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Pedaços do mundo e grãos de areia
Na política portuguesa torna-se penoso o espectáculo diário de ex-dirigentes a fazerem afirmações que não resistem a cinco segundos de reflexão. Paulo Gorjão refere o caso de Rui Rio e a sua imagem do barquinho a remos perdido na tempestade. No mesmo dia desta declaração, Manuela Ferreira Leite defendia na TVI o programa cautelar e “demonstrava” como este seria muito mais barato do que a saída à irlandesa.
Assim, temos as contas já feitas, embora ninguém saiba ao certo o que é o programa cautelar. Conhecemos a ideia geral de um seguro equivalente a 10% do PIB, empréstimo sujeito a condições desconhecidas (de certeza, pouco suaves). O cautelar não está previsto nos Tratados Europeus e, portanto, tem de ser ratificado por todos os Estados-membros. Mesmo que seja negociado e aprovado em Conselho Europeu, não está garantido, pois a Finlândia ou a Estónia (ou outro parceiro) podem decidir chumbar. Também não se sabe se o FMI participa. Aliás, não se sabe nada disto pela simples razão das negociações não terem ainda começado.
A Irlanda preferiu sair do programa de ajustamento sem ajuda externa precisamente por não conhecer todos os elementos de um eventual programa cautelar. Na altura, o ministro das Finanças irlandês reconheceu que havia certa confusão nas intenções dos credores e, pela leitura das suas afirmações, fiquei com a sensação de que os irlandeses foram amavelmente convidados a prescindir de mais auxílio. E a Irlanda está longe de parecer um barquinho a remos no meio da tempestade, sendo certo que ainda não chegaram os testes decisivos sobre a banca.
Em resumo, a política nacional voa baixinho. Parece triste ver estes ex-dirigentes sem informação privilegiada a fazerem afirmações peremptórias sobre assuntos indefinidos. A possibilidade de Portugal imitar a Irlanda deve parecer-lhes um autêntico pesadelo, pois afasta-os mais um bocado do poder.
O governo conseguiu um défice orçamental de 4,4% em 2013. Lembram-se dos analistas que há um ano diziam ser impossível cumprir a meta de 5,5% acordada com a troika? A produção industrial está a subir e a balança de transacções tornou-se positiva. O desemprego parece baixar, há mais poupança e consumo, a bolsa mostra um comportamento surpreendente, os empresários dizem-se optimistas e as exportações aumentam.
Claro que as boas notícias coincidem com a continuação de cortes nos rendimentos dos trabalhadores e nas pensões. Os sacrifícios não acabaram e os portugueses têm todas as razões para descontentamento. Todas as razões e mais uma: foram enganados pela retórica dos partidos da esquerda. Afinal, a estratégia da troika fazia sentido e o programa de assistência podia funcionar.
A crise dura há cinco anos e afectou a vida de toda a gente. Durante década e meia, foram adiadas reformas importantes e mantidas estruturas que travavam a competitividade do País. O modelo estava errado e bateu na parede em 2008. Portugal entrou em pré-falência, atrasou o pedido de resgate e teve de cumprir um duríssimo programa de austeridade que terminará dentro de pouco mais de uma dezena de semanas. O País que resulta deste período difícil será diferente do anterior, será mais competitivo e menos iludido com falsas promessas. O orçamento começa a estar equilibrado, a dívida começou a baixar e as reformas estruturais que a troika nos exigiu, no essencial, estão feitas ou lançadas.
Apesar disto ser cada vez mais visível, a esquerda continua a dizer que os sacrifícios foram desnecessários e inúteis, que a situação é desesperada e que não haverá futuro se não abandonarmos este caminho. Mas qual é a alternativa que propõe? Outra vez a falência? Como é possível que os partidos da esquerda insistam em querer bater com a cabeça na parede?
Alguns exemplos de lucidez na blogosfera:
Este texto de Sarah Adamopoulos é uma das melhores análises que tenho lido sobre a actual crise na comunicação social. Há sobretudo quem fale sobre o tema sem perceber um átomo dele, por isso merece ser lido com a máxima atenção um raro post certeiro: está aqui o essencial. Ficamos a perceber o divórcio entre opinião pública e opinião publicada, ficamos a perceber o suicídio dos jornais e o seu declínio.
Luís Menezes Leitão publica em Delito de Opinião um comentário oportuno. Leio regularmente este autor desde 2008 e tem sido das vozes mais sensatas e clarividentes.
Como de costume, Paulo Gorjão diz o essencial em poucas linhas. O link vai para uma notícia onde ficamos a saber que as primeiras conversas sobre o resgate foram no Verão de 2010; só depois, em Novembro, as taxas da dívida a dez anos passaram os 7%. Nessa altura, a Irlanda pediu ajuda e Portugal devia ter feito o mesmo, mas resistiu como uma aldeia gaulesa, embora o PEC IV (em Março de 2011) fosse mais uma fantasia, como sugere acertadamente Luís Moreira, em Banda Larga. O resgate de Maio de 2011 veio pelo menos com seis meses de atraso e foi mais duro do que poderia ter sido. Muitos esqueceram esta cronologia tão simples.
Francisco José Viegas faz aqui um resumo notável do que será verdadeiramente o pós-troika, ou seja, uma mudança de mentalidade.
Rui Bebiano, em a Terceira Noite, critica a questão da redução das bolsas para a ciência. Concordo inteiramente. Só um péssimo ministro da Educação poderia apoiar tal medida. Pode o tema estar mal explicado e haver mais bolsas do que as que foram anunciadas, mas Nuno Crato deveria ter apresentado a demissão, ou por concordar com os cortes ou por não os explicar devidamente.
E não podia estar mais de acordo com o Henrique Raposo. Este pequeno episódio faz uma excelente ligação ao primeiro texto citado.
E um exemplo de falta de lucidez:
Neste texto, a coerência é uma barata tonta. João Miguel Tavares diz que votou no PSD e que agora tem vergonha do PSD. Supomos que irá mudar de voto, embora isso não interesse sequer ao periquito do autor. Entretanto, acho estranho que alguém que fez eleger um governo tenha estado dois anos e meio a bater nele em colunas de jornal e a escrever sobre ele o que Maomé não escreveu sobre o toucinho. É mesmo bizarro. O direito à crítica não justifica ter memória selectiva. Em relação ao resto do texto, até concordo, mas com este ponto de partida, como é podemos levar a sério a indignação do colunista?
A ideia de realizar um referendo sobre a co-adopção revela um fascínio muito português pelo ‘inconseguimento’, que é uma espécie de nem-coiso-nem-sai-de-cima. A iniciativa está condenada ao fracasso e, por isso, faz parte de uma complexa distracção ou não passará de inútil tempestade que toda a gente vai esquecer depressa.
Neste caso, o Parlamento aprovou uma lei que permite o casamento de homossexuais, mas não extraiu o devido corolário. A partir do momento em que a lei existe, qualquer limitação aos direitos destes casais será discriminatória, incluindo a proibição da adopção, quanto mais a co-adopção. Isto devia ser evidente para todos os intervenientes, mas o PSD decidiu propor um referendo. Imaginemos que havia consulta (espero que não haja) e que a população decidia contra a co-adopção por casais homossexuais. Por um lado, o Estado dava o direito de casamento e, por outro, discriminava um grupo de cidadãos casados. Isso seria claramente uma insensatez. A decisão popular teria de ser alterada e isso era uma mera questão de tempo. O problema até se revela um pouco maior, pois proibir a co-adopção por casais homossexuais prejudica as crianças que já foram adoptadas.
Os políticos portugueses são extraordinários a discutir assuntos laterais, nem que para isso seja preciso inventar uma polémica que diga respeito apenas a algumas centenas de pessoas, num tema que não incomoda ninguém. Os casais existem e, em muitos casos, já têm famílias formadas, com crianças adoptadas por um dos seus elementos. Os deputados só têm de assumir as responsabilidades que decorrem das suas anteriores decisões. Tudo o resto é hipocrisia ou uma tentativa patética de sacudir a água do capote. Claro que há eleições em Maio e este tema é capaz de dar votos, mas não deviam estar a discutir o pós-troika e o que querem para o País do futuro?
Alguns textos de outros autores dão-nos por vezes a sensação de que chegámos tarde a um determinado assunto e que ele pareceu ficar esgotado. É o caso deste post que li em Aefectivamente, o blogue de Fátima Laouini. A autora observa, e bem, que se perdeu a magia, que os jovens desconhecem o cinema clássico e suponho, mudam de canal quando passa um daqueles velhos filmes a preto e branco. O gosto em cinema é agora dominado pelo aparato visual, o artifício e a inverosimilhança.
Recentemente, vi algumas imagens de uma película moderna chamada Os 47 Ronin e aquilo deu-me voltas ao estômago, pois conheço o original de Mizoguchi dos anos 40, que embora seja um filme de samurai não tem combates. A ideia do realizador japonês estava bem longe de encenar efeitos especiais improváveis. Na minha leitura, o autêntico Os 47 Ronin conta uma história sobre a honra e o deficiente exercício do poder. É um conto subtil sobre o custo da lealdade. Desprezados pelos poderosos, que têm uma visão fútil da sua importância, os samurai dão o exemplo e pagam com a própria vida, aliás, sem poderem escapar a esse destino.
Sublinho ‘na minha leitura’. No cinema clássico, existia uma complexidade de conteúdo que deixou de existir ou que agora apenas existe no excesso de forma. Nos melhores filmes antigos, ficamos a pensar na motivação das personagens e na intenção dos autores. Isso desapareceu inteiramente dos melhores filmes contemporâneos. Hoje, a experiência do cinema é igual à do fast-food, ficamos de barriga cheia mas não pensamos mais nisso. Por outro lado, no cinema de antigamente contavam-se histórias e estas tinham forte conteúdo literário. Agora, temos muitas vezes o enredo como simples fio condutor entre cenas, ao serviço das vedetas e, muitas vezes, contendo erros de construção que o impacto visual apenas consegue minimizar. E esta linguagem é tão diferente da anterior que as pessoas deixaram simplesmente de compreender as obras antigas.
Fico sempre surpreendido ao ler na imprensa e na blogosfera mais influente textos muito violentos em relação à França contemporânea. Os autores pegam em pequenas anedotas e tiram conclusões tremendas sobre o declínio daquele país, que aliás tarda em declinar. As nossas elites sempre arranharam o francês (mal) e sempre viram na França o modelo a seguir, mas algures nos anos 80 houve uma mudança. As elites, agora, falam inglês, gostam de citar em inglês, colocam umas palavras em inglês nos seus textos e adoram tudo o que venha do mundo anglo-saxónico, para mostrarem como são cultas e modernas.
Tal como os franceses, os portugueses prezam o exagero e a hipérbole. Também achamos que somos os melhores em tudo, talvez fruto do nosso desconhecimento dos outros. Nos media influentes, onde se pronunciam pessoas que podem ser consideradas a nossa elite, tudo o que vem de França é ridicularizado. Um País estatizado e arrogante, dizem, medíocre e sem literatura, com um cinema que é uma seca. Os brasileiros afirmam, talvez com razão, que os portugueses não se enxergam.
O facto é que não existe no mundo outro país que, como a França, coloque a sua literatura no centro da ‘glória da nação’. A cultura deles não se limita à futebolândia. Claro que em França há muitas histórias de cromos, mas não são sempre os mesmos cromos, como acontece aqui. Nós vemos constantemente os mesmos artistas e escritores, as mesmas vedetas de televisão, ideias e obsessões sempre iguais, as parvoíces e os políticos do costume. A cultura francesa está em decadência e é chata? Talvez, mas quando ouvimos dizer mil vezes ao dia que tudo aquilo que vem da América é fantástico e tudo o que vem da França (e da Europa) é péssimo, dá para perceber que existe uma agenda política nesta embirração.
Portugal conseguiu realizar uma emissão de dívida a cinco anos que só pode ser considerada um êxito. A procura foi três vezes maior do que a oferta, a taxa de juro diminuiu em relação à emissão anterior e os interessados em comprar dívida portuguesa são menos especulativos do que no passado.
Há crescentes sinais de que a situação económica do País está a mudar. As exportações cresceram 7,2% em Novembro, a poupança das famílias aumentou, o défice de 2013 será inferior à meta da troika, a confiança recupera e, na vertente do emprego, parece haver indícios de uma melhoria surpreendente, embora não seja ainda claro que tipo de postos de trabalho estão a ser criados (que sejam mini-jobs, só alguém com emprego pode achar mal).
Aqueles que sempre defenderam a desistência continuarão a dizer que a situação é desesperada.
Vivemos durante três anos embalados na narrativa da desgraça e agora, quando chegam as primeiras boas notícias, vão aparecer os habitantes do outro lado do espelho, os panglossianos, que só verão o lado róseo da realidade.
O que temos perante nós não será inferno nem paraíso, mas antes uma aborrecida e lenta recuperação, com altos e baixos, avanços e recuos, momentos de alegria e também de desalento. Quem agora vender novas ilusões de uma recuperação rápida estará a cometer o mesmo erro das cassandras. A saída da troika não mudará um aspecto essencial: a longo prazo, Portugal terá de manter contas públicas equilibradas e orçamentos de rigor. É isso ou saída da zona euro.
Para os portugueses sem emprego e com pouca esperança, o facto de baixarem as taxas de juro da dívida não dirá grande coisa. No entanto, não podemos esquecer as razões desta crise: o Estado português esteve em pré-falência e a alternativa ao resgate internacional foi a bancarrota e, então, não haveria dinheiro para pagar as reformas, os salários ou as importações. A alternativa à troika foi sempre, e continua a ser, a saída do euro, esse sim o verdadeiro cataclismo.
No site alemão Geolitico, o obituário de Eusébio, da minha autoria. Tento explicar neste texto a grandeza do homem e a sua humildade, mas também a relação com o tempo e a glória. O jogador foi o derradeiro símbolo de um império que estava a morrer e a decadência desportiva coincidiu com a revolução. Também escrevo sobre os três "Fs" e sobre Salazar.
A esquerda contemporânea enfrenta o problema de parecer cada vez mais conservadora. Isto significa que ganhou a imagem de resistir às inovações sociais e até de contestar a modernidade. O mundo tornou-se financeiro e a esquerda resiste; o mundo está globalizado, mas a esquerda é contra. Nos últimos anos, os grupos mais radicais tornaram-se intransigentes em relação à própria liberdade de pensamento, contestando aquilo que classificam de ideias retrógradas, como a religião. Para citar apenas um exemplo, tornou-se frequente a ridicularização de cristãos e isso é geralmente aceite pela intelectualidade, onde a esquerda é preponderante.
O fim da Guerra Fria tornou a ordem mundial mais fluida. Havia duas superpotências e a sua relação era rígida e perigosa; agora há só uma, mas acompanhada por três potências e um bloco de aliados. O sistema deixou de ser inflexível. A China comunista, por exemplo, pode garantir a sua capacidade de acção a médio prazo, se ficar próxima da Rússia e não hostilizar os Estados Unidos. A estratégia das nações libertou-se de considerações ideológicas. Quando o mundo tinha idealismo, os partidos de esquerda defendiam princípios. Agora, ao explicarem a sua versão do interesse nacional, parecem muito mais cínicos.
Nas sociedades fragmentadas em que vivemos, a esquerda resiste ao desaparecimento das ideologias e tenta inventar uma nova linguagem baseada em causas, a que se costuma chamar o ‘politicamente correcto’. Estas ideias mobilizam apenas pequenos grupos, mas tornaram-se obsessivas. E os activistas têm levado a defesa de causas limitadas a extremos que a população não compreende. É por tudo isto que os partidos de esquerda parecem hoje mais iliberais e moralistas do que os de direita. A esquerda é hoje menos tolerante e mais crispada. No tempo da Guerra Fria era bem diferente.
Aproveito para desejar a todos os leitores um feliz 2014 e recomendar alguns exemplos da blogosfera que mais me interessa:
Estes ensaios de António Araújo, em Malomil, são quase sempre de grande qualidade. O autor escreve com erudição mas num tom despretensioso que leva o leitor apressado da blogosfera a ler com atenção redobrada. Conheço razoavelmente a obra de Evelyn Waugh e desconhecia quase tudo o que vem neste texto. O autor de Malomil já deve ter material mais do que suficiente para um livro que não deixarei de comprar.
Excelente post de Paulo Gorjão, em Bloguítica. A discussão leva-nos longe e as conversas irreais que preenchem o nosso debate político têm sempre um encontro inevitável com a realidade.
Tavares Moreira faz reflexões simples, mas geralmente no alvo. O texto resume a situação do País e faz recordar outros exemplos do lirismo português na discussão nacional.
Muito bom, este texto de José Navarro de Andrade, em Delito de Opinião, sobre dois romances que também me impressionaram.