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Alpes e tesouras, a pintura de Brueghel

por Luís Naves, em 27.02.14

Ao ler um livro de novelas de Bohumil Hrabal, encontrei um pequeno texto do autor checo, a explicar a sua arte. Às tantas, deparei com esta pequena frase, que tento pobremente traduzir da tradução: “Se Pieter Brueghel podia pôr os Alpes mesmo nas traseiras das suas cidades e paisagens dos Países Baixos, por que não havia eu de usar as mesmas tesouras e cortar do meu povo e da minha paisagem o que convier ao meu texto e por que não havia eu de cortar da minha cabeça apenas aquilo com que sonho de forma mais intensa e, portanto, mais feliz?”
O pintor renascentista flamengo usou montanhas como paisagem de fundo em algumas das telas que pintou e preocupava-se em contar histórias complexas, num tom quase surrealista (enfim, desculpem a falta de rigor histórico, mas em arte os períodos misturam-se mais do que geralmente se pensa). Brueghel o Velho (também conhecido por Brueghel Camponês) parece ter ficado obcecado artisticamente com o tema da queda e o problema do movimento, pelo que as montanhas talvez permitissem acentuar as suas ideias de pintura: presumo que a queda seja mais evidente se houver planos verticais; o movimento em primeiro plano torna-se mais óbvio no contraste com a natureza estática das montanhas. E as montanhas dão dramatismo às histórias.


A observação do escritor checo, tirando algum exagero, ajuda a compreender Brueghel, mas vai mais além, ao conduzir-nos ao problema do realismo na literatura e da missão política do escritor (ou ausência dela). Escrever corresponde a uma escolha, a uma técnica de colagem, pois Hrabal menciona as tesouras, ele, que sempre as sofreu. Assim, temos a extracção a partir da realidade apenas daquilo que convier ao texto, incluindo o sonho, território onde o autor vive mais feliz e que nos leva à ideia da própria fuga de uma existência sem outra saída. A literatura transforma-se numa realidade dentro da realidade, com montanhas que não deviam pertencer à paisagem e até alguns sonhos mais intensos.
Na altura, antes da Queda do Muro, muitos intelectuais ocidentais não percebiam a literatura de Hrabal, nem a escrita de outros escritores da Europa Central desprezados pelo poder e silenciados pela situação. Os dissidentes políticos, que nem sequer publicavam, pareciam não ver as evidentes qualidades do socialismo. Como podiam eles escrever de forma tão cripticamente irreverente sobre um regime que lhes dava tudo? Há um filme de Fassbinder que tem um título genial e que explica muito: ‘o direito do mais forte à liberdade’. Passou tanto tempo e os nossos intelectuais ainda não perceberam o que aconteceu na Europa e continuam a pensar da mesma maneira e a aceitar o princípio de que apenas os fortes têm direito à liberdade.
E escrevi este texto sem razão especial, por andar por estes dias a pensar muito na frase sobre Alpes e tesouras, pouco preocupado em definir um sentido claro para toda esta realidade de onde é sempre necessário cortar o que não convier ao texto, sendo essa a parte mais difícil.

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publicado às 12:22


Autores

João Villalobos e Luís Naves