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Recursos

por Luís Naves, em 15.01.25

Muito do que se está a passar na política internacional pode ser explicado pela procura de recursos minerais e de fontes de energia. As potências querem assegurar o seu domínio sobre reservas de matérias-primas e, para muitos países, isso pode constituir uma maldição. Entre os motivos da guerra da Ucrânia encontra-se o controlo de minerais críticos, sobretudo no Donbass, onde decorrem os combates mais violentos. Na semana passada, uma mina de lítio foi conquistada pelos russos. As indústrias militares ocidentais terão dificuldade em obter titânio (o do nosso lado é processado em Zaporijia e no Canadá). A Gronelândia, para citar outro exemplo, tem vastos recursos naturais, de grafite e urânio, além de terras raras (minerais que não são necessariamente raros, mas vitais para a transição energética). A Europa tem um interesse elevado na Ucrânia por causa da geologia (alumínio, lítio, urânio, ferro), entre outros, algumas terras raras, como berílio ou zircónio. Aquele país tem solos agrícolas ricos que garantem a autonomia alimentar da UE por séculos, também haverá acesso a combustíveis fósseis, enfim, talvez o altruísmo tenha algum papel nestes interesses.

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publicado às 10:47

Enigma contemporâneo

por Luís Naves, em 08.01.25

Um dos enigmas contemporâneos é a estagnação secular das artes no planalto pós-moderno. Da era clássica ao modernismo, sucederam-se movimentos e ruturas. Cada geração inventava uma nova maneira de escrever, de pintar ou de fazer música. A partir da II Guerra Mundial, as mudanças estéticas foram absorvidas num vasto bolo de gelatina. Há uma estimativa credível segundo a qual se publicam por ano mais de 2 milhões de novos livros, número de obras que inclui autopublicação, publicação digital, volumes anónimos, diferentes traduções. Desde a invenção da Imprensa, a contagem vai em 160 milhões de títulos, mas a aceleração na nossa época está a produzir quantidades que ninguém consegue absorver. A leitura é hoje para todos, mas a literatura continua a ser um interesse de minorias. As salas de concertos de música antiga estão cheias, não há falta de público, mas como se explica o marasmo na música popular nos últimos 50 anos? Aliás, podemos ouvir milhares de vezes uma obra que alguém do século XIX ouvia uma vez na vida, mas a música contemporânea não produziu nenhuma vanguarda escandalosa nos últimos 50 anos. Talvez isto seja também uma crise de espiritualidade, da nossa vida materialista e sem tempo para pensar.

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publicado às 11:17

Trabant

por Luís Naves, em 04.01.25

Sobre a mesa está a miniatura de um Trabant, em escala 1 para 60, teto branco e carroçaria azul-celeste. Fabricado na ex-RDA, este foi o veículo mais popular nos países de leste, na fase final do bloco socialista. Andei duas ou três vezes num Trabant, um privilégio, com aquele motor que parecia de mota, o interior tosco, as mudanças de trator e o centro de gravidade tão baixo que tornava os camiões da estrada em monstros ameaçadores. Devia ter escrito sobre isso na altura, mas não o fiz, e tenho pena. As máquinas socialistas eram simples e podiam durar eternidades, mas o sistema ruiu quando as pessoas deixaram de acreditar nas mentiras do poder e começaram a sonhar com os produtos sofisticados do ocidente. Todos queriam ter um Volkswagen, nem que fosse importado e em segunda mão. Os Trabant foram para a sucata, embora muitos tenham circulado ainda outra década, pois os motores eram fáceis de reparar. Por cruel ironia, o brinquedo que comprei é made in China, o país que, entretanto, inundou a Europa de carros elétricos, iniciando porventura uma extinção industrial semelhante. Os automóveis europeus de agora serão em breve memórias simpáticas e carrinhos de brinquedo.

publicado às 18:46

Impunidade

por Luís Naves, em 29.12.24

Gaza saiu das manchetes e o assunto deixou de interessar à consciência dos líderes ocidentais. Vão saindo notícias envergonhadas sobre os mais recentes ataques, mas é como a estatística de um dia de caça à raposa. Será difícil lavar os crimes que a hipocrisia do poder tem desculpado e de que a comunicação social foi cúmplice, apesar da ocasional lágrima furtiva. Pelo menos 45 mil mortos diretos das atrocidades, na maioria pessoas inocentes. O número de vítimas é bem mais elevado, embora desconhecido, pois morreu muita gente de doenças, falta de medicamentos, insalubridade e até de subnutrição induzida pelas autoridades israelitas, que conseguiram desumanizar a população de dois milhões de pessoas naquele território e aproveitaram para alargar o espaço de segurança, que é na realidade um pequeno império regional. Na Cisjordânia, prossegue a campanha de opressão e limpeza étnica, enquanto o exército israelita aproveitou a queda do regime sírio para estender o controlo nos Montes Golã. O Estado de Israel testa as melhores armas americanas e é invencível, mas também ultrapassou os limites da decência. O que faz aos palestinianos não é autodefesa, mas superioridade racial com impunidade.

publicado às 12:46

Mar de contentamentos

por Luís Naves, em 25.12.24

Como no verso de Camões, "os maus vi sempre nadar em mar de contentamentos" e parece uma fatalidade que durante algum tempo triunfem os cruéis, pois sem isso não haveria o impulso de fazer o bem, de escolher o melhor lado na nossa vida, de optar pela desistência das mundanidades que nos levam pelos caminhos errados do tal mar das falsas delícias. No fundo, a malvadez resulta em bens de fortuna, mas também na ilusão da felicidade, pois ninguém pode anular a sua consciência, pelo que a perversidade que se distribui aos outros deve queimar por dentro, nem que seja um pouco, à maneira da comichão em maré alta, que se torna um tormento. Conheci pessoas francamente más, felizmente não muitas. Estão sempre sozinhas, amargas, fingem que são felizes, aliás, odeiam a felicidade dos outros, pois as vítimas encontram maneira de escapar à opressão, um milímetro de cada vez. As benesses que se tiram de tiranizar os semelhantes são simples miragens: o mar de contentamentos é um deserto.

publicado às 14:00

Santo Natal

por Luís Naves, em 24.12.24

Com aspeto abatido e triste, o Papa Francisco usou a palavra "crueldade" para definir aquilo que se passa em Gaza e que neste Natal terá de ser escondido das pessoas decentes. Olhar para o presépio já aflige, não há esperança de tréguas ou de simples humanidade. Os reféns israelitas foram abandonados pelo seu próprio governo, que recusa negociar, para não perder a vitória, ou seja, o esmagamento de dois milhões, isto sem apelo, de gente que não tem para onde ir e que não poderá viver em segurança no inferno em que se transformou a sua terra. Pelo menos 45 mil mortos, metade mulheres e crianças, milhares de feridos e estropiados, milhares de cadáveres debaixo dos escombros, ajuda humanitária a entrar em quantidades insuficientes, a guerra sem travão, Israel a transformar-se num pequeno império regional. O Papa estava zangado, mas haverá cristãos a discordar dele. Em Israel, também são minoritárias as críticas à violência: uma notícia citava soldados que não distinguiam os seus próprios crimes de guerra, pois sentiam-se como deuses quando combatiam em Gaza. Os hospitais que ainda não estão em ruínas são encerrados. É difícil pensar nisto e acreditar nas lindas expressões da Terra Santa e do Santo Natal.

publicado às 10:26

Alfarrabistas

por Luís Naves, em 18.12.24

As livrarias de novidades estão repletas de livros de autoajuda, conceitos giros, receitas, cultura instantânea, estilos de vida ou histórias de superação dos fracos heróis da época, salsicharia fina para consumidores entediados. Também há clássicos sem direitos de autor ou os mais recentes êxitos estrangeiros de literatura para as massas. Convém fugir para os alfarrabistas que vão proliferando, com a sua oferta de livros velhos onde se encontram pechinchas. Há grande oferta em francês, pois estas empresas compram bibliotecas particulares, que metem em sacos de supermercado. Os idosos que falavam francês vão morrendo e os descendentes despacham a livralhada que não querem ou já não conseguem entender. A língua das pessoas cultas é agora o inglês. Nas livrarias de novidades, em capas sempre no mesmo estilo, só se vende literatura estrangeira ou literatura nacional ao estilo estrangeiro. Muita futilidade. Os escritores já não refletem sobre o mundo, a vida autêntica tornou-se invisível e a fantasia é um defeito. Os melhores artistas das gerações anteriores não tinham lugar neste mercado e certamente o mesmo acontece aos melhores escritores do presente.

publicado às 13:03

Os abismos da memória

por Luís Naves, em 15.12.24

Vivi muita coisa, mas preciso de esforço para me lembrar dos principais momentos. Tenho péssima vocação para recordar coisas e nomes, o que tento compensar com certa fantasia, a ponto de não saber se vivi aquilo que tento memorizar ou se embelezo os factos. Devia talvez ter registado tudo. Os livros que me passaram pelas mãos e as aventuras em que estive metido, algumas coisas que li e, entretanto, se evaporaram, pois retenho apenas farrapos daquilo que aprendo. Sempre gostei de notícias, mas um bom jornalista não se pode esquecer de informação importante nem baralhar cronologias, um escritor pode. Não sei ao certo o que pensar disto, estou farto de política e da minha pequena coleção de recordações anacrónicas, que vou juntando nos baús da memória, ou do tom tão factual destes apontamentos diários, onde raramente me encontro. Devia porventura escrever mais sobre mim, mudar um pouco o registo destas observações, colocar mais gente aqui dentro, registar vivências. Falar do tempo, do Natal que se aproxima, das ilusões dos meus contemporâneos e das minhas deambulações em pensamento, das quais não haverá rasto.

publicado às 17:52

Teoria insuficiente

por Luís Naves, em 11.12.24

A teoria da guerra das civilizações não explica a atual mudança no mundo. A Rússia é tão europeia como a Ucrânia; a crise política da Coreia do Sul tem na sua origem um partido nacionalista de oposição que contesta o comando americano das forças militares coreanas; os islamitas da Síria são apoiados por americanos, turcos e israelitas e derrubaram um regime nacionalista árabe secular e ocidentalizado, que tinha apoio do Irão. Um quinto do planeta é constituído por nações falhadas, em vários continentes, idênticas na desgraça, sobretudo pela exploração implacável dos seus recursos. A teoria de que existe um choque de civilizações é útil para disfarçar os conflitos entre impérios, que não são diferentes das rivalidades que existiram na primeira fase da civilização global. As potências modernas querem uma ordem mundial estável, terão de organizar zonas de influência. O conflito do futuro será económico, pelo domínio de tecnologias e dos minerais do patamar mais elevado de uso de energia. Terá vantagem o país que controlar a inteligência artificial e assegurar os recursos para a energia que esta gasta.

publicado às 13:09

Novo ciclo

por Luís Naves, em 08.12.24

A vida deu mais uma volta, entro em novo ciclo, acaba a incerteza e recomeça a estabilidade. Vou gerir melhor o tempo que me resta e, enquanto a cabeça deixar, tentarei apenas escrever. Tenho planos para conto, romance, crónicas, mas nunca se sabe até onde irá a vontade de prosseguir. Este ano teve um resultado contraditório: o romance deixado a meio, outro publicado, revisões de textos antigos, a coleção de contos incompleta, estes dispersos, muita palavra para o arquivo do esquecimento. Não me cansa, irritam-me as interrupções quotidianas, os assuntos burocráticos, as distrações. Parece que a escrita tem de ser uma atividade talibã. Sou do artesanato, gosto da sujidade da oficina, ocupo o tempo a acumular estes objetos, sem me inquietar com a sua eventual leitura. Agora, que temos toneladas de informações à nossa volta, tornou-se demasiado complicado separar as futilidades daquilo que interessa. Também acontece aos predadores, que ficam paralisados a olhar a agitação do cardume e não sabem por onde começar. Vivemos na cultura da dispersão, da quantidade, da fragmentação. Escrever exige silêncio, reflexão, o apagamento do autor. Não é fácil conciliar tudo e o seu contrário.

publicado às 12:28


Autores

João Villalobos e Luís Naves