca, e da mesma forma a existência humana, que é corpórea, se afasta da luz, imitando a amálgama de pigmentos que resulta numa cor uniforme, debaixo de uma velatura, ou seja, das contradições invisíveis debaixo da camada de solidão que destapa tudo o que queremos esconder.
Sim, a minha crise vai mais fundo, pois tem a ver com a mentira da negação e a autenticidade do medo, a negação da mentira e o medo da autenticidade, e por aí fora.
*Rm 7,14
Pela primeira vez em quatro anos, as taxas de juro implícitas da dívida a dez anos estão abaixo de 4%. Lembram-se de quando estavam acima de 7% e o primeiro-ministro José Sócrates não pedia o resgate? Lembram-se da meta de 4.5% referida por Rui Machete e dos pedidos de demissão porque o homem estava louco? No meio da espuma mediática surge esta boa notícia, mas ela será certamente desvalorizada.
Tem havido, aliás, boas notícias: as previsões do Banco de Portugal foram revistas em alta, surgiram números favoráveis na execução orçamental, existe euforia bolsista e o desemprego está em queda. Apesar de tudo, permeável a histerias pré-eleitorais, a comunicação social transforma estas informações em más notícias ou centra-se em cortinas de fumo, como os ‘cortes escondidos’ e a reforma da segurança social que ninguém quer discutir.
No meio do ruído há sempre excepções, mas por regra nunca nos é explicado que os cortes na despesa estão definidos, tirando ou pondo umas centenas de milhões. Portugal terá de cumprir um défice de 4% este ano e de 2,5% no próximo (menos 2,4 mil milhões de euros); o crescimento económico mais favorável dará talvez um aumento de receita de mil milhões e pode ser conseguido um défice inferior este ano e reduzido o valor também por essa via, mas não há fuga a uma aritmética que devia desaconselhar conversas da treta. No próximo orçamento, haverá redução da despesa a rondar 1,5 mil milhões e não há volta a dar.
Esta redução amplamente conhecida tem entretido os partidos na polémica tonta dos 'cortes escondidos', mas a comunicação social deixa-se ludibriar e começa sempre a notícia com ‘novos cortes para os funcionários públicos e para os pensionistas’, embora isso possa não ser assim. Alias, a maioria dos comentadores tem reduzido esta crise aos sacrifícios impostos a funcionários e pensionistas, mas poucos parecem ter lido correctamente os números da pobreza publicados pelo INE, onde houve grande oportunidade para narrativas ao melhor estilo neo-realista. Um texto de Henrique Monteiro, no Expresso, foi um dos poucos que se referiu aos desempregados: este é, de longe, o grupo mais afectado, 40% em risco de cair na pobreza. Acrescento uma perplexidade: o País entrou em pré-falência em 2011, o Governo Sócrates negociou um resgate, o PIB caiu 6%. Como era possível não aumentar a pobreza em Portugal? E acho espantoso que não tenha aumentado mais.
E isto leva-me ao ponto que queria sublinhar. A direita tem um problema. Como diria o meu amigo João Gonçalves, as pessoas não comem taxas de juro. A economia pode estar a dar a volta, mas o dinheiro não voltará para os funcionários e pensionistas que sofreram os cortes, pelo menos não voltará todo. Mais uma vez, a questão é evidente: nos próximos anos será preciso manter os cortes que já foram feitos, pelo que qualquer devolução salarial ou de pensões terá de ser compensada por cortes novos, equivalentes, por exemplo redução de funcionários; mas isto não chega, será preciso continuar a reduzir o défice e a pagar os encargos com a dívida, que apesar das facilidades europeias (sim, eles já reestruturaram uma parte) se manterá nos 7 mil milhões de euros por ano; e ainda não chega, pois nos próximos três anos terão de ser cortados mais 5 mil milhões de euros na despesa, independentemente do partido que lá estiver. Também se verifica que a margem de redução de impostos é mínima ou inexistente.
A economia a dar a volta criará emprego e pode melhorar a vida de muitos portugueses, mas quem depender do Estado continuará a estar pior do que em 2011, quando muitas destas pessoas votaram PSD ou CDS. São centenas de milhares de eleitores que, podendo não ir para o PS, pelo menos irão para o exército de abstencionistas e de portugueses desiludidos. O ajustamento criou uma sociedade a dois ritmos: de um lado, está o Estado, impossível de reformar, pois cada mudança é dificultada pela resistência de grupos com enorme peso na formação da opinião pública; do outro lado, está o País privado, cuja mudança começou muito antes desta crise, envolvendo uma factura pesada para um grupo que todos tentam ignorar, as pessoas que perderam o seu emprego.
(Em relação às análises dos dados da INE sobre a pobreza deve ser referido um texto de Eva Gaspar, no Jornal de Negócios, onde também se refere o factor representado pelos desempregados no aumento do fenómeno. Peço desculpa pela omissão)
Muitos autores, sobretudo em colunas de jornal ou blogues, estiveram três anos a escrever textos críticos em relação ao governo, à chanceler Angela Merkel e à actuação da União Europeia. Achei curioso que alguns destes comentadores escrevessem desde o início a favor da anexação da Crimeia pela Rússia. Para mim, não havia dúvida de que era um exercício de lei do mais forte, por isso achei este apoio estranho.
A nossa elite é deveras interessante e revela uma notável capacidade de resistência ao incómodo provocado pelos factos. Os mesmos que se negam a aceitar que a estratégia do resgate era a única disponível são também os que lideram a tese da razão russa e do erro europeu.
Julgo que alguns intelectuais precisam de demonizar a UE para poderem certificar a posição, por eles defendida durante três anos, de que era necessário parar com a austeridade e era preciso rejeitar a estratégia alemã para a crise das dívidas soberanas. Segundo esta resposta instintiva, líderes europeus que não tinham razão desde 2011, nomeadamente Merkel, não podem agora ter razão.
No fundo, esta visão é estreita.
No caso da crise da Crimeia, sendo a UE, na dupla ocidental, quem está a fazer de polícia bom, são quase incompreensíveis as acusações de que a União Europeia cometeu erros sérios; o seu crime, veja-se bem, foi o de tentar fazer um acordo político e económico com um país vizinho que queria exercer o seu direito à liberdade. Mais erraram os europeus quando, perante a inaceitável chantagem de uma potência do século XIX, mostraram unidade e defenderam a democracia.
Os autores que ainda apoiam Vladimir Putin usam variações de cinco argumentos: o presidente ucraniano foi derrubado ilegalmente; os russófonos ucranianos, sempre apresentados como russos, estão a ser perseguidos pelo novo poder fascista de Kiev; existe o precedente do Kosovo; os americanos invadiram o Iraque; haverá referendos independentistas na Catalunha e na Escócia.
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Na verdade, nenhum destes argumentos sobrevive a dez segundos de análise:
O Kosovo tem semelhanças, mas as diferenças são brutais: havia insurreição armada; houve reacção armada da Sérvia, que provocou centenas de milhares de refugiados albaneses; houve negociações internacionais que incluíram a Rússia, houve eleições livres e a antiga república autónoma tornou-se entretanto independente. Este precedente tem tantas diferenças, que se torna espantoso tentar usar o argumento.
Em relação ao caso do Iraque, nem vale a pena fazer comparações, pois a invasão foi apoiada por uma resolução das Nações Unidas que, neste caso, não existe; aliás, a Rússia não tem apoio de nenhuma das potências com assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, que foi completamente ignorado.
Os últimos argumentos também não sobrevivem. O derrube do presidente Viktor Ianukovitch foi concretizado pelo parlamento ucraniano, pois o presidente perdeu o apoio dos deputados do Partido das Regiões, que era maioritário e se fragmentou, com várias facções a juntarem-se à oposição. Esta inclui um partido de extrema-direita, mas que é minoritário na nova composição parlamentar. Não há outra maneira de descrever a situação: o regime de Ianukovitch ruiu, sobretudo após a repressão das manifestações e a tentativa de usar forças militares contra os protestos.
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A dependência europeia do gás da Rússia é outro tigre de papel e a Rússia não tem condições para jogar a cartada de um eventual embargo. Além disso, não há grandes diferenças culturais ou linguísticas entre ucranianos e russos, povos destinados à convivência pacífica. Em relação ao referendo escocês, a consulta é legal; o catalão, a realizar-se, para já parece inconstitucional. São, portanto, duas questões diferentes. Finalmente, as minorias: em vários países europeus onde minorias étnicas sofrem discriminação, a situação destes grupos melhorou com a adopção de legislação europeia; ou seja, a adesão à União Europeia ou a simples aproximação ao clube é algo que beneficia largamente estas populações; os russófonos nada têm a temer neste caso, pelo contrário, mas a atitude de Moscovo tornou-se num grave problema para vários dos nossos parceiros da UE onde existem significativas minorias de étnicos russos.
Em resumo, o conflito que está a ser criado na Ucrânia é totalmente artificial e a estratégia de Vladimir Putin falhou, havendo agora um problema político difícil de resolver: como tirar a Rússia desta situação.
Por isso, concordo totalmente com o que escreve aqui Pedro Correia e discordo totalmente da resposta de Luís Menezes Leitão, reconhecendo ser admirável que haja um blogue onde convivem opiniões opostas. São estes exemplos que fazem do Delito de Opinião um dos melhores.
Morreu esta madrugada a avó materna dos meus filhos. Fui pai pela primeira vez aos 28 anos, numa idade em que me acreditava, ainda, imortal. Hoje já não tenho avós vivas, nem de um lado nem de outro. Mas recordei este pequeno conto que escrevi e agora recupero. Para as minhas crianças - uma já adulta e outra quase, quase -, para os seus irmãos e para quem quiser:
O Corredor
Era um corredor com muita luz depois de se acordar. Mas, à noite, era escuro e mais comprido. Comprido e estreito como um comboio, com portas para salas de onde vinham os estalidos de cadeiras onde ninguém se sentava.
Ouvia-se, como a voz de alguém zangado, o toc toc de um relógio alto, mais alto do que eu, que parecia gritar sempre que acordava e me levantava para fazer chichi.
Eu sabia que não era preciso ter medo e que não estava mais ninguém em casa, só os meus avós a dormir no quarto ao fundo do corredor comprido. Mas, mesmo assim, era escuro. E o toc toc do relógio mais alto do que eu assemelhava-se a passos, de alguém que caminhava ao meu lado sem que o conseguisse ver.
Às vezes, que eram muitas, apetecia-me fazer chichi ali mesmo, na cama, para não ter de levantar-me, de abrir a porta e enfrentar o corredor.
Mas depois lá ia. Toc toc, toc toc, primeiro devagarinho e depois corria para a casa de banho. A seguir saía, toc toc outra vez, primeiro num passo a passo para não fazer barulho e, depois, muito muito depressa corria e corria como se o quarto estivesse muito muito longe (e estava). Fechava a porta do quarto e enfiava-me na cama com os lençóis e cobertores por cima da cabeça.
De manhã, acordava. E o toc toc era uma música doce, como um bom dia e um beijinho de avó.
I
Estamos a dois meses das eleições europeias e já é visível que nenhum partido nacional vai debater o futuro da integração de Portugal no conjunto da UE. Nenhum partido quererá dizer aos portugueses que a Europa mudou com a aprovação do novo Tratado Orçamental, que obriga os membros da zona euro a orçamentos equilibrados e redução da dívida segundo um plano previamente estabelecido. Alguma comunicação social mais irresponsável tem associado estas obrigações à ideia de “20 anos de austeridade”, um absurdo a que nenhuma democracia poderia sobreviver. Não se explica que haverá mais cortes na despesa (eles podem ser deduzidos da leitura dos documentos do FMI ou da Comissão) e que estes terão mesmo de ser feitos, pois a alternativa é a saída da zona euro. Reestruturar a dívida? Isso é não cumprir o Tratado, portanto, é regressar ao escudo.
Os partidos nacionais estão a proceder a uma elaborada coreografia que visa esconder da opinião pública a falta de opções. A Europa dominada pela Alemanha subiu um patamar na integração, com poderes de vigilância orçamental que até aqui não existiam. O euro é um projecto político que visou ancorar a Alemanha ao resto da Europa, sendo normal que os alemães tenham imposto alguns dos seus pontos de vista: querem uma moeda forte, sem boleias a incumpridores que ameacem a estabilidade do conjunto.
II
E, no entanto, só ouvimos falar na fraqueza da Europa, nos perigos que esta enfrenta, nas guerras à porta. Muitos comentários sobre a crise ucraniana ou sobre as eleições francesas foram sempre neste sentido e pareciam anunciar o colapso iminente da União Europeia. Onde se via com clareza a atitude imperial e anacrónica da Rússia, muitos comentadores portugueses viam fascistas ucranianos que os europeus aceitavam a até incentivavam. Sobre a França, onde os socialistas estão em dificuldades, li sobretudo comentários catastrofistas relativos ao avanço da extrema-direita, embora a vitória dos gaulistas (UMP, centro-direita) seja de longe mais provável.
Existe em Portugal uma obsessão parva com a extrema-direita, que é algo que não temos. Os partidos europeus estão firmemente assentes no centro-direita e no centro-esquerda, havendo desvios populistas e radicais nas eleições europeias, onde se aproveita o protesto (no caso francês, a lista nacional). No entanto, esses desvios nunca atingem eleições legislativas. Este jogo de poder é acima de tudo uma grande ilusão, pois ninguém vai vencer com uma agenda de ruptura num país europeu. E entre nós nunca são explicadas as divisões do campo extremista: há ali radicais, ultra-nacionalistas, eurocépticos, populistas, libertários e franjas lunáticas, o que não permite pôr toda a gente no mesmo saco, como aliás não se faz com a extrema-esquerda.
Os europeus estão descontentes, mas são demasiado ricos para votarem contra a estabilidade ou a favor de loucos que levem aos conflitos do passado. Metam isto na cabeça: a Europa está a mudar e nós vamos ter de mudar com ela. Será um grande bloco de liberdade, riqueza e paz, com influência mundial, e a única alternativa que Portugal verdadeiramente tem é a de ficar no lado de fora.
Observando as reacções ao manifesto sobre a reestruturação da dívida, percebe-se que esta discussão ameaça estilhaçar a estratégia de todos os partidos nas eleições europeias.
O Governo não pode apoiar a ideia de restruturar a dívida sem torpedear a credibilidade que tanto custou a juntar nestes três anos: uma frase mal medida e os juros sobem. Claro que, em pensamento, qualquer extensão de maturidades ou perdão de juros seria bem recebido, mas os credores têm aqui o poder negocial, não é possível aos devedores falarem no assunto sem estragar a negociação e qualquer benesse terá de partir da iniciativa de Berlim e só depois das eleições europeias. Estas limitações são bem conhecidas.
O manifesto não é hostil à Europa e a reestruturação seria feita com o acordo dos credores, mas haveria mesmo assim enormes perigos, sobretudo se a estratégia era a de sair à irlandesa do programa de ajustamento. Em 1891, houve uma bancarrota em Portugal e, dez anos depois, a dívida foi reestruturada, mas o País ficou afastado dos mercados financeiros durante décadas e há quem faça a ligação entre a crise económico-financeira e a revolução de 1910. O último empréstimo desta dívida reestruturada foi pago em 2001 (não é gralha). Quanto mais se falar de reestruturação, mais difícil será a saída do programa de ajuda externa.
É natural que o Governo não aceite sequer discutir o tema. Na campanha eleitoral que se avizinha, a coligação PSD-CDS só pode dizer que o debate é inoportuno, como se ele tivesse sarna. Nenhum candidato apoiará a reestruturação. No entanto, os dois partidos estariam a mentir se dissessem que não desejam a extensão das maturidades ou juros mais baixos (até já se conseguiu isso uma vez, com grandes poupanças). O assunto é pantanoso e cada pergunta será incómoda, sobretudo a segunda ou terceira.
O PS parece completamente entalado: não pode apoiar a reestruturação mas como a tem defendido, sem usar a palavra, a sua posição é insustentável. Os socialistas querem facilidades e querem pagar tudo até ao último tostão, ou seja, pedem mais tempo e assumem a dívida, embora não possam usar a palavra reestruturação sem provocar um susto nos mercados ou, pior, uma subida dos juros. O PS é a favor do documento e não o pode apoiar nem renegar. Não foi à toa que o manifesto teve inspiração de dirigentes socialistas que já estarão na jogada seguinte.
O Bloco de Esquerda queria começar a atacar o euro, mas isso agora acabou, pois o ex-líder Francisco Louçã é um dos signatários do manifesto a favor da reestruturação responsável da dívida, ou seja, não hostil aos credores. De repente, foi ridicularizada a retórica da esquerda radical. O Partido Comunista, que começara a atacar a união monetária, terá de enfiar a viola no saco e apoiar a ideia de reestruturar a dívida, o que implica negociar com a Europa. Sair da moeda única? Nem pensem nisso, nós sempre fomos pela reestruturação.
Assim, estas eleições estão a ficar divertidas: toda a gente vai discutir a necessidade de consenso, já agora liderado pelo Presidente e pelos chamados notáveis, sendo que alguns destes notáveis têm sido a verdadeira oposição ao ajustamento. As reformas acabaram, queremos ter dinheiro para o crescimento, o mundo de ontem impõe um entendimento partidário que nenhum dos partidos verdadeiramente deseja mas ao qual todos terão de prestar a devida homenagem.
Num romance de José Saramago, O Homem Duplicado, uma personagem afirma que ‘as grandes verdades são absolutamente triviais’. A frase é poderosa e devia ser uma lição, mas entre nós a trivialidade parece estar sobretudo nas grandes mentiras.
Durante três anos, ouvimos repetir mil vezes que havia uma fuga de cérebros para o estrangeiro. Afinal, a emigração recente atingiu sobretudo trabalhadores menos qualificados, o que é consistente com a evolução do emprego, que há dez anos sofre uma sangria de pessoas com poucos estudos, ao mesmo tempo que aumentam os postos de trabalho para licenciados (pela primeira vez passaram o milhão).
Temos vivido numa redoma de mitos. Num prefácio, Cavaco Silva explicou o que todos os políticos sabem ou tinham obrigação de saber: o Tratado Orçamental obrigará os Estados da zona euro a cumprir determinadas regras e, no caso de Portugal, isso implicará saldos primários de 3% do PIB, além de vinte anos de vigilância orçamental. Aqui, uma precisão: não serão apenas vinte anos, mas mais, pois o Tratado obriga à vigilância de orçamentos, pois foi redigido para obter esse efeito. Enfim, o cálculo que o Presidente faz é simples: para pagar juros da ordem de 3,5% a 4% do PIB e conseguir défices estruturais de 0,5%, reduzindo o rácio da dívida ao ritmo previsto no Tratado, o País terá de ter rigor orçamental e crescimento razoável, o que implica um acordo político entre partidos.
Avaliando pelas reacções, as perspectivas de um tal acordo não parecem famosas. O prefácio do Presidente foi o pretexto para uma campanha a favor da reestruturação da dívida. Ora, metade desta está nas mãos de bancos portugueses, que teriam de pagar a reestruturação (e como pagariam eles os créditos que receberam?). Por outro lado, é fácil tentar confundir rigor com austeridade. Estamos condenados a orçamentos equilibrados, mas ao contrário do que se escreve, isso não nos condena a cortes eternos. O saldo primário de 3% só parece impossível a pessoas que se enganaram sempre ao longo dos últimos cinco ou seis anos, o crescimento nominal de 4% só parece um resultado marciano para quem não leia os relatórios da troika, há até quem não perceba que o rácio de dívida diminui à medida que o PIB nominal aumenta.
Ninguém diz à opinião pública que será possível aumentar as maturidades dos empréstimos europeus, mas por iniciativa dos europeus. Também se evita dizer que uma reestruturação hostil rebentava com a banca portuguesa e levava provavelmente à saída de Portugal da zona euro: isso implicava a destruição de poupanças, subida de taxas de juro e da inflação, o desemprego a explodir. Aí sim, haveria fuga de cérebros. Ninguém explica que é preciso continuar a cortar na despesa, talvez uns cinco mil milhões de euros até 2018, dependendo do ritmo de crescimento. A alternativa é não cumprir o Tratado Orçamental e abandonar a zona euro.
O que está aqui em causa? Para além da banalidade da demagogia, está a continuação da mentira. Esgota-se o tempo para travar de vez o processo de reformas. Alguns sectores da política portuguesa (incluindo protagonistas que nos levaram ao colapso) acreditam que a mudança já foi demasiado longe e tem de parar. E não há responsáveis por três anos de mentiras, nem há autores publicados que façam um pequeno mea culpa: durante três anos falaram todos da espiral recessiva, dos juros que nunca desceriam para 4,5%, da fuga da melhor geração de sempre, da dívida que não podia ser paga, do programa de ajustamento que nunca seria concluído, do crescimento que jamais voltaria, do desemprego cuja redução era sazonal, das reformas que não eram de todo possíveis. Sistematicamente enganados e continuam a mandar na opinião publicada.
Convém por estes dias ler José Milhazes e o seu blogue Da Rússia, com muita informação interessante sobre o conflito na Ucrânia, mas na blogosfera há outros autores lúcidos a escrever sobre o tema.
Destaco estes dois notáveis artigos de Francisco Seixas da Costa, aqui e aqui, em Duas ou Três Coisas. O autor sublinha a complexidade da situação e faz um alerta contra interpretações apressadas.
Por falar em interpretações apressadas, deixo este pequeno post de Sérgio Almeida Correia, em Delito de Opinião. Ialta deixou de fazer sentido a partir do fim da URSS e da Queda do Muro de Berlim; de outra forma, Varsóvia e Budapeste ainda fariam parte do bloco soviético. É precisamente por este já não existir que temos uma nova ordem mundial, que já somou 25 anos.
Também em Delito de Opinião, há dois posts de Pedro Correia, um com informação útil, aqui, e outro com uma boa observação, aqui; tem alguns dias, mas mantêm a actualidade.
Paulo Gorjão, em Bloguítica, escreve sobre uma evidente fragilidade estratégica da Rússia.
E Rui Bebiano, em A Terceira Noite, assina um brilhante texto de opinião.
Em resumo, a blogosfera está a dar cinco a zero à imprensa.