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Corda e caos

por Luís Naves, em 17.10.13

A leitura desta notícia deixou-me preocupado, sobretudo por causa do último parágrafo. Este gráfico, tirado de Os Comediantes, permite perceber bem o buraco em que estamos metidos; 34% da riqueza do país vai para pagar salários de funcionários públicos, pensões e subsídios, tudo áreas protegidas pela Constituição.
A notícia do Público pode ter duas explicações: ser o vislumbre de uma verdade que se esconde atrás do biombo do estardalhaço mediático ou, em versão cínica, o exagero de um político astuto que não consegue explicar ao próprio partido as cedências que fez a uma troika a quem prometera falar grosso. O que me preocupa é a existência de outros sinais que apontam para a primeira explicação. Qual é o cenário implícito naquilo que disse Paulo Portas aos dirigentes do CDS? Se os cortes orçamentais não passam no Tribunal Constitucional, os credores vão exigir um ‘pacto constitucional’ antes de nos emprestarem mais dinheiro. Como o PS recusará tal entendimento (como podia aceitar?), Portugal será ingovernável. Não é dito com essa brutalidade, mas percebe-se que o desenlace do drama implica o abandono da zona euro. O caos.
O último parágrafo é mais preocupante por indicar que os credores já perderam a paciência com Portugal. Na zona euro, o país é agora um problema equivalente ao da Grécia. Atenas não consegue pagar a dívida, Lisboa não consegue reunir condições políticas para concluir o programa de ajustamento. Embora tenha obtido saldo positivo na balança externa (feito que elimina um problema estrutural), o País não equilibra as contas públicas e falhou no essencial das reformas, sobretudo na parte que dizia respeito ao Estado. A zona euro transformou-se numa fila de alpinistas a subir uma montanha, unidos pela mesma corda, mas Portugal parece não entender isso. Se um alpinista escorrega e fica pendurado no abismo, ameaçará arrastar todos os outros na queda. Os que vão na frente da fila cortam a corda.

 

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Muitos autores da direita culpam o Governo por não ter começado pela reforma do Estado, mas nenhum desses autores explica o que verdadeiramente devia ter sido feito. Veja-se esta frase de Henrique Raposo, num texto do Expresso: "Este orçamento tem reformas que só pecam por tardias, mas também foge da grande reforma do Estado. Este eterno gambozino da política portuguesa, a reforma do Estado, passaria sempre pelo encerramento massivo de repartições, câmaras e institutos excedentários e pelo consequente despedimento dos funcionários excedentários".

Deixa qualquer um estupefacto. O autor terá razão em parte das suas conclusões, mais à frente no artigo, mas devia saber que não é possível fazer uma reforma do Estado em dois ou três anos. Quais são as repartições excedentárias? E que institutos e câmaras municipais fecham? E o que acontece aos trabalhadores destas organizações? Vão para a rua? Os bons como os maus? Com que lei? E quanto se poupa? O salário de cem funcionários ou o de duzentos?
Os funcionários públicos são, na sua maioria, polícias, professores, médicos, enfermeiros, juízes, nem sequer trabalham em repartições. O Estado tem de diminuir de dimensão? Sim, mas como é que isso se faz? Reduzimos o número de polícias e de militares? De professores? Fechamos universidades e hospitais? Quantos e onde?
O gráfico já citado sugere que temos um gasto com salários de 11% do PIB, portanto semelhante ao de países que fizeram reformas do Estado, mas Henrique Raposo devia explicar quais são as câmaras municipais redundantes e a que institutos se refere em concreto. Também devia ponderar no contexto político: quando este governo fez a reforma autárquica, procedendo à fusão de freguesias, comprou uma dispendiosa guerra política, com ganhos financeiros modestos. A comunicação social foi aliás profundamente hostil à única parcela de reforma do Estado que este governo conseguiu realizar e lembro-me que a direita já na altura ficou incomodada por não se cortarem os tais institutos e repartições e câmaras municipais redundantes que nunca são nomeados na conversa de café.

Mr. Brown, em Os Comediantes tem uma opinião idêntica à minha e explica o absurdo de se exigir a reforma do Estado imediata. 

 

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A ligeireza com que estas matérias são tratadas impede por vezes que olhemos para o essencial: a resistência às reformas vem sobretudo da incompreensão. Uma parte das elites afirma que estas reformas não são necessárias, outra parte que estão a ser feitas as escolhas erradas. Esta esquizofrenia explica que a opinião pública não compreenda a urgência das medidas orçamentais e não visualize as consequências da não concretização do programa de ajustamento. As pessoas não entendem que pode nem sequer haver oportunidade para segundo resgate, mas a saída directa da zona euro, com desvalorização, controlo de capitais, inflação e pobreza súbita. O sinónimo de reestruturação da dívida é escudo. Num cenário de catástrofe haveria filas nos bancos para tirar uma pequena quantia diária (nos bancos sobreviventes), as poupanças de uma vida inteira seriam dissipadas em semanas e haveria falências em massa.
Por isso é vital concluir o programa de ajustamento (mesmo sem reforma do Estado), pois esta é a condição do regresso aos mercados e ao financiamento minimamente soberano. Sem acesso ao dinheiro dos mercados, Portugal ficará dependente do auxílio directo dos parceiros europeus (o FMI parece já pertencer a outro filme), o que depende da unanimidade das ratificações nacionais e das decisões de tribunais constitucionais que respondem perante os seus países.

 

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Prefiro naturalmente a visão optimista. Portugal fará a reforma do Estado, mas esta levará tempo. Talvez haja institutos a mais e câmaras redundantes e repartições indolentes, mas não será por aí que o gato vai às filhoses. Onde esta reforma foi feita (na Áustria, por exemplo) o processo levou dez anos a concluir. Portugal pode ser alérgico a mudanças, mas não é pior do que os outros. Também conseguirá, mas precisa de tempo. A reforma das pensões vai prejudicar muito a minha geração, mas terá de se fazer também, embora não possa ser lançada à custa da geração anterior à minha. Temos de acabar com a conversa absurda do ‘descontei, o dinheiro é meu’, mas é preciso manter a solidariedade intergeracional. Também aqui é preciso tempo, o que se torna incompatível com a urgência do ajustamento. A curto prazo, é necessário baixar os impostos e fazer uma lei das rendas que acabe com a situação do país de proprietários, que retira mobilidade aos trabalhadores, impedindo o próprio Estado de colocar os seus funcionários onde estes são mais necessários. A lei de rendas do Governo foi um desastre, é um facto.
Em resumo, estas reformas falharam, estão a meio ou a um terço, mas precisam todas de mais tempo e, entretanto, o programa da troika precisa de ser concluído. Aqueles que dizem que isto não é a reforma do estado estão a constatar o óbvio. Não, isto é um programa de emergência que não pode morrer na praia.

 

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Também preocupante é o sistema político, que gera líderes fracos, partidos divididos e instituições inflexíveis. A forma de ascensão partidária favorece a mediocridade e, como os dirigentes raramente vão a votos fora do partido, os melhores são geralmente afastados a meio do caminho. Os grupos de interesses ocupam parte deste vazio e têm enorme influência, o que se torna demasiado visível na comunicação social, onde os lobistas de serviço estão permanentemente em antena. Arménio Carlos, para citar um entre muitos exemplos, aparece todos os dias na televisão. O jornalismo está domesticado e tornou-se muito opinativo, veículo das mensagens dos interesses particulares. Quem tem acesso aos media, tem uma parcela do poder, mas a tendência acrítica e a monotonia dos comentários geram também crescente desinteresse da opinião pública.
O descrédito em relação às medidas de austeridade associadas a esta crise é em parte consequência da forma irresponsável como tantos mandarins do comentário encaram o problema nacional. Para muitos deles, por ignorância ou agenda, este é um momento semelhante aos anteriores, logo torna-se imperativo sublinhar as matérias do costume: o populismo balofo, a pequena táctica, o incidente manhoso, o pormenor na contradição, o leve tiro ao lado, a tolice arejada, o ameno ajuste de contas, a verdejante inveja e o inevitável, ocasional frete. Se o caos vier, serão os do costume a fazer o elogio fúnebre do país, talvez acusando a Europa de traição ou dizendo que estavam certos quando afirmavam que a austeridade não funcionava.

publicado às 13:01



Autores

João Villalobos e Luís Naves