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Indignação

por Luís Naves, em 06.12.13

 

Ao sair de casa, logo de manhã, já a conspiração contra ele assumia contornos preocupantes. Três operários estavam a abrir uma vala no caminho, o que obrigava os habitantes do prédio a saltar quase um metro, o que não foi fácil no seu caso, mas lá conseguiu manobrar as muletas sem dar um malho no passeio. Um dos cavadores olhou na sua direcção com interesse e, pelo sorriso que lhe adivinhou no ar de gozo, o tipo estava mesmo à espera de ver um cidadão a estatelar-se. Parecia dizer: “É para isto que abrimos as valas no teu caminho”.
   Quando desatou a chover e o autocarro não chegava, foi crescendo no peito de Arlindo uma indignação poderosa. Era de propósito. Os motoristas faziam o caminho a pisar ovos, os outros passageiros colocavam-se na paragem em lugares estratégicos, para entrarem primeiro do que ele. E ninguém parecia notar as muletas que o sustentavam, o pé enfaixado, as mazelas que ainda tinha na cabeça, da sova da semana anterior. Pois, viam bem que ele estava inválido e, mesmo assim, ignoravam a triste realidade e tentavam meter-se à sua frente.
   Ainda pensou que era dia de greve, mas não era: o autocarro vinha uma lata de sardinhas. Lá apareceu na esquina o amarelinho pimpão, em câmara lenta, cheio de tempo e num vagar sorna. Os passageiros já colavam a cara ao vidro da frente, não cabia ali nem mais uma agulha. Mesmo assim, houve uns afoitos que se espremeram lá para dentro, mas Arlindo, sustentado nas duas muletas, só conseguia ver as costas dos heróis e, depois, pumba, fechou-se a porta.


 

publicado às 19:10


Autores

João Villalobos e Luís Naves