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O frio

por Luís Naves, em 30.03.14

O genocídio no Ruanda foi há vinte anos. Este conto tem talvez dez anos. A minha escrita mudou muito, mas julgo que a publicação deste texto pode ser oportuna:

 

 

A aproximação da noite ia formando em torno da cidade um halo protector que, reflectido na neve do chão, tornava quase fantasmagórica a luminosidade dos candeeiros públicos. Juvenal Ngeze sentia frio e, por isso, embrulhou-se ainda mais no sobretudo velho, repetindo o mesmo pensamento, como se fosse uma ladainha de hipnotismo que servia para o acalmar: Bruxelas é uma cidade rica e todos os seus habitantes são ricos. Avançou para a porta e ela tilintou. Ao entrar na pizaria, recapitulava mentalmente como eram ricos os habitantes. Passou pela porta dupla, depois pela cortina, que afastou com as costas das mãos, revelando-se à luz do interior. Pressentiu os odores do pão, mas acima de tudo o delicioso conforto de uma onda de calor, que o envolveu como se fosse o tranquilo sono de uma grande árvore perto de algum curso de água. Teve um arrepio, mas era de agrado. Depois, enquanto a temperatura da pele estabilizava, o africano ouviu todos os ruídos ao mesmo tempo e observou, com pormenorizada atenção, tudo aquilo que se espreguiçava à volta.

Sozinho na mesa mais próxima da porta, um homem de barba grisalha escrevia num bloco de notas amarelo. A caneta de tinta permanente deslizava nas minúsculas páginas, criando desenhos azuis, muito ordenados. E, sobre o ruído de fundo, Juvenal distinguiu o zumbido do aparo sobre o papel, que o incomodou por um instante, como se houvesse assumido relevância súbita, à maneira de uma vespa solitária a antecipar todo o exército de insectos no ataque às pacíficas colmeias. O padre Germain tinha o mesmo aspecto absorto, quando escrevia cartas.
O canto fúnebre de milhões de insectos deslizava na noite...
Ao pressentir sobre a sua nuca o olhar fixo do africano, o homem olhou para trás, avaliou o intruso e, sem gestos ou palavras, regressou à escrita. Quase pudera ouvir os seus pensamentos...
Um desejo de morte ergue-se na planície desolada, pressinto um chamamento, doce embalo...
Quatro raparigas louras conversavam e riam, enquanto bebiam de um grande jarro de vinho branco, já quase vazio. Uma delas era gorda, como uma africana que Juvenal conhecera, dona de uma mercearia na aldeia, onde chegara a ir várias vezes e onde se podia beber nas tardes de calor plácido, quando o sol se deslocava para o horizonte, banhando as casas em tons dourados, trespassando de ilusão o barro imundo das paredes. Em imagens rápidas, que afastou suavemente, recordou as prateleiras esvaziadas no chão, o movimento de um braço, alguma coisa que ainda rastejava no chão e que percebeu ser um minúsculo papel que o vento arrastava, depois a nuvem diáfana de fumo a elevar-se e a tapar um pedaço de céu. Talvez fosse falsa, aquela memória, ou seria pelo menos imprecisa, como num sonho. Era acompanhada de vários gritos na distância.


As quatro jovens largaram uma gargalhada repentina e Juvenal Ngeze sentiu uma espécie de beatitude, ou algo que não conseguia compreender inteiramente, mistura de bem-estar e conforto, mas também incómodo ligeiro pelo que lhe recordava tudo aquilo, o que agora se extinguia devagar, num compasso de batuque, o tronco oco a emitir ecos que se espalhavam entre árvores e campos e o verde imenso.
Então, as quatro mulheres brancas repararam nele: primeiro a gorda, que reduziu a intensidade do sorriso, depois as outras três. Olharam-no, mas sem interesse, depois desviaram de novo o olhar e recomeçaram a beber dos quatro copos que tinham na mesa, como se combinassem o gesto.
Na mesa ao lado, duas mulheres de meia idade segredavam, com ar sério de quem conspirava. Talvez falassem dos filhos ou dos maridos, tudo em flamengo, linguagem áspera, a lembrar uma pá a raspar na terra seca.
Juvenal percorria a vista pelas mesas, como se procurasse algo na floresta.
Havia um grupo de italianos: acompanhavam a conversação de gestos, à maneira dos chefes da aldeia, quando discutiam assuntos graves. Três belgas, homens de negócios, faziam contas num bloco, com ajuda de uma máquina de calcular. Parecia uma conferência de comerciantes, com ábaco.
Do outro lado da sala, mesas sem talheres e copos, apenas o tampo nu, para quem se quisesse proteger do frio e beber uma cerveja. Poderia sentar-se ali, junto à parede, de onde poderia ver todos os actores no palco. E, de chofre, quando avançou, caíam memórias, como água numa cascata, em fragmentos de imagens, sons dispersos, catadupas de sensações.
Os padres mentiram: os humanos já não são humanos; as coisas são apenas coisas; o mundo está a jorrar de dentro para fora, na vegetação que cobre as colinas e onde se escondem os espíritos em fuga; vou segurar a vida com mais força e sinto o calor imenso do sol; pela primeira vez, vejo a cor vermelha, enquanto o suor me cobre o corpo.  
Afastou a memória, ao sentar-se na mesa desocupada junto à parede, Juvenal baixou o ponto de vista, como se estivesse escondido atrás de arbustos, na protecção de uma pedra grande, que o ocultava.
Os empregados da pizaria eram morenos. Um deles aproximou-se e falou para ele num tom solícito: “Quer almoçar?”, perguntou.
“Não!”, respondeu Juvenal.
Não era uma recusa agressiva, a negativa fora dita em tom de lamento, como se tivesse recusado uma dádiva.
O rapaz deixou a carta sobre a mesa e afastou-se. Embora não houvesse nenhum gesto ou palavra, o que se passara durante aquele tempo (poisar o menu e virar as costas ao africano) pareciam um eloquente discurso. Quem és tu e o que queres finalmente de nós?
Sou Juvenal Ngeze e quase recordo o calor da minha terra e a alegria da minha infância e os horizontes e a fertilidade e a beleza de tudo aquilo que me rodeava, sobretudo o voo dos pássaros e os gritos e os gritos...

Fechou os dedos da mão direita com força, até conseguir provocar uma dor intensa na pele, que o distraiu. A mulher ruiva devia ser a proprietária da pizaria. Era alta e elegante, muito pálida: vestia uma t-shirt que deixava adivinhar a forma do peito; tinha os braços nus; estava atrás do balcão e dava instruções a todos os empregados. Juvenal pensou que a mulher tinha um ar simpático, embora a cor de sangue dos seus cabelos fosse uma fonte de angústia. Depois, observou que conversava com um rapaz e este respondia por vezes em francês carregado, que misturava com palavras espanholas. Devia ser o amante; bebia vinho na mesa dos fumadores.
“Jus Pressés”, dizia a placa. Juvenal ficou ali, a olhar para o tampo vazio da mesa, à espera que alguma coisa acontecesse, a saborear o calor da sala. Então, o primeiro empregado aproximou-se de novo, desta vez com expressão de enfado, meia zanga. Perguntou ao africano se, afinal, desejava alguma coisa. Que não, respondeu o africano, acrescentando, em tom cantante, que não tinha dinheiro para consumir.
Gritava deixa-me entrar, deixa-me entrar, mas cheguei a tempo. Se a porta se abrisse e a rapariga tivesse entrado, talvez recuasse, mas a porta não se abriu, não regressei pelo caminho que já tomara. A menina virou-se e os olhos imploraram, mas não tinha vontade própria, era o braço de uma vontade alheia, que se sobrepunha e me dizia, continua, desfere o golpe, e foi mais fácil do que pensara, tive quase prazer...


A mulher ruiva aproximara-se, intrigada. Disse, com gentileza, que se ele não podia pagar, então também não poderia ficar ali sentado, a ocupar uma cadeira.
“Se quiser ficar aqui, terá de consumir alguma coisa...”, disse ela, quase implorando, com o mesmo olhar que tivera a rapariga que ele perseguira até à porta fechada. “Está a ocupar uma mesa e isso impede um cliente...”.
Juvenal achou o discurso simpático, quase amoroso. O amante espanhol aproximara-se, para mostrar que era o protector da mulher ruiva.
“Tem de sair, amigo”, disse ele, com firmeza que a ruiva tentou suavizar, fazendo um gesto frágil.
O mesmo gesto do padre Germain, um pequeno movimento da mão, como se esse obstáculo tão ligeiro pudesse travar o machete que descia.
“Mas está tanto frio lá fora”, implorou Juvenal Ngeze, fazendo sem querer o mesmo gesto de sobrancelhas que fizera a menina capturada em frente à porta verde.
Os empregados da pizaria aproximavam-se, rodeavam-no, como uma multidão de juizes. E levantou-se, observando que o homem do bloco amarelo também se erguia, com um ar de censura pela cena que presenciava.
“Não o vão expulsar com este frio...”, implorou o homem.
“Há abrigos na cidade para as pessoas que têm frio”, respondeu o espanhol.
“Traga-me a conta”, ordenou o outro, muito irritado.


O africano foi conduzido para o exterior, alguém lhe apontava a direcção do metropolitano, “lá, podes encontrar abrigo do frio”, e atrás dele veio o cliente furioso, ainda a enfiar o casaco, “que vergonha”, atirou este, para receber o sarcasmo do espanhol: “se és tão generoso, paga um copo ao preto”. E a mulher ruiva tentava agarrá-lo, para acabar de vez com o incidente.
E a porta fechou-se. Juvenal sentiu um frio terrível, que o envolveu como se fosse uma morte. E estava escuro, também, porque a noite já envolvia a cidade.
E da escuridão e do frio vinham todas aquelas memórias, sempre as mesmas, começava com a rapariga que matara junto à porta que não se abrira. A porta tinha traços de tinta verde e ficou cheia de sangue, após ele cravar o machete na carne tenra da menina tutsi, a sua primeira vítima. Ao morrer, ela emitira como que um sopro triste, mas não gritara na despedida. Depois, porque o corpo já não se mexia, Juvenal deambulou durante três dias, ao acaso, em busca de outras vítimas. Matara mais de trinta pessoas em duas semanas, perdera-lhes a conta, esquecera-se das caras. Eram sobretudo mulheres e crianças. Por vezes, tentavam fugir dele e ele caçava-as; por vezes imploravam e ele ignorava os apelos e cumpria o desígnio dessa vontade alheia que tomara conta da sua alma.
Agora, as suas vítimas viviam no frio e no escuro, espíritos à procura dele, para o atormentarem com o barulho do seu estertor, o choro de muitas lágrimas e o pavor da eternidade inteira.

publicado às 17:24


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Autores

João Villalobos e Luís Naves